Camisolas e cabelo
Cachos voando por todo lugar
A dor muito pura para esconder
Ponte dos suspiros
Feita para esconder mentiras
Sob os arcos
De repente fácil
Contemplar o porquê

Emilie Autumn

Aquela manhã estava fria e chuvosa. Nuvens carregadas cobriam o céu. E a chuva ganhara a feia mania de ir e voltar a todo tempo.

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Mary Watson não se importou com o tempo. Fossem seus hormônios à flor da pele, fosse seu tédio por estar de licença, ela simplesmente se vestiu, pegou seu guarda-chuva e foi para a rua. Pegou um táxi, afinal grávidas não devem dirigir, falou um endereço qualquer ao motorista e só então pôs-se a pensar para onde queria ir. Por sorte ela tinha dito um endereço distante, pois Mary demorou a decidir para onde iria. Ela só queria sair. Foi então que a ideia finalmente surgiu.

—Mudei de idéia. — disse ela, cutucando o motorista. — Waterstone’ s Piccadilly, por favor.

Ela se recostou no banco, respirando fundo e soltando uma leve risadinha quando ouviu o motorista resmungar “Grávidas...” enquanto girava o volante. Pensou no assunto. Aquela história de que mulheres mudam de ideia o tempo todo só por que estão grávidas era pura bobagem. Mulheres mudam de ideia o tempo todo por que são mulheres. Homens não costumam mudar de ideia por que normalmente são orgulhosos demais para reconhecer que estavam errados. Mary cruzou os braços, olhando pela janela do carro e sentindo-se vitoriosa por mais uma vez retirar mentalmente a culpa das mulheres e colocá-la nos homens. Afinal a culpa sempre era deles. Sempre.

O táxi parou, Mary pagou, desceu e encarou a construção imensa à sua frente. Waterstone’ s Piccadilly era uma livraria, bem no coração do West End, de fato, era a maior livraria da Europa, possuindo oito andares, seis deles dedicados a livros, e uma coleção de 150 mil livros no estoque, uma garantia de que sempre se encontrará o livro que se está procurando. Além dos livros em si, há ainda um café no segundo andar e um restaurante no quinto andar.

Mary entrou na livraria, já sentindo a agradável temperatura ambiente que contrastava com o frio rascante do lado de fora. Subiu uma leva de escadas lentamente, chegando ao W Café. As paredes impecavelmente brancas, as mesas, pequenas e grandes, rodeadas por poltronas de cores calmas, as luzes colocadas estrategicamente para fazer o local parecer bem maior, as estantes cheias de livros, os balcões cheios de biscoitos, bolos e outros quitutes...

—Ah... — ela suspirou para si mesma. — Mary, você está no céu...

**

—Violet, você está no inferno...

Foi a única frase que Violet conseguiu montar e dizer para si mesma, sentada na sala de recepção do Barts. As paredes impecavelmente brancas, as pessoas com roupas impecavelmente brancas, o chão impecavelmente limpo, o teto sem ao menos uma teia de aranha...

Ela levou as mãos à testa, curvando-se sobre seu corpo e afundando os dedos em seu cabelo.

—Isso só pode ser o inferno... — murmurou para si, esfregando a testa com as palmas das mãos.

Ela não comera. Desde que tudo acontecera seus hábitos alimentares haviam sido prejudicados, mas agora Violet não comia nada. Tentara algumas vezes, mas não os segurava. Vomitava todas as vezes. Passara o dia anterior em completo regime, e mesmo assim, se lhe oferecessem algo para comer após tanto tempo sem alimento, ela provavelmente recusaria.

Ela não dormira. De fato, toda vez que fechava os olhos e começava a adormecer, a visão tétrica da Dra. Handler morta dentro da caçamba de lixo surgia como um outdoor ante seus olhos. Então ela se levantava, coberta de suor, gemendo sem saber o motivo, controlando a respiração acelerada. Assim passara a noite inteira, relembrando, visionando e nunca adormecendo. Chegou ao ponto de sonhar com a médica saindo da caçamba, com suas roupas manchadas de sangue e seu pescoço lacerado, caminhando em sua direção e implorando ajuda. Violet acordou gritando, amaldiçoando qualquer um que lhe viesse à mente, chegando a socar o travesseiro e atirá-lo porta afora, afundando o rosto no colchão e berrando tudo o que seu pulmão aguentava. Ela não mais aguentava.

