Regis em busca de si mesmo

Meu primeiro amor


Acompanhado pelo maninho Paulinho, cheguei defronte ao portão da casa de Elizabeth, pois, ela estava entre as pessoas que faziam parte de meu principal círculo de amizade e eu precisava me familiarizar consigo.

— É aqui — apontou-me o menino desconfiado. — Você já sabia que era aqui!

Bati palmas.

— Agora eu já vou — disse ele.

— Como você já vai? Sem eu!

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— Por que eu preciso de você? Eu sei o caminho!

— Você é pequeno pra ir sozinho! — Me preocupei.

— Que pequeno o quê, owh! Tchau!

Antes que eu tornasse a interrompê-lo, se virou e sumiu correndo de volta pela mesma rua.

A porta da sala daquela casa se abriu e uma jovem senhora gritou animada:

— Regis! Quanto tempo! Entre!

Entrei-me cauteloso e ela, pelos ombros, acabou de me arrastar para dentro.

— Venha! A Beth está no quarto fazendo a lição.

Acompanhei-a até o dormitório de menina, onde a vi, enquanto tal mulher se afastou. Ela estava de bruços sobre a cama, escrevendo alguma coisa a lápis, em seu caderno de brochuras (nesta época, crianças na terceira série não usavam canetas e nem cadernos espirais tipo universitário).

Ao perceber que estava sendo observada, se virou sobre a cama e a me ver, se levantou rapidamente, sorrindo e arrumando os lindos negros e lisos cabelos longos.

— Oi, Regis! Que legal que você veio! Já fez a tarefa?

— Tarefa! — Me atrapalhei — Ah! Ainda não!

Ela era linda! Não me lembrava dela, mas meus olhos se deslumbraram com tal princesinha encantada, de sorriso conquistador.

— Por que não trouxe o material? A gente faria junto.

— É que... — Como teria dito o maninho, acho que estava no mundo da lua. —Acho que perdi meu material.

— Como perdeu o material? Já sei! Quis passar pelo aeroporto. Deve ter ficado brincando no mato e se esqueceu de onde deixou.

— Não fiquei brincando no mato!

— O que você foi fazer por lá?

— Sei lá! — Dei de ombros. — Que mato você tá falando?

— Ih! Tá esquisito!

Fiquei sério, perdidinho de tudo.

— Sente-se aqui na cama — convidou-me —Vamos brincar.

— Você está fazendo a tarefa.

— Ah! Eu já acabei! Vamos brincar.

— De quê?

— Sei lá! — Sorriu ela. — Qualquer coisa.

Sentei-me a seu lado, sentindo-me o menino mais feliz desse Universo. Há um milhão de anos que não me sentava ao lado de uma garota. Quer dizer: há um milhão de anos que sequer via uma garota. Teria acabado de ver Letícia, minha irmãzinha.

Ela apanhou um caderno velho e dois lápis, retirou duas folhas, me entