Eu de Letras, ela de Irônicas

Capítulo 19 – Aula de dança


Eu pensava no que fazer. Bolava uma desculpa qualquer e não comparecia ou deixaria de coisa e iria sim?

“Oioi Andrew! Só queria lembrar que marcamos sua primeira aula de dança pra amanhã. Você saiu muito rápido e não deu tempo de te falar, mas é isso. Vou te esperar, heim!

Boa noite e beijinhos moço !

P.S.: Espero que esteja tudo bem. Fiquei um pouco preocupada contigo, você parecia meio aflito, algo assim. Se puder me deixar mais tranquila, ficaria grata”

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Eu tinha me esquecido completamente disso. E agora?

Olhei meu reflexo sem camisa no espelho do banheiro. Eu não ia dar um furo sem um motivo aparente. Não era do meu feitio. Além do mais, eu já tinha resolvido aquela questão comigo mesmo. Aulas de dança grátis, lógico que eu iria!

Travei o celular e o deixei sobre a pia mesmo. Hora de terminar de acordar para ir aprender lições diferentes.

*

Anna estava em frente ao bloco feminino onde morava e sorriu quando viu eu me aproximar:

— Bom dia moço! Como você está?

Cumprimetnte-a com um aceno de cabeça:

— E aí! Estou bem e você?

Ela vestia a blusa amarela solta e bastante decotada nas laterais com um top preto por baixo, uma calça saruel também preta e tênis de exercícios físicos. Uma bolsa esportiva transversal amarela conseguia combinar com a blusa e o restante do conjunto sem muito esforço. Cara, como ela conseguia?

— Ótima. - Ela ergueu uma sobrancelha - Tudo certo mesmo, né?

Eu sabia que ela se referia à ontem, provavelmente coletando informações pra saber se algo tinha acontecido, mas decidi não revelar nada. Não valia a pena.

— Tudo certo mesmo. E com você?

Não consegui decifrar aquela expressão que ela fez por uma fração de segundos, mas segui em frente:

— Tudo certo mesmo também. Então, preparado?

— Vamos nessa então!

Segui-a pela área verde até o prédio a leste do dormitório masculino. Anna me conduziu pelos corredores vazios até pararmos em frente a uma porta relativamente grande, bege, que abria tanto de um lado (quem entrava) quanto do outro (quem saía).

SALA DE DANÇA - Lia-se na placa acima das portas.

Anna tirou uma chave do bolso e começou a destrancá-la.

— Você tem a chave da sala de danças? - perguntei, perplexo e surpreso

— Eu tenho uma cópia desde que entrei aqui, praticamente. A senhorita Cachita tem sido minha professora durante todo esse tempo e confia em mim.

O clique indicou que a sala estava aberta.

— Moço, conheça o lugar onde venho quando estou com a cabeça cheia, estressada ou nervosa; o meu santuário. — Dito isto, ela empurrou as portas e entrou, mostrando-me o local.

Era bastante espaçoso. Mais ainda devido ao efeito causado pelos espelhos grandes espalhados por todas as paredes, cobrindo-as do chão ao teto. À frente dos espelhos e presos ao chão, haviam barras redondas de ferro, dispostas em intervalos de cerca de um metro e meio, mais ou menos (que também circulavam todo o recinto, como um tipo de grade de proteção que não segurava nada, embora eu soubesse que a finalidade delas não era proteger, mas alongar).

— Fique à vontade e pode deixar suas coisas onde quiser. Estamos em território conhecido - ela disse, deixando sua bolsa em um canto qualquer enquanto ia em direção a uma portinha, mais afastada -. Vou arrumar o som.

Me aproximei da bolsa amarelo-clara dela deixando a minha, preta, coincidentemente de mesmo estilo e marca, bem ao lado.

— Aproveita pra se alongar, enquanto isso - ela gritou da salinha. Era uma boa ideia pra poupar tempo.