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Ela teve um momento de paz. Foi naquele horário, exatamente às 11:23 da noite, quando ela, envolta em seus pesadelos, foi desperta por um apito de seu celular. Mensagem de texto. O coração dela apertou. Ela já não sabia quem estava mandando uma mensagem...

Violet pegou o celular e olhou. Quase sorriu.

“Boa noite” dizia a mensagem. O remetente era Sherlock Holmes.

Ela ficou confusa. Por que ele mandaria uma mensagem de boa noite? Por que ele se importaria com isso? Por que ele se importaria?

Não se importaria. Ela sabia disso. Provavelmente mandou a mensagem para acalmá-la, e para que ela não socasse algum outro espelho inocente. Violet sentiu-se uma completa idiota, e sentiu vergonha por ter feito aquilo. Por que mesmo ela tinha feito aquilo?

Mas ela se sentiu bem. Por três minutos, naquela noite, ela se sentiu bem. E apesar das borboletas rodopiando como loucas em seu estômago, ela respondeu.

Mas agora, sentada na recepção do Barts, ela não se sentia bem. Havia algo errado com ela. Uma sensação horrível que ela não conseguia expressar. Algo preso que queria sair.

Lestrade lhe dissera que aquilo era necessário. Apesar de ela conhecer a Dra. Handler há muito pouco tempo, ainda assim era uma das poucas amigas que a boa e finada médica possuía. Ela trabalhava no hospital cercada de outros médicos e enfermeiros, mas não travara amizade com nenhum deles. Ela era sim, uma pessoa solitária.

Violet olhou através da porta que dava para a rua, vendo dezenas de pessoas indo e vindo. Pensou em quantas delas tinham muitos amigos, e quantos numa hora de precisão podiam contar com eles.

Passos se aproximaram. Dimmock postou-se em frente a ela, olhando-a de modo indiferente. Violet sabia que aquele era Dimmock, por que ele usava aquela roupa quando a buscou na Scotland naquela manhã, enquanto ela ainda conversava com Lestrade.

—Vai querer reconhecer o corpo agora ou... — ele disse.

Ela assentiu, sem dizer nada, e o seguiu. Violet andava como um androide. Cada passo seu parecia pesar toneladas. Ela ainda pensava na quantidade de amigos que as pessoas deviam ter, e quantas realmente tinham. Abraçou o próprio corpo, sentindo-se incrivelmente só.

**

—Vai querer usar seu cartão de fidelidade? Este é seu décimo chá aqui no W Café.

A balconista sorria para Mary, que também sorria, só que seu sorriso era para os bolinhos de chocolate.

—Pode ser. — ela disse rapidamente, servindo-se e levando seu chá e sua pirâmide de bolinhos de chocolate para sua mesa. John não estava lá, assim ela podia se esbaldar naquelas delícias culinárias sem culpa. Resolveu começar pelos bolinhos, mas aqueles biscoitos de côco e amendoim não perdiam por esperar...

Ela sentou-se calmamente, pegando seu livro e olhando pela janela. Mary escolhera um ótimo lugar, bem ao lado da vasta janela de vidro, onde a chuva que começara há pouco batia e desenhava longas linhas até sumirem na moldura de madeira. O local estava quase vazio, assim nem o som de conversas alheias existia. Ela comeu um bolinho, respirando fundo. Que delícia...

Mary abriu seu livro. Pegara um naquele andar mesmo, pois não conseguiu se convencer a subir mais escadas para checar os outros andares. Apesar disso ela encontrara um exemplar que a interessara. Ela já lera tantos livros sobre maternidade que já não suportava mais tantos conselhos que ela já seguia antes de conhecê-los. Resolveu assim ler sobre outro assunto. Luto. Mary sabia como a morte rondava a todos. O que incluía pessoas que ela amava, assim achou apropriado inteirar-se do assunto para ajudar alguém querido, ou então para ajudar a si mesma. Mary riu para si mesma ao abrir o livro. Ela estava tão sentimental...

“Entendendo o Luto”, assim o livro se chamava. Após outro bolinho e um gole de chá, Mary começou a lê-lo.

O luto é um sentimento que mais cedo ou mais tarde todos experimentarão, pois todos se defrontam com a morte de alguém querido durante a vida. A maioria das pessoas encontra-se despreparada para a perda, pois dificilmente ou quase nunca esperam que isso aconteça.

Sentimos angústia com qualquer tipo de perda, mas é com a morte que os sentimentos são muito mais fortes, perceptíveis e demoram mais a passar.

Pouco tempo depois da morte da pessoa querida, a maioria das pessoas sente uma espécie de atordoamento emocional, como se não conseguisse acreditar no acontecido. É uma sensação de irrealidade que impede a pessoa de enxergar o que realmente aconteceu. Confrontar-se com o corpo da pessoa falecida, apesar de ser angustiante, ajudará a pessoa a sair desta fase e passar mais rapidamente para a próxima.

**

Pessoas de jaleco passavam sem olhar para cima ou para os lados. Estava tão ocupadas com suas pranchetas que nem se davam conta do que havia ao seu redor. Se alguém colocasse uma pedra no meio do caminho, só por brincadeira, provavelmente muitos daqueles profissionais tropeçariam.

Violet parou na porta da sala branca e pequena. Sua respiração agora era meros sopros rápidos e sem efeito. Ela podia ver a maca de cor prata e o imenso saco preto sobre ela. Ela sabia o que tinha lá. Suas mãos suavam, geladas. Ela não queria entrar.

—Venha aqui. — disse Dimmock, sendo mais gentil que antes. — Vai ser rápido, eu prometo.

O enfermeiro-legista ao lado dele estava claramente impaciente. Com certeza ele estava tão acostumado a ver gente morta que não entendia por que aquela moça de olheiras escuras e aspecto quebradiço não queria entrar na sala. Era só entrar na sala, abrir o saco, olhar o defunto e dizer quem era, ora!

Ela deu o primeiro passo, daí o segundo, e o terceiro. No fundo, ela ainda não acreditava em nada do que havia acontecido. Estava preocupada, claro, mas não conseguia realocar-se com sua nova realidade. Ainda pensava que, um dia, quando acordasse, tudo estaria exatamente como era antes de ela passar por aquela rua, no meio da madrugada, tanto tempo atrás. Para ela, aquilo fazia tanto tempo. Sentia-se como que num sonho.

Quando o enfermeiro abriu o saco, porém, o sonho acabou.

**

Após a dormência emocional pode vir uma sensação de inquietação e angústia, e talvez um desejo incontrolável de ter a pessoa de volta, mesmo que isso seja impossível. Essa sensação torna difícil relaxar ou concentrar-se e pode dificultar o sono natural. A pessoa pode ter pesadelos.
Nesta fase algumas pessoas "veem" a pessoa onde quer que estejam - na rua, no parque, ao redor da casa, etc. A fase de inquietação pode ser dividida em duas sub-fases:

Raiva
Muitas vezes as pessoas sentem raiva nesta fase do luto – dos médicos, enfermeiros e outros profissionais que não impediram a morte, amigos e parentes, ou mesmo da própria pessoa finada.

Culpa
As pessoas reviram mentalmente tudo o que gostariam de ter dito ou feito para a pessoa falecida. Algumas chegam a considerar algumas coisas capazes de ter evitado a morte.

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A depressão, comum a quase todos os lutos, pode tornar-se muito mais grave, e um sinal disso pode ser quando a comida e a bebida são recusadas, assim como noites insones que podem continuar por muito tempo e tornar-se um problema sério. É necessário cuidado e atenção, pois pensamentos de suicídio podem vir a surgir.

**

O barulho do zíper se abrindo ecoou pelas paredes. Foi um ruído alto e irritante, e o enfermeiro o fez tão rápido que Violet teve um sobressalto. O enfermeiro afastou os lados do saco preto, abrindo-o por completo e revelando primeiro o rosto da vítima, depois o resto do corpo. Violet virou o rosto, cobrindo a boca com as mãos e fechando os olhos.

—Rapaz... — repreendeu Dimmock. — Você deixou o cadáver com os olhos abertos!

—Desculpe, eu fecho.

Violet permanecia de costas, a mão sobre a boca, os olhos apertados. Dimmock tentou colocar a mão sobre o ombro dela, mas ela se afastou instintivamente. Ele colocou as mãos nos bolsos de seu casaco, visivelmente envergonhado.

—É ela? — disse.

—Sim.

—Você confirma que esta é a Dra. Lisa Handler?

—Sim! — ela explode, mantendo-se de costas e encarando a parede. — Vocês a abriram e reviraram tudo nela, deviam já saber disso!

Dimmock ficou em silêncio. Os acontecimentos do dia anterior visivelmente o haviam afetado profundamente. Talvez até o tivessem amadurecido. Ele olhou a moça ao seu lado por um tempo, daí fez sinal para que o enfermeiro o seguisse. Os dois saíram, deixando Violet sozinha.

