O Cupido

Idiota


Era uma péssima, terrível, horrenda, agoniante quarta-feira. Faltavam exatamente duas semanas para o grande evento de primavera e o diretor se contorcia de animação em sua cadeira grande e confortável. Ninguém sensato estava realmente empolgado – pavor era uma palavra mais saborosa em relação a isso. Mesmo com o ginásio completamente arrumado, os concorrentes da disputa de torta e outras baboseiras que ela realmente não se importava já estivessem se preparando, o trabalho parecia não ter fim.

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O diretor ordenara que os professores auxiliassem os alunos nos dias finais e últimos ajustes, para que desta vez as coisas fluíssem em perfeita ordem, já que a última tentativa acabara com sua única filha no hospital. Ótimo plano, imbecil, sua esposa diria. Já a pobre Hannah aturava ser um o assunto mais comentado da semana, ou pelo menos nos seus três primeiros dias.

Claro que os alunos do primeiro ano adoraram saber da pancada, ambulância e sangue, esses definitivamente eram os alicerces do assunto infindável. Toda vez que a ruiva dava as caras em algum lugar ou passava nas salas para anunciar alguma novidade – já que fora solicitada pelo próprio pai para ser a assistente do diretor. Cargo um tanto vergonhoso –, os menores se amontoavam e faziam piadas infantis e sem graça alguma, deixando Hannah incomodada e ela irritada.

Ela. Seus olhos âmbar miravam o quadro verde sendo preenchido por letras e números, alguns triângulos também ocupavam um lugar discreto. O sono deixava sua cabeça pesada e seu corpo preguiçoso, as mãos desocupadas seguravam o rosto pelo queixo, impedindo-o de se acomodar na mesa. Os cachos caiam soltos naquele dia, único talvez que tivera paciência de arrumá-los.

— E assim temos o nosso resultado – disse o professor circulando um conjunto de números. – Estão liberados – ao terminar sua frase, o sinal da próxima aula soou estridente.

Os alunos acordaram de seu transe começaram a organizar as coisas, Jen percebeu que ainda não havia tirado nada da bolsa, que serviu como apoio nos cinquenta minutos de aula. Uma futura dor de cabeça deveria ser evitada, mas se ela continuasse assim seu currículo escolar afundaria. Ela não poderia repetir outro ano.

Com uma vontade enorme de ter aula, a morena colocou a bolsa no ombro e caminhou até a saída, desviando de algumas cadeiras e organizando outras. Depois de jogar uma bolinha de papel no lixo, que ficava próximo à porta, seu professor tapou a passagem.

— O trabalho de recuperação que você me pediu, Jennifer – disse entregando-lhe um grosso livro sobre geometria. – Faça um trabalho sobre isso e eu recompenso suas faltas. Mas só dessa vez.

— Valeu professor, de verdade. Prometo que vou faltar menos – mentiu com um singelo sorriso no rosto. Vou tentar era o que deveria ter dito. Enquanto sua avó não saísse do hospital ela teria que arcar com algumas consequências.

— Assim espero.

Jen acenou brevemente para o professor e correu em direção às escadas. A última sala do corredor mais esquecido da escola estava razoavelmente cheia, era dia de recuperação. Outras duas salas estavam trancadas, cada um possuía uma placa de identificação, “Informática”, “Vídeo” e “Artes”. Jen girou a maçaneta da última e atravessou a porta, sem se preocupar com as instruções do professor de cabelos longos.

Alguns alunos dividiam-se em grupos resumidos, outros lavavam seus pincéis na pia ao fundo da sala, juntamente com os armários de matérias. Uma bacia de massa marrom estava posta no centro da sala.

Jen procurou um lugar mais afastado para sentar-se. Última carteira da janela, um ótimo lugar para aguentar o tédio. Fracos raios de sol entravam pela vidraça e refletiam no chão de madeira. Os alunos pareciam empolgados com a aula, murmuravam a respeito de escultura e pintura, não paravam quietos com seus aventais e luvas. O professor de cabelos longos explicava passo a passo para realizar o trabalho que pedia, de tempos em tempos mostrava-lhes o material que seria usado. Algumas alunas o interrompiam para fazer comentários, ele as respondia com alegria. Jen permanecia em silêncio.

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Seus olhos âmbar fitaram a porta que chiava ao ter sua maçaneta girada. Um amontoado de dreads coloridos estava preso num rabo de cavalo, os olhos vermelhos pareciam perdidos, a bolsa jogada de qualquer jeito no ombro deslizava e ameaçava cair. Logo o odor de maconha tomou a sala.

O professor cumprimentou o aluno e apontou para uma cadeira vazia no canto da sala, seus passos preguiçosos seguiram até lá.

Jen não conseguiu segurar as palavras ao ver William sentar-se ao seu lado.

— Puta que pariu…

Depois de alguns longos minutos de silêncio, Will tomou coragem de iniciar uma conversa.