Encarei a mim mesmo no grande espelho à minha frente. A regata branca e leve em contraste com a saruel preta que eu nem lembrava que tinha e o tênis confortável. Levantei meu pé direito para trás e o segurei com a mão.

Não muito tempo depois, uma música suave, ritmada e relativamente lenta começou. Não demorou para que ela saísse da salinha e voltasse a se aproximar:

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— Como estamos com pouco tempo até as férias de inverno e você só precisa de molejo, vou te ensinar o básico de três estilos diferentes: a energia do break, o gingado das danças latinas como a salsa e o forró e a graça e delicadeza do balé. Tudo bem?

Assenti com a cabeça, olhando-a nos olhos. Ela sorriu assumindo uma expressão desafiadora.

— Se não ficar uma obra-prima, vai ficar, no mínimo, excelente. Vamos treinar duro, então confio no seu condicionamento físico. Trouxe água?

— Sim.

— Bastante?

— Duas garrafas de 550ml.

— Pode ser que você queira tomar mais depois, mas isso é o de menos; há um bebedouro lá fora. A primeira questão é: você está preparado?

Pela forma como ela falava, parecia ser algo dificílimo de se aprender. Ótimo, ia me distrair e tirar minha cabeça da preocupação com as provas finais.

— Manda ver.

— Ainda não. A segunda questão, e a mais importante: pode substituir os treinos diários na academia por exercícios diários aqui comigo? - ela levantou uma sobrancelha, séria.

Opa, por aquela eu não esperava. Anna não tinha dito nada sequer relacionado até aquele momento e, por um instante, eu não soube como reagir.

Pensei um pouco. Eu já treinava há três anos, não teria problema nenhum dar um descanso aos ferros.

— Sim. Posso sim.

Ela arqueou apenas o canto de um dos lábios, satisfeita.

— Ótimo. Seu treinamento começa agora - ela se colocou bem diante de mim e praticamente me estapeou ao travar as duas mãos na minha cintura em um movimento brusco que me pegou desprevenido -. Para te deixar por dentro, o nosso maior desafio será fazer você aprender a mexer essa cintura e mexer da maneira correta: elegante e sensualmente. Dança é isso. Estamos entendidos?

Ela olhava bem nos meus olhos. Cara a cara, embora fosse uma cabeça e mei menor. Assenti.

— Beleza, você já se alongou?

— Aham.

— Ótimo. Então, vamos agora para os primeiros movimentos - ela se colocou ao meu lado com uma agilidade surpreendente - vamos desbloquear essa região.

E então, começou a rebolar. Para um lado e para o outro, repetidamente, ritmicamente. Tentei imitar, mas não era tão fácil quanto parecia: eu olhava para sua cintura, tentando copiar o movimento de seu quadril com os olhos e transmiti-lo ao meu enquanto ela me avaliava pelo espelho.

— Se mexe, Andrew. Mais rápido. Mais rápido. Você está sem ritmo. De novo, vamos. Mais rápido…

Vinte minutos depois, com movimentos para os lados, frente e trás, minha cintura formigava, uma sensação parecida com queimação se espalhara pela área e continuava intensamente e eu estava cansado.

— Você começou a pegar o jeito. O.k., podemos parar.

Como se eu não o tivesse feito umas trinta vezes, em intervalos repentinos à medida que a necessidade ia surgindo. Anna aguentou fácil e apenas respirava mais rápido.

— Certo, respira um pouco. Sente seu corpo enquanto isso - uma breve pausa -. Como está?

— Quente. Minha cintura está queimando…

— Maravilha, você está vivo! Vai aprender aqui que a dança é fantástica a ponto de te fazer cair na real de uma forma completamente diferente: você está vivo, mas de forma ofegante, quente, suada. Você está energizado, seu coração bate mais rápido e a adrenalina corre solta por suas veias. Sim, você está vivo, não da forma como qualquer outro lá fora, mas de forma mais única: conectado intensamente com o próprio corpo.

Ela falava aquilo numa empolgação tão clara que até tinha me animado. Vivo em conexão com meu corpo. Gostei.

— O.k., vamos ao próximo passo: os movimentos básicos dos quatro membros principais na dança.

Anna me ensinou como mexer as pernas, fazendo com que me levassem de um lado para o outro de uma forma diferente da que eu estava acostumado. Enquanto isso, os braços deviam seguir com disciplina o movimento das pernas e cintura - que ela tinha dado um jeito de envolver também -. O.k., dançar não era tão fácil assim.

— E umdoistrêsquatrocincoseissete e oito. E um, dois, não, assim não. De novo. E um, dois, trêsquatro… De novo. E um, doistrêsquatrocinco… Isso, seis, sete e oito. Novamente: e umdoistrêsquatro, cincoseis, sete e oito. Melhorou um pouco, vamos novamente.

Eu não sei quanto tempo se passou, mas quando Anna dissera que “por hoje era só”, tinha me dado conta de que a luz estava acesa, eu estava bastante suado a ponto da camiseta grudar em todo centímetro de pele que abrangia, já tinha enchido as duas garrafas mais de uma vez e estava sentado no chão esvaziando uma delas novamente.

— Você vai precisar se alimentar muito bem esta noite, de preferência com alimentos não tão pesados e descansar logo em seguida. Muito. Olha, tenho que admitir que foi um bom começo.

Engoli aquele líquido refrescante e precioso. Cara, a água da dança tinha um gosto melhor que a da academia. Olhei para ela, tentando controlar minha respiração acelerada.

— Como se sente? - ela perguntou.

— Cansado. Pra caramba.

— Só isso? Nenhuma tontura, dor de cabeça…? - ela se sentou ao meu lado.

— Não, ainda não.

— Você está bem vermelho. Respira…

Encarei a mim mesmo no espelho e me surpreendi com o quanto era verdade. Parecia que eu tinha voltado a ter sete anos e estava brincando de correr com Dylan e Alexander no quintal de casa. O rubor espalhado pelo meu rosto era do mesmo tom que o daquela época.

— Uau… - surpreendi-me.

— O que foi?

— Eu… tinha me esquecido de como era ficar vermelho de tanto me mexer. Faz muito tempo que não acontece dessa forma… - respondi sem deixar de avaliar meu rosto suado refletido.

Anna soltou uma risadinha. Olhei para ela:

— O que foi?

— Teve uma pontada leve e meio saudosista na sua lembrança sobre si mesmo. Achei bonito, só isso.

Continuei encarando-a, sem expressão. Ela não estava brincando ou mandando indiretas, apenas… sendo sincera. Hum, eu poderia me acostumar com essa Anna tão diferente. Centrada, direta, didática…

Então ela assumiu um olhar pensativo. Outro sorrisinho escapou enquanto ela observava o nada à sua frente.

— No que está pensando? - questionei.

— Estava te imaginando quando criança... Um Andrewzinho alegre e pimpolho, que não pára quieto. Depois, você de agora. Um ao lado do outro e, por fim, apenas você.

— E… - quis saber.

Ela tornou a olhar para mim:

— E me surgiu a pergunta: alguma vez você, quando menor, se imaginou ao menos parecido com o que é hoje?

— Fisicamente?

— Em qualquer aspecto.

Pensei por um momento.

— Não. Acho que em nada. Quando pensava em mim mesmo adulto, me via de uma forma completamente diferente. Eu era completamente diferente, na verdade.

— Você se via como?

— Ah… digamos que ao lado de alguém importante para mim, com um bom emprego e uma boa casa e um bom cachorro também - não pude evitar o riso que me veio quando lembrei do cachorro que eu idealizava anos atrás -. Era sempre um pitbull ou golden retriever, esperto e brincalhão que cuidava da casa enquanto eu estava no meu trabalho de bombeiro - ri novamente.