—Por que a deixou lá? — perguntou o enfermeiro.

—Por que todos precisamos de uma chance de dizer adeus.

Violet ficou imóvel por alguns instantes. Arfou algumas vezes, tentando recuperar o que restou de seu fôlego. Sentia seu corpo definhar, lentamente, e não via como impedir o processo. Ela fechou os olhos, sem saber onde colocar as mãos. Não sabia quanta força ainda lhe restava. Sua sequência de autodestruição havia sido ativada. Estava morrendo, bem aos poucos.

Ela se virou para o corpo. O saco ainda jazia aberto, e Violet pôde observar em detalhes o estado em que o legista havia deixado sua querida amiga. Antes corada, agora um azul cianótico pintava a pele da Dra. Handler. Seus olhos fechados ajudavam a formar um rosto antes alegre, mas que agora era inexpressivo. Uma costura escura mantinha unido seu peito. Violet esticou as mãos, fechando o saco preto sobre a médica. Um ato de respeito, para que ela não ficasse exposta. Ao fazer isso, Violet começou a chorar...

Muitos haviam se espantado com a serenidade que Violet Hunter transmitia desde que tudo ocorrera. Tristeza e medo, sim, mas sempre calma. E acima de tudo, Violet não chorara. Havia algo na mente dela, um bloqueio inexplicável que a impedira de chorar todo esse tempo. Algo que lhe dizia que ela tinha de ser forte. Mas agora, em frente ao corpo da amiga, ela simplesmente perdera este bloqueio, e a sensação de insegurança, medo e culpa encheu seus olhos de água e fez seu corpo se curvar.

—Me desculpe... — ela gemia repetidas vezes, soluçando como uma criança pequena. — Eu sinto muito...

Cobriu o rosto com as mãos, as lágrimas escorrendo quentes como cachoeiras salgadas, o corpo sacudindo devido aos soluços. Lembrava-se daquele casal, ao qual ela devia a vida, que também pagara por tentar ajudá-la. Raiva e impotência a dominavam, como se tudo o que ela tocasse estivesse prestes a ser destruído por um inimigo sem rosto. Aquele maldito que aos poucos destruiu tudo o que era importante em sua vida.

Violet chorava e gemia como um bebê, não querendo fazer barulho, mas também não conseguindo interromper suas lágrimas. Ela não era forte, ela sabia disso. Não poderia lutar contra um inimigo tão forte. Não venceria, nem se tentasse. E não conseguiria lidar com mais alguém perdendo a vida por sua causa.

—Olá? — Violet se vira para a porta da sala assustada, vendo ali parada uma possível legista, usando jaleco branco, de cabelos cor de caramelo e um olhar gentil. — O que está fazendo aqui? — Violet levanta as mãos, e a mulher se aproxima. — Você está bem?

—Me desculpe. — gaguejou Violet, afastando-se da maca e caminhando na direção da porta, mantendo-se longe da legista. Suas lágrimas ainda brotavam sem controle. — Eu...

—O que faz aqui? — ela disse, sem agressividade.

—Eu não queria isso! — Violet choramingou. — Eu não pude fazer nada!

—Ai, meu Deus, é você... — a legista disse, mais preocupada que espantada. Levou as mãos ao rosto, daí estendeu-as gentilmente para Violet. — Não fique assim. Precisa de ajuda? Precisa de algo?

—Eu preciso ir embora. — ela saiu da sala, apressando seus passos pelo corredor, os soluços tornando suas palavras quase incompreensíveis. — Me desculpe!

Violet já estava correndo. Passou pelos brancos corredores sem olhar para os lados, na verdade, sem olhar para nada, pois as lágrimas a cegavam. Errou as portas algumas vezes, até conseguir chegar à recepção e daí à saída. As pessoas a olhavam, tanto no Barts como fora dele, na calçada, na rua, por onde ela passava. Olhavam-na com cenho preocupado, querendo saber o que a fazia chorar, mas nunca interpondo-se em seu caminho para perguntar. E nem Violet queria isso. Ela queria desaparecer, sumir. Deixar de existir. Imaginava o assassino a observá-la, e a rir-se dela. Rir-se de sua situação. Rir-se de seu desespero. Ela devia ter morrido na queda do prédio. Ela sabia disso. Se tivesse morrido, seria uma pista e não uma inútil. Um peso. Uma carga. Violet apertou os olhos, sentindo uma lágrima escorregar por sua bochecha. Não suportava mais aquela pressão em sua mente.

