Música, Sangue e Eternidade

Capítulo 2: Estranha Surpresa


A dor fez com que despertasse de vez, e, sobressaltado, Andrei rapidamente acendeu a lamparina na cabeceira da cama. A figura indistinta que antes estava sobre si pareceu assustar-se, rastejando para trás, aprumou-se. Quando chegou à porta atirou-lhe um último olhar insolente, deslizou por entre a porta e o batente e desapareceu.


Goddard olhou rapidamente para a poltrona. O segundo vulto parecia desmaterializar-se pouco a pouco. Logo, já não se encontrava mais lá. Agitado e com a boca seca, acabou por levantar-se. Só então percebeu como estava trêmulo. Respirando fundo diversas vezes, resolveu fazer a única coisa que o acalmaria: Abriu o estojo, retirando o violino. Segurando-o com a mão esquerda, passou a mão direito sobre o instrumento, como se acariciasse a pessoa amada, a respiração tornando-se novamente regular. Posicionou-o em cima da clavícula esquerda, apoiando-o de leve não ombro, levantou o arco e logo começou a tocar Greensleeves*.


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Como sempre, a música acalentou-o e ele perdeu a noção de tempo.


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Empolgou-se tanto com sua música, que quando saiu de seu quarto já passava das duas da tarde. Sentiu-se terrivelmente culpado e envergonhado – seu pai teria um desgosto e tanto se fosse vivo e soubesse disso. Mas quando chegou à sala para desculpar-se por sua indelicadeza, encontrou Marion à mesa, ela explicou-lhe que por ali não costumavam aparecer antes desse horário.


-Quanto ao meu marido... Teve de comparecer a uma refeição na cidade.



O riso debochado que acompanhou essa afirmação arrepiou-lhe o braço, embora o rapaz nada achasse de extraordinário na frase.



- Estão casados há muito tempo?


-Sim, muitos e muitos anos.


-Ora, minha senhora - Goddard achou graça – não pode ser a tanto tempo. És jovem. E quanto a filhos?



- Filhos? Não os tenho. Na verdade, jamais os quis.*



A dureza com que foram ditas essas palavras surpreendeu-o e Goddard olhou-a com atenção pela primeira vez naquele dia, do casaco de arminho feito sob medida jogado sobre os ombros ao sapato preto e branco. Usando sempre alguma jóia – hoje era um bracelete de ouro com esmeraldas – os cabelos bem penteados e sem usar qualquer perfume, a jovem era de fato estonteante, mas algo o repelia. Deu-se conta então de que estavam sós. Era estranho estar perto de uma mulher com a qual não tinha nenhum parentesco, sem nenhuma testemunha respeitosa por perto, como o marido ou uma dama de companhia. Como que lendo seus pensamentos, Marion mudou de assunto:


- É impressão minha ou ouvi o senhor tocar hoje? Parecia tão interessante, adoraria ouvi-lo tocar mais uma vez.


Ela sorriu e esse sorriso fez algo agitar-se no fundo de sua mente, sem, no entanto chegar de fato, a saber, o que era. Incomodado, resolveu não pensar nisso por hora.


-Será um prazer, senhora.



Buscou o violino e passou o resto do dia a tocar composições próprias, para deleite de Marion.



Muito mais tarde, quando Charles chegou – Andrei tocava “Toccata & Fugue” * - , cumprimento-os rapidamente e saiu, a fim de trocar-se para a refeição. Se o violinista tivesse prestado atenção, poderia ter notado poderia ter notado a mancha vermelha na camisa branca de seu anfitrião.



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Com a chegada da noite, chegou também sua apreensão. Andrei nunca foi um homem de temer pesadelos, mas aquele fora tão real que ele não gostava nem um pouco da idéia de voltar ao quarto. Começou a perguntar-se se não seria melhor ter hospedado-se em uma pensão ao invés de aceitar ficar na mansão Remarque.



Foi a primeira vez em anos que rezou antes de dormir. Havia esquecido de que, para surtir efeito, orações precisam ser feitas com fé e não apenas por necessidade. Se ele ao menos tivesse por perto seu violino, talvez este tivesse um efeito bem maior que suas orações.



Mas naquela noite seu sono foi calmo, – se comparado aos seus temores - embora sentisse, mesmo dormindo, estranhas sensações: Um frio repentino e paralisante, seguida de uma espécie de estrangulamento e a horrível sensação de estar a perder todo o seu sangue. A sensação era incômoda, mas nem de longe tão ruim quanto seu sonho com os vultos misteriosos.
Teve também a impressão de percorrer corredores longos e muito escuros, – como um tumba - ao longe podia ouvir sons de muitas vozes que falavam muito lentamente e ao mesmo tempo, acompanhadas bem ao fundo do uivo dos lobos.
Se estivesse consciente de todo, juraria sentir as mãos pequeninas e frias de alguém passando por seu pescoço, arrepiando-lhe, fazendo sua respiração ofegar. Os lábios muito frios de alguém pressionando o pescoço, onde antes acariciava e de novo a sensação de lentamente perder o sangue. O coração de Goddard batia apressado. Por fim, ele perdeu de vez os sentidos.


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Quando despertou, duas horas mais tarde, atordoado e enfraquecido, a claridade do sol já era visível. Sentou-se na beira da cama, tentando reunir forças para levantar-se, o que só conseguiu depois de um grande esforço. Arrepiou-se quando olhou para o espelho posicionado em cima da cômoda: Teve a nítida impressão de ter visto sua imagem desaparecendo, e que o quarto encontrava-se vazio. No entanto, isso não durou mais que um segundo – mas foi o suficiente para acordá-lo, como se tivesse tomado um banho de água fria.



Vestindo um roupão por cima do pijama, chegou mais perto do espelho. Sua imagem ainda estava lá, mas era muito pálida. Qualquer pensamento que pudesse ter logo foi varrido de sua mente: Tentou erguer o violino, sem sucesso. Era como se o instrumento fosse extremamente pesado. Talvez fosse o cansaço de duas noites mal-dormidas, não conseguiria tocar e tampouco dormir. Ansioso, resolveu caminhar pela casa – tinha permissão para andar por toda ela, com exceção da ala leste, por ser ali os aposentos do casal, como bem explicou-lhe Charles. Decidiu-se pela biblioteca já era perto e ele nem chegara a entrar lá. De mais a mais, nunca gostara muito de ler mesmo. Possivelmente isso o ajudaria a acalmar-se.



Pesadamente e lentamente ele saiu de seu quarto, dirigindo-se cuidadosamente para que a vela que acendeu para guiar-lhe os passos não se apagasse. Os livros atulhavam as estantes da biblioteca aos milhares. Uma pena quase todos estarem estragados, embora alguns ainda pudessem ser manipulados sem virar pó.



Quando finalmente interessa-se por algum – “A noiva de Corinto” *, de Goethe – a vela iluminou uma moldura na parede, e o brilho acabou por lhe chamar a atenção. Deixando o livro de lado, Andrei iluminou o quadro.


A pintura obviamente restaurada há pouco tempo era pequena, com pouco menos de meio metro. Não foi sem espanto que ele contemplou-a, uma vez que reproduzia exatamente a figura de sua trisavó Nellie Alta Goddard!


Continua...