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Anna riu também:

— Você queria ser bombeiro? Que engraçado! - ela ria divertidamente - Não consigo te imaginar como bombeiro. Definitivamente não.

— Ah, qual é. Eu teria dado um bom bombeiro - brinquei.

— Não acho, desculpe - ela se recompôs aos poucos -. Bem, e o que o fez mudar de ideia?

— A vida. Quer dizer… a gente cresce, amadurece, descobre coisas que são e o que não são pra gente, essas coisas.

— Entendo. Em algum momento a vida te mostrou que você amava as palavras… Mas espera, naquela idade você já idealizava tudo isso? Esposa, casa e tudo o mais?

— Bem, eu sempre tive bastante imaginação - dei de ombros.

— Uau! Na minha época eu só queria cortar o cabelo das Barbies e riscar a cara delas com canetinhas de diversas cores mesmo - ela soltou.

Não sei por que, mas aquilo me fez gargalhar. Foi engraçado imaginar uma Anninha com bonecas arruinadas nas mãos e um sorriso travesso no rosto. Anna gargalhou junto.

— Ah, toda garota já brincou de salão de beleza com as cobaias inanimadas que tinha em casa - ela deu de ombros, sorrindo.

— Aposto que sim… - acrescentei, tomando outro gole de água para me acalmar.

— Bem, como você a imaginava? - ela perguntou.

— Hum? - perguntei com a boca cheia de água.

— Sua esposa. Como você a via na época?

Engoli em seco logo depois de ter engolido a água.

— Ah, eu… Bem… Digamos que talvez eu a inspirasse em alguém que conhecia na época.

Anna piscou. Não tirava os olhos de mim, esperando por mais.

Mas aquele assunto encerrava ali. Eu tinha que ir tomar banho.

— Ah, que horas são? Acho que está tarde. - perguntei, olhando ao redor.

Ela olhou no relógio em seu pulso:

— Sete e nove. Uau! Realmente está tarde - ela se deu conta, levantando-se de sobre as próprias pernas.

Fui até minha bolsa e guardei a garrafa quase vazia.

— Amanhã nos encontramos aqui no mesmo horário, pode ser? - ela perguntou enquanto trancava a salinha.

— Pode sim. Estarei aqui.

— Ah é! Se você não estiver dolorido, claro - ela se virou e veio em minha direção - qualquer coisa, só me mandar uma mensagem!

— Beleza. Bem, obrigado! - falei, com a bolsa já presa pela alça atravessada em meu peito.

Anna terminava de guardar suas coisas.

— Que isso! Foi um prazer - ela fechou a bolsa e se levantou - e vai ser maior ainda quando ver você se mexendo sem parecer um pedaço de tábua. Esses movimentos - ela tocou rapidamente em minha cintura - podem fazer bonito dentro e fora das pistas de dança, para outras coisas - ela me lançou uma piscadinha danada e deu a volta por mim, indo em direção à porta.

Essa moça…

Me dei conta de que devia segui-la e assim o fiz.

— Então, nos vemos amanhã se você estiver se sentindo bem. - ela disse, por fim, ao trancar a sala de dança.

— Qualquer coisa, eu aviso.

Ela se virou para mim novamente e levantou a mão direita, deixando-a no ar:

— Mandou bem, novato. Você vai arrasar, tem potencial.

Highfive!

Dei um sorriso breve:

— Obrigado mestra. Não vou decepcioná-la! - brinquei, fazendo uma continência sem saber exatamente por quê.

Anna não escondeu a surpresa.

— Esse Andrew descontraído é tão divertido… Eu sei que não vai. Bom, boa noite!

Dito isto, ela passou por mim novamente. Desta vez, beijou os dedos da mão direita bem rapidamente e tocou em minha bochecha enquanto se afastava sem olhar pra trás.

— Boa noite… - respondi, processando o que tinha sido aquilo.