Ela não mais corria. Caminhava a passos rápidos, sim, mas abraçara o próprio corpo, fixara os olhos no cimento em que pisava e seguia em frente. Seus olhos vermelhos ardiam, e seu pulmão doía a cada respiração. Aquela manhã tinha um frio cortante, pois a chuva parara havia poucos minutos, mas ela não se importava. Pensava nas pessoas que morreram por sua causa. Não era capaz de carregar isso. Andava e pensava, e decidia o que fazer. Sua mente traumatizada, apesar de não confiável, já tinha a resposta. Ninguém mais iria morrer por ela. Ninguém.

A Ponte de Waterloo. Construída sobre o rio Tâmisa e nomeada em homenagem à grande vitória inglesa sobre Napoleão, em 1815, era conhecida por encontrar-se numa posição estratégica, numa as curvas do rio, e por ceder uma vista privilegiada de muitos pontos turísticos, como o London Eye, a City e a Abadia de Westminster. Mas ela era conhecida por mais do que isso. A ponte tinha o apelido, entre os habitantes da cidade, de A Ponte dos Suspiros. Isto se devia às muitas pessoas, desde o século 19, que saltavam dela para o rio, suicidando-se. Na Inglaterra Vitoriana, por trás de toda beleza e charme, havia um pesadelo constante para os menos afortunados, envolvendo violência, prostituição e gim, que fazia chover gente no rio. E a maioria dos saltos era de Waterloo. Não se sabia ao certo o porquê de tantos suicidas escolherem aquela ponte em especial. Só se sabia que eles pulavam dela. Isso ainda ocorria de vez em quando. Pessoas queriam se matar, e seguiam a tradição. Uma tradição, no mínimo, incômoda.

A chuva parara, mas o vento permanecera. Um vento gelado, calmo, que passava assobiando pelas pilastras da ponte que agora estava vazia. Aquela era uma ponte tanto para pedestres quanto para carros, mas ambas as vias jaziam desertas. A vista não era tão bonita, pois o céu escuro deixava todos os já mencionados pontos turísticos bem menos convidativos e bem mais sombrios. Céu escuro. Algo tão típico em Londres...

Violet colocou o primeiro pé na ponte. Daí o segundo, e os passos foram se multiplicando. Ela quase flutuava, e mal sentia suas pernas. Andara tanto, mas não estava cansada. Olhou ao redor, vendo o rio e toda a sua beleza, assim como a cidade que pulsava cheia de vida, e imaginou que tudo ficaria bem mais fácil se ela não estivesse lá. Não causaria mais problemas. Ninguém sentiria sua falta. Ela caminhou sobre o piso quadriculado da via para pedestres, até o parapeito de grades metálicas, e olhou lá embaixo. O rio era escuro, e corria rápido, impulsionado pelas chuvas que ocorriam desde a noite anterior. Águas negras escorriam para debaixo da ponte, para a escuridão ainda maior onde a luz fraca do dia não alcançava. Uma visão quase assustadora.

A primeira mão agarrou-se ao poste de luz que formava arco com outro poste que ficava na grade que dividia a via pedestre da via automotiva. A segunda agarrou à grade. Ela fixou o pé na primeira barra horizontal, içando-se para cima e subindo até estar de pé sobre a última barra, as duas mãos fechadas ao redor do poste. Ela ainda olhava para baixo, vendo uma névoa leitosa formar-se sobre o rio escuro, e pensando que ninguém notaria seu corpo flutuar e por fim submergir. Ninguém veria. Perfeito.

Violet endireitou o corpo, ainda olhando para baixo. O vento brincava com seus cabelos, fazendo-os flutuar e projetar-se na direção do rio. Violet ergueu a cabeça, encarando a cidade, Suas mãos enluvadas escorregavam ao redor do poste. Ela olhou para elas, percebendo então que estava bem agasalhada. Desceu com cuidado, olhando ao redor e ainda vendo a ponte completamente vazia, e despiu-se de seus agasalhos. Casaco, cachecol, blusa de lã, luvas, touca, tudo foi ao chão. Violet ficou apenas com uma fina camiseta de algodão branca, uma calça jeans e seu coturno de couro. O frio imediatamente a abraçou, e ela eriçou-se, tremendo. Imaginou que morreria bem mais rápido agora, afundando nas águas gélidas do Tâmisa. Não querendo que ninguém suspeitasse o que havia acontecido ali, pegou seus agasalhos e atirou-os ponte afora, vendo-os sumir no meio das águas. Subiu novamente na grade, seus movimentos bem menos seguros por causa do frio que sentia. Tremia muito. Pelos menos suas mãos não escorregavam mais. Violet encarou a cidade mais uma vez. Voltara à posição inicial.