— Poucos alunos têm nota baixa em Artes, sabia? Devemos ser bem azarados – suas palavras embebedadas afetavam Jen de uma maneira incômoda.

— É – disse ríspida.

— Então, sabe o que fazer?

— Escuta o que o professor diz que você vai saber.

Idiota, Will pensou. Soltou um longo suspiro – Valeu.

O professor concluiu sua explicação e começou a distribuir potes com massa, tinta e alguns pincéis.

— Podem fazer as duplas.

Algo dentro de Jen revirou e seu estômago veio a boca. Seus olhos caçavam um pretendente desesperado o suficiente para ser seu companheiro. Ela não queria qualquer contato com o maconheiro social. No entanto todos já tinham suas duplas.

A carteira ao seu lado foi arrastada logo após o professor depositar o pote na mesa, em seguida sorriu para os dois. Seus cabelos longos sacudiram no vento ao virar-se e seguir em direção à mesa das garotas do segundo ano.

— Então, sabe o que fazer? – perguntou irônico. Seu sorriso presunçoso fez Jen revirar os olhos.

— Uma escultura. E você não vai ser minha dupla.

Will fez uma longa pausa. Ele queria pegar suas coisas e sair dali imediatamente. Mas não podia, não mais.

— Professor! – chamou. Emanuel se dispersou de suas alunas e olhou para a dupla esperando que algo fosse dito. – Posso fazer a escultura sozinho?

— Ah, meu querido, você não vai querer fazer isso sozinho – se aproximou dos dois. Suas mãos se uniram e seu olhar se tornou filosófico. – Na vida precisamos de um par, principalmente quando vamos executar alguma atividade. Sozinho pode ser bom, sim, vejo criatividade nisso, mas assim como a palavra… É sozinho. Agora, um par. Ah, um par! Isso é belo, a união de dois seres distintos que se tornam algo novo.

— Resumindo, é para fazer em dupla.

— Sim, senhor William, é em dupla. Mais alguma pergunta?

— Não senhor, tudo esclarecido. Mais alguma dúvida? – Perguntou para sua companheira, que o olhou da maneira mais repudiante e irônica possível. Will percebeu que seus olhos eram lindos. Venenosos, porém lindos.

Jen arrastou o pote e começou a separar os materiais.

— Tudo esclarecido.

Emanuel deixou-os e voltou para suas alunas. A morena estendeu o pano sobre a mesa, amarrou seu avental e colocou suas luvas plásticas. Will a observava atentamente. Depois de breves segundos foi até o armário e tirou um avental amassado, colocou-o de qualquer jeito e dobrou as mangas da camisa azulada.

Jen percebeu que azul caia muito bem nele.

Credo, se recriminou por ter percebido algo nele.

— Acho que começamos com o pé errado – Will disse se aproximando. – William Rogers, prazer.

— Jennifer. Prazer – respondeu sem olhá-lo. – É só um trabalho, não precisamos virar amigos.

— Não disse isso. Só queria ser educado, mas tudo bem.

— Agradeço a educação, mas não preciso dela. Toma – entregou-lhe um pedaço de massa. – Faça algo produtivo com isso.

— O que exatamente você espera que eu faça?

— Algo produtivo, já disse.

— Tem como ter o mínimo de educação e me responder direito?

— Não.

Will soltou um suspiro cansado. Pela Emília, pela Emília...

— Escuta – disse, delicadamente segurou os dedos da garota que já trabalhavam com a massa – somos uma dupla, então precisamos fazer algo em dupla — suas últimas palavras saíram ácidas.

Jen percebeu o quão perto William estava, perto de uma maneira perigosa. Perto de uma maneira irritante. Pela primeira vez pôde observar melhor o rosto do rapaz. E mesmo que doesse admitir, ele era um baita de um rapaz.

E fedia a maconha.

Seus lábios rosados estavam contornados para cima, como se sempre estivesse prontos para disparar um sorriso irônico e capaz de arrancar o coração do peito. Seus olhos cor de grama eram intensos e brilhantes, algo profundo e de certa forma obscuro estava guardado ali. Os dreads não eram um amontoado de embaraços espalhados pela cabeça, estavam alinhados e muito bem feitos, iam até a metade das costas. Sua pele morena criava dúvidas a respeito de sua nacionalidade. Café com leite e caramelo, fora a única maneira que Jennifer conseguiu distinguir. William Rogers era bonito até demais, e isso ela não conseguia desmentir.

Por alguns torturantes segundos ela imaginou como seria tocar seu rosto. Mas o sentimento caiu como uma pedra e afundou no lago profundo e gelado em que seu coração estava amarrado. Talvez fosse apenas desespero.

— Quando eu era criança – iniciou tirando-a de seu transe – costumava acompanhar minha mãe nas aulas de artes plásticas. Por incrível que pareça, aprendi algumas coisas – Jen o observava. – Uma delas foi modelar massa.

