Eu de Letras, ela de Irônicas

Capítulo 03 – A garota na árvore


O que fazer quando sua mente desacostumou a ter tempo livre? Ainda eram uma e trinta e cinco da tarde, e eu simplesmente não sabia o que fazer primeiro, diante de tantas possibilidades.

A academia estava fechada, pois também abriria apenas no dia seguinte — o dia em que tudo começaria oficialmente — logo, não tinha como ir me exercitar um pouco. Socializar com os poucos alunos que tinham chegado até então também não era opção; estavam todos ocupados ou cansados demais para bater um papo e eu não estava nem um pouco a fim, para ser sincero. De igual forma fazer um tour pelo campus estava fora de questão, já que o faríamos no dia seguinte...

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Resolvi ir checar meus pertences para ver se precisava comprar algo. Quando cheguei à porta do 323 para a abrir, percebi que já estava destrancada. Meu coração acelerou por um momento, temendo por meu notebook que estava na mochila sobre a cama e também pelas outras coisas.

Só havia um problema em chegar mais cedo: o aluno era total e inteiramente responsável por absolutamente todos os seus pertences e itens pessoais, mesmo nas dependências do campus. Ou seja, se alguém fosse roubado fora do ano letivo ter começado oficialmente, a universidade não iria se responsabilizar em hipótese nenhuma (salvo em casos de atentado contra a vida, claro, mas isso era meio hiperbólico demais para se cogitar).

Comecei a abrir a porta com cuidado mas ela rangeu, me fazendo praguejar. Então abri de uma vez.

Um cara alto, forte e com a pele branca bronzeada pareceu ter levado um susto, pois virou o rosto e corpo de uma vez em minha direção. Seu cabelo era de um loiro bem claro, e fora penteado minuciosamente para a direita. Tinha barba fechada e olhos negros que contrastavam com todo o corpo. Olhos que pararam em mim logo antes de me encararem feio. Ele estava de pé, em frente à cama esquerda.

—- Posso ajudar? – perguntou, com uma voz bastante grossa.

Endireitei-me, constrangido. Aparentemente, não era um ladrão; havia uma mala aberta no chão e várias peças de roupa espalhadas sobre a cama.

— Ah... desculpe. Chad Beckerman? – perguntei, meio sem-graça por tê-lo assustado.

— Quem quer saber? – ele devolveu com certa aspereza em seu tom de voz.

Fui ao seu encontro com a mão estendida:

— Sou Andrew Campbell, seu novo colega de quarto.

Ele ergueu as sobrancelhas, desfazendo sua cara fechada e respondeu de forma um pouco mais simpática:

— Ah, sim. É um prazer! — apertou minha mão.

Então ele olhou desconfiado para a porta e me perguntou:

— Está tudo bem?

— Sim, está, sim. Desculpe o susto!

— Sem problemas. De onde você é? – ele perguntou, voltando-se à arrumação de suas coisas.

— Flórida. E você?

— Bem perto daqui, heim... – ele disse – Oklahoma City.

— A terra dos caubóis... — falei e ele sorriu brevemente antes de responder:

— Sim.

Olhei para todo o trabalho que ele ainda teria em arrumar tudo e, após um momento de silêncio, falei:

— Bem, vou deixá-lo arrumar suas coisas. Desculpe a interrupção.

Não que ele tivesse necessariamente parado para conversar comigo, mas mesmo assim, repetiu:

— Sem problemas — e dito isto voltou a se concentrar nas próprias coisas.

Comecei a verificar meus pertences — o motivo real de ter voltado para o quarto — e senti falta apenas de meu adaptador de tomadas. Procurei-o rapidamente até lembrar que na noite anterior à minha vinda, meu celular e notebook estavam carregando com o aparelho, e quando os tirei acabei por deixá-lo plugado na tomada, devido à pressa em me despedir dos vários colegas que tinham aparecido lá em casa naquele dia.

— Droga! — praguejei baixinho.

Haviam apenas duas tomadas em meu lado do quarto, e ambas já estavam comprometidas. Se eu quisesse carregar tudo o que precisava durante as noites, eu iria precisar de um adaptador. E também não podia me esquecer de um cadeado para o armário.

“Bem, a loja de materiais de construção não fica muito longe, e eu não estou com pressa para nada mesmo…”

Peguei minha carteira, colocando-a no bolso de trás de meu jeans, me despedi de Chad (que apenas ergueu uma mão, sem olhar para mim) e saí.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Assim que deixei meu bloco, adentrei a área verde da ala leste da universidade, indo em direção ao portão de ferro que estava aberto e dava passagem a vários e vários jovens trazendo malas, bolsas, mochilas e famílias. Eu passava bem debaixo de uma enorme árvore quando ouvi uma voz feminina me chamar:

— Psiu! Ei, moço!

Virei o rosto para trás, e logo percebi que o chamado não vinha necessariamente de minhas costas, mas de cima. Nesse exato momento, a voz voltou:

— Aqui em cima...

De fato, lá em cima, sentada em um grande galho marrom, estava uma moça de longos e ondulados cabelos castanhos. Ela sorriu meio sem graça e continuou a falar, assim que nossos olhos se encontraram:

— Oi... desculpe atrapalhar, mas será que você poderia me ajudar? Tive que subir aqui para ajudar uma amiga e agora não consigo descer... — seu tom de voz era meigo.

— Ah... Tudo bem. Vou buscar uma escada, só um instant...

— Não! Não precisa – ela cortou — ... quero dizer, iria tomar ainda mais do seu tempo. Será que, se eu pular, você consegue me segurar?

Seus pés estavam a cerca de um metro e meio acima de minha cabeça, então não estava tão alto assim...

— Bem... Acho que sim. — falei, sendo sincero.

— Vou pular então. Preparado?

— Sim — respondi, assim que posicionei o corpo em uma posição que me desse uma base firme.

Ela se esgueirou mais para a frente, o que fez com que a saia de seu vestido branco florido subisse um pouco, revelando mais de suas coxas. Ali, estava no limite entre a queda e o equilíbrio. Desviei o olhar do vestido por respeito, me sentindo um tanto constrangido.

— Um... dois... — ela começou a contar.

Sem chegar no "três", deu impulso nos braços e eu só vi um borrão antes de ele cair com tudo em cima de mim.

Havia pressão e peso espalhados por toda a superfície do meu corpo e uma respiração quente soprava em minha orelha esquerda. Abri os olhos e vi apenas vários fios castanhos iluminados pela luz solar — o que os atribuía diferentes tonalidades e brilhos. A garota levantou os rosto e tirou os próprios cabelos do meu. Por um instante seu rosto de feições bonitas e traços desenhados à mão preencheram todo o meu campo de visão: ela tinha um nariz afilado, lábios carnudos, olhos amendoados com longos cílios e íris castanhas, assim como seu cabelo. Tudo isso emoldurado por um rosto de pele levemente bronzeada.

Vi quando suas bochechas ficaram vermelhas e ela arregalou os olhos claramente constrangida:

— D-desculpe! — ela disse, saindo de cima de mim ao rolar para o lado sem jeito e sentar-se com as pernas juntas.

— Tudo bem... — respondi levantando e sentando-me devagar.

— Ai caramba, desculpe se te machuquei! Sou tão desastrada... — repetiu, levando uma mão à cabeça em sinal de preocupação.

— Tudo bem, sério — respondi — . Mas e você, está bem?

— Agora, muito melhor — ela falou sorrindo. Percebi algo em seu tom de voz, me pareceu algum tipo de indireta, mas não tive como ter certeza — obrigada.

— Não há de quê.

Levantei-me primeiro, pois ela ainda parou para pegar uma pistolinha vermelha que estava caída — e só agora eu tinha notado — no chão. Logo em seguida a moça levantou-se e guardou-a num bolso lateral na saia do vestido (o que também me surpreendeu, pois até então eu não imaginava que vestidos podiam ter bolsos nas saias).

Assim que meus pés firmaram meu corpo, ela quase me derrubou novamente com um abraço repentino. Aquilo me pegou totalmente de surpresa.

— Muito obrigada. De verdade! — ela agradeceu novamente, com os braços um tanto baixos demais.

Talvez fosse o fato de ela ser bem menor do que eu, chegando a bater em meu queixo, mas de qualquer forma não pude evitar a tensão gerada pelo fato de seus braços estarem poucos centímetros acima da minha bunda.

Retribuí o abraço um tanto relutante. Estranhamente, me senti um tanto mais leve neste momento. Ela se soltou do abraço tão rápido quanto o começou, e imediatamente passou a ajeitar o vestido, puxando-o para baixo e passando a mão na saia para desamassá-lo.

Seu corpo era pequeno mas cheio de curvas, e passava a impressão de ser tão delicado quanto o de uma boneca de porcelana bronzeada.

— Bem, vou indo nessa. Mas antes, poderia saber o seu nome? — perguntei.

Ela olhou diretamente em meus olhos. Estava com um discreto, mas perceptível sorrisinho um tanto... malicioso.

— Alicia. E o seu, ó resgatador de Alicias indefesas?

Não consegui não rir com aquele tom de época fingido.

— Andrew, senhorita.

— Bem, Andrew, muito obrigada novamente — ela fez uma mesura — e mais uma vez, desculpe por cair em cima de você... Não que tenha sido algo completamente terrível — me lançou uma piscadela.

Ri mais ainda, respondendo a mesura com um aceno de cabeça.

— Sem problemas. Nos vemos por aí... — falei, antes de me virar e seguir o meu caminho.

*

Dez minutos depois uma moça simpática, cuja plaquinha de identificação em seu uniforme informava seu nome, me mostrava a seção de tomadas e plugs da Benson and Sons — que era a única loja de materiais de construção que funcionava efetivamente aos domingos.

— Mais alguma coisa, senhor? — ela perguntou gentilmente.

— Não, não. Só isso mesmo, obrigado.

Ela assentiu e saiu discretamente.

No caixa, fui atendido por uma jovem que naquele calor, só podia ser gótica com tanta roupa preta. Seu cabelo fino e pintado de violeta era cortado no estilo emo, com uma franja grande e jogada para o lado e duas mechas maiores desciam pelo busto. Sua maquiagem pesada nos olhos era roxa e preta e seu rosto era um tanto branco demais.

— Três dólares e vinte e cinco centavos. — falou de forma mecânica.

Levei minha mão ao bolso traseiro para puxar a carteira e um calafrio percorreu minha espinha.

Onde estava minha carteira?

Apalpei o outro bolso. Depois os da frente. A garota do caixa me olhava com uma expressão de puro tédio, como se já tivesse visto aquela cena muitas e muitas vezes. E isso não ajudou em nada.

— Desculpe — falei, totalmente sem graça — mas acho que fui roubado.

— Tem certeza de que não a esqueceu no quarto? — ela perguntou solidária, embora seu tom de voz não tivesse sido alterado nem um pouco.

— Infelizmente, eu a trouxe comigo até...

E então minha mente clareou. O abraço, as mãos baixas, a sensação de estar mais leve...

Como era mesmo o nome dela?

— A garota na árvore! — pensei alto — Alicia!

A gótica levantou uma sobrancelha sem muito interesse.

— Caramba. Aquela... Argh! — voltei-me para a menina no caixa — Olha, desculpa. Tenho que ir...

— Isso acontece com mais frequência do que os índices mostram. Boa sorte... — ela desejou, mesmo que sem muita emoção.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Agradeci mais que rapidamente, virei-me e corri na direção da saída.

Então a árvore, a queda e tudo o mais fora um plano para roubar o primeiro desavisado que passasse por ali... Desavisado este que desta vez, por descuido, tinha sido eu.

Porém isso não ia ficar assim de jeito nenhum. Ela não poderia ser acusada ou revistada antes das aulas começarem, mas eu iria encontrá-la. Ah, mas iria mesmo!

Espere por mim, senhorita!