O assassino ficaria decepcionado. Violet sorriu com este pensamento. Seu seguro, que Jabez Wilson lhe deu, asseguraria os cuidados do pai. Os policiais não precisariam dela, aliás, nunca precisaram. Ela era apenas uma preocupação. Violet fechou os olhos. Sentiu medo. Ia doer? Ia demorar? Não importava. Ela havia decidido não ser um peso para mais ninguém. Sua tristeza sobrepujara seu instinto de sobrevivência. Rezou para que Sherlock Holmes encontra-se o assassino antes que ele machucasse mais alguém.

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Ela pendeu para o lado de fora. Tremia incontrolavelmente. Estava ainda agarrada ao poste de luz. Soltou-o.

No segundo que se seguiu, Violet não sentiu nada além do vento e do frio insuportável. Seu corpo foi puxado pela gravidade na direção das águas revoltas lá embaixo. Ela sequer pensou. Tudo calmo. Era um lindo sonho...

Um braço forte ao seu redor despertou-a. Este passou em volta de sua cintura, e puxou-a de volta com a firmeza do aço. Violet perdeu o fôlego, seus pés e mãos projetando-se para frente, seus cabelos batendo com força em seu rosto, seus olhos se abrindo, vendo o rio sumir e o céu surgir à sua frente. Ela foi puxada de volta para a ponte, desabando no chão quadriculado, rolando sobre ele e respirando com dificuldade. Ela quedou-se parada, deitada de bruços, o rosto colado ao cimento áspero. Ainda tinha ao seu redor o braço que a impediu de despencar rio abaixo, e podia sentir o calor do corpo que era dono deste braço. Um corpo tão quente...

O braço deixou-a, e ela ouviu alguém se erguer num gemido. Ela não se mexeu. Parecia em choque. Virou a cabeça lentamente, vendo um casaco escuro e a ponta de um cachecol azul. Seu coração retumbou. Ela sabia quem era.

Sherlock ofegava por causa do esforço que fizera. Recebera uma mensagem de Molly Hooper, avisando-o de que havia algo de errado com sua cliente. A boa amiga temia que ela quisesse fazer o pior. Sherlock suspeitou o que ela faria, e se dirigira o mais rápido que pôde na direção que sua suspeita apontava. Quando chegara à ponte, vislumbrou Violet escassamente vestida para um dia como aquele e prestes a pular. Ele disparara na direção dela, saltara para a grade e passara o braço pela cintura dela, agarrando-a e jogando o próprio corpo para trás, atirando os dois corpos contra o cimento, de volta à segurança da via de pedestres.

—Por que fez isso? — ele disse, ainda ofegante, mas colérico. — Não precisa se matar, espere mais um pouco que alguém fará isso por você!

—Cale a boca! — ela berrou, levantando-se e começando a andar, cambaleante.

—Aonde vai?

—Pular da outra grade!

—Eu vou te impedir! — Violet para de andar, sem, no entanto, virar-se para Sherlock. Não queria olhá-lo. Não queria ver seja lá quem fosse. Ouviu-o caminhar em sua direção. — Você vai subir e eu vou te puxar de volta! Vamos ficar nessa brincadeira idiota o quanto você quiser!

—Por quê? — ela lamenta, suas lágrimas voltando a aflorar. Cobriu o rosto com as mãos quando ele a segurou pelos braços, virando-a para ele.

—Olhe para mim. — ela balançou a cabeça negativamente com força. — Você me contratou para encontrar o assassino, fez-me sair do estudo de um caso infinitamente mais importante que talvez defina o futuro desta cidade e do mundo que chamamos de livre, e no entanto, eu concordei, aceitei o caso, estou disposto a trabalhar nele, mas se você continuar esmurrando espelhos e tentando se matar não vou obter sucesso algum!

—Você tem que pegar ele, não me proteger!

—Sem você para atraí-lo, como vou pegá-lo?

—O nome disso é isca! — ela disse, voltando a soluçar. — E a isca nunca se dá bem!

—Que egoísta, se está tão interessada em morrer, podia ao menos morrer me ajudando!