— Ual – arqueou as sobrancelhas fingindo empolgação. – E o que você sabe fazer?

— Qualquer coisa.

— Certo… Mais específico.

— Qualquer – fez uma pausa longa e proposital – coisa.

— Inferno, tá. Já entendi. Alguma ideia do que fazer agora?

— Querida Jen, trabalho requer tempo e paciência…

Ele foi cortado por Jen, que puxou o pote de suas mãos – agora.

Will fingiu estar afetado e puxou o pote de volta. Olhou em volta por um tempo e viu o quão atrasado eles estavam. Percebeu, também, que os alunos só sabiam fazer vasos.

Foi então que uma ideia apareceu. – Flores.

— Que?

— Flores. Podemos fazer flores.

— Sério? – ironizou. Will a ignorou e começou a separar a massa – Que grande ideia.

— Todos estão fazendo vasos, flores seria como completar o que falta nos vasos. O professor acharia incrível e ganharíamos uma boa nota – Jen ponderou por alguns segundos. Ele tinha razão.

— Ok, vamos seguir sua ideia. Não temos tempo para qualquer outra coisa mesmo.

O moreno lhe entregou uma quantidade razoável de massa marrom

— Faça as pétalas em formato de coração, cada uma com um espaçamento dentro. Oito são suficientes. Eu vou fazer o carpelo e o pedúnculo.

— Carpelo e pedúnculo?

— Você não conhece de plantas?

— Alguém conhece?

Will revirou os olhos. – A bola no meio e o cabo.

— Fascinante.

Alguns minutos se passaram em silêncio. Will, pelo canto do olho, a observava trabalhar com a massa, enquanto formava seu pedúnculo. De tempos em tempos a morena mordiscava o lábio inferior ou cantarolava alguma canção que ele provavelmente não conhecia. Ela estava longe.

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E cantava bem.

Jennifer não era tão carrancuda como demonstrava, era apenas uma garota. Uma garota com aparentes problemas familiares e autodefesa a garotos. Seu jeito autoritário era consideravelmente irritante, e na mesma proporção, engraçado. Sem contar a beleza. Jennifer era uma morena extremamente bonita. Will se sentia culpado por envolvê-la na aposta, mas transar com ela definitivamente não seria um problema – só não se apaixona, imbecil... Pensou.

— Left a good job in the city...

— Qual música? – Will se arriscou a perguntar.

— Big wheels Keep on turnin. Proud Mary keeps on burnin’. And we're rollin’,

rollin, rollin, rollin on the river – continuou esperando que ele reconhecesse. Desta vez mexia os ombros de maneira descontraída.

— Tina Turner? Sério?

— Me desculpe, deveria ouvir alguma música clássica?

— Não. Só música boa – riu. Seu intuito não era ofender, apenas irritar.

— Idiota – seu pensamento saiu em voz alta. – O que me recomenda, professor das boas artes?

Will sorriu de canto e a olhou de maneira sexy. Jennifer segurou o riso.

— Bob Dylan.

— Ai, vai à merda – permitiu-se rir. Will a acompanhou. A garota virou seu rosto de repente para o rapaz, seu sorriso deu continuidade a música – And I scream from the top of my lungs. What's going on?

— And I say: Hey! yeah yeaaah, Hey yeah yea. I said hey, what's going on? – completou no mesmo humor. – Ual, você desenterrou.

— E essa sou eu – sorriu. Sem perceber estava confortável, com as defesas baixas.

— Alguns entendem de plantas, e a Jen entende de música.

— Exato. Digamos que eu sou uma pessoa bem eclética.

— Posso ver.

— E você, o que curte?

— Heavy metal.

— Mentira! – disse apoiando seu rosto nas mãos sujas. Uma quantidade pequena de massa sujou seu queixo.

— É sério, aqueles bem doidos mesmo. Meus vizinhos também adoram.

— E seus pais...

— Amam.

Jen riu ao tentar imaginá-lo no quarto, ouvindo música no último volume e berrando com o vocalista.

Uma presença começou a se tornar incômoda a seu lado, por soslaio ela viu um amontoado de dreads próximo. Quando finalmente tomou coragem para virar, seu queixo foi delicadamente tocado. Will a olhava intensamente, eram apenas os dois. Suas íris verdes avaliavam seu rosto, o que a fez corar um pouco, pousaram nos lábios e ali permaneceram. Seu toque era gentil, mas firme, como se ela o pertencesse. A vontade de beijá-lo veio à tona a ponto de fazê-la não se reconhecer mais. O alarme vermelho soou em seu cérebro, JEN! SAÍ DAÍ. Percebeu então que era o sinal para a próxima aula.

— Seu queixo estava sujo, foi mal – sorriu. Sua voz era incrivelmente sexy. – Não deu tempo, então terminamos na próxima aula – disse se afastando. – Tchau, Jennifer.

Idiota.