—Ora seu... Insensível! — ela se debateu para libertar-se das mãos de Sherlock. — Pedaço de pau! Estátua de mármore! Bloco de cimento! — ela se batia cada vez mais. Parecia que estava se afogando sem ter água em volta. Mas não importava o quanto tentasse, ele não dava nenhum sinal de que estava se cansando ou de que ia soltá-la. — Por que está fazendo isso? — ela choramingou. — Me larga! — sem aviso, ele a soltou. Violet caiu no chão, levada pelo impulso e pela força que colocara no ímpeto de se libertar. Caiu sentada, e a frustração por ter caído assim a fez querer chorar mais. Bateu no chão com a mão sã, sentindo-se uma criança chorona. Sherlock se abaixou em frente a ela, curvando os joelhos e apoiando um dos braços na sua coxa. Seu longo casaco azul escuro espalhou-se pelo chão, lembrando uma comprida capa aos seus pés.

Violet ainda olhava para baixo. Não queria mais encarar ninguém, muito menos aquele detetive. Sentia-se demasiado exposta na frente dele.

—Por que está tão assustada? — Violet espantou-se com a serenidade daquela voz. Lembrava algo sedoso e quente. E no final a fez querer chorar de novo.

—Você entenderia se estivesse no meu lugar. — ela diz com voz entrecortada. Olhava para além a ponte, vendo a City bem ao longe. Por algum motivo sentiu sono. — Eu vi coisas horríveis, mas não consigo ver o que realmente importa. É como se eu estivesse sendo arrancada, todo dia, do mundo que eu conheço e jogada em outro onde as pessoas são todas iguais, e eu não conheço nenhuma. Não farei falta se eu me for.

—Aí é que você se engana.

Ela leva a mão à testa.

—Por favor, não me diga que sirvo para atrair o assassino...

—Eu a elogiei diante de John Watson, louvando-a por ter sido uma verdadeira guerreira contra um homem maior, mais forte e enfurecido. Eu a admirei por sua bravura, por ter lutado e conseguido sobreviver, e agora me deparo com a maior demonstração de covardia vinda da mesma moça que mostrou-se tão corajosa. — a voz dele ainda era baixa, mas agora lembrava uma lâmina afiada. — Estou decepcionado.

—Pode me recriminar por ser uma idiota.

—Você é idiota, assim como todos nesta cidade, mas não acredito que seja covarde. — ele colocou mais ênfase no que dizia. — Mantenha-se viva. E deixe-me fazer o meu trabalho.

Ela aquiesceu, ainda sentindo um peso terrível sobre o peito. Levantou os olhos, para ele, e soltou uma exclamação de espanto.

—Meu Deus! — ela se arrastou para longe dele, levantando-se e respirando como se tivesse acabado de sair da água. Sherlock também se ergueu, a expressão confusa. Ele permaneceu em silêncio, esperando o que vinha depois. Ela levou as mãos à frente dos lábios, os olhos bem abertos, a respiração acelerada. Daí, de repente, ela começou a rir.

É realmente estranho quando pessoas riem sem nenhum motivo aparente. É mais estranho ainda quando elas riem sem motivo e ainda olhando para o seu rosto. E a estranheza piora quando, minutos antes, esta pessoa estava tentando se matar.

Violet ria, e seus olhos verdes cheios de lágrimas a deixavam com uma aparência quase louca. Sherlock ia dar um passo à frente, mas ela colocou as palmas de suas mãos à frente dele, impedindo-o de se mover.

—Fique parado! — ela ordenou. — Não se mexa! — ela lhe deu as costas, ficando assim alguns minutos. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Ela voltou-se para ele, e voltou a rir. — Oh meu Deus...

—Você não está se sentindo bem.

—Sim, — ela riu. — sim eu estou! Não pode ser... — ela se aproxima dele, tomando seu rosto entre as mãos. — Eu te conheço! — ela sorria de forma fascinante. Os dois ficaram se encarando, olhos nos olhos, por um bom tempo. — Eu conheço... Você é lindo... — diz ela, o sorriso se desfazendo quase que imperceptivelmente. Ela puxa delicadamente um dos cachos do cabelo dele. — Você... Você mudou o cabelo.

Ele a empurra imediatamente, tirando as mãos dela de seu rosto, limpando a garganta e se recompondo.

—Eu não mudei, eu só voltei a deixá-lo como ele era antes. Eu tinha mudado antes, daí desfiz a mudança.

—Ficou muito bom. — ela disse, sorrindo timidamente. Parecia tão feliz que era difícil não se sentir contagiado.

Sherlock permaneceu sério.

—Sabe quem eu sou? — ela fez que sim com a cabeça. — Como?

—Eu reconheço seu rosto! — ela voltou a se aproximar dele, mas não o tocou. — Eu me lembro! Posso fechar os olhos agora e eu vou saber como é seu rosto quando os abrir. — ela abre os braços, levantando os ombros. — Como isso é possível?

—Você é realmente louca... — ele murmura, acompanhando os passos dela com o olhar.

—Se isso é um tipo de loucura, sinceramente eu gostei! — ela solta uma gargalhada gostosa. — Será que eu voltei ao normal?

—Claro que não. Você se lembra muito bem do diagnóstico.

—Tudo bem, Sr. Sabe Tudo, então por que eu reconheço o seu rosto?

—Ainda não sei.

—É um milagre!

—Milagres são formas dos seres humanos patéticos encontrarem conforto num mundo onde não há lugar para eles. — ele encarou-a, baixando o olhar em seguida. — Pare de me encarar.

—Sabe algo novo sobre o caso? — ela disse, abaixando a voz.

—Sei muitas coisas. — ele disse. — Isso não significa que irei te contar.

—Não precisa ser mal educado, eu já sei que você é durão. — ela junta as mãos à frente do corpo, baixando a cabeça. — Eu não sabia que você estava num caso tão importante antes de mim...

—Vai pedir desculpas? — ele diz num risinho.

—Sim. — ele a encara, espantado. Ela permanece com ar humilde. — De fato, eu queria dizer que você pode deixar o meu caso de lado e voltar ao anterior, mas a verdade é que preciso de você. Não me sinto segura com os outros detetives, e eu tenho certeza de que eles jamais adivinhariam que eu ia vir aqui! Na verdade, eu nem sei como você sabia, levando-se em conta o fato de que quase não olhou para mim desde que nos conhecemos...

—Você gosta de coisas antigas. — diz Sherlock, tomando por completo a atenção de Violet. — Gosta de tê-las e de cuidar bem delas, pois acredita que se elas sobreviveram ao tempo não merecem deixar de existir por causa de um dono ruim. Gosta de conforto e praticidade, não se acha bonita, tem pavores noturnos e, apesar de ser solitária, se sente segura com o simples fato de haver pessoas ao redor. Gosta de livros, especialmente daqueles que tratam da Inglaterra Vitoriana. Dá valor a esse gosto por que alguém querido lhe passou isso, suspeito que seja seu pai. Tem costumes antiquados, como dar passagem a pessoas mais velhas e baixar a cabeça quando alguém que você considera mais importante está falando. Tem medo de aranhas, e não gosta de rosa. Tudo rosa que você tem foi ganho, e você não teve coragem de devolver. É bondosa até demais. Não se acha forte, e o que mais te assusta não é o assassino te pegar, e sim ele te pegar e você não ter ninguém para pedir ajuda. Este não é o caso, Violet. Eu estou aqui.

Violet ficou em silêncio. Nem seu noivo sabia tanto sobre ela. Ela não sabia o que dizer, apenas encarava aqueles dois olhos multicores e, de repente, sentiu frio. Sua cabeça começou a rodar lentamente, e ela ficou repentinamente tonta. Ela levou a mão à testa, apoiando-se na grade, e sua vista escureceu vagarosamente. Conseguiu pensar que ela estava desmaiando demais nestes últimos dias. Mas aí não pensou mais nada.

Sherlock não teve pressa desta vez. Retirou seu casaco, ficando apenas com seu terno, envolveu Violet nele como uma lagarta num casulo, vendo-a perder a consciência. Ele sabia que, devido à pancada que ela levara no crânio, no momento do impacto contra a caçamba, vez por outra a mente dela ia apagar, especialmente durante ou após momentos de grande estresse. Tomou-a nos braços, levantando-a do chão, mais uma vez achando-a excessivamente leve para uma jovem mulher. A cabeça dela pousou em seu ombro, e ele observou-a algum tempo. Aproveitou para fazer isso por que a ponte permanecia deserta, fria e nevoenta. Uma ponte de Londres...

Ele saiu caminhando, com Violet nos braços, tornando-se uma visão estranha no meio da neblina. No coração de Londres.Ele caminhava, e suas últimas palavras ecoaram pelo chão quadriculado. Uma promessa.

—Eu não vou te deixar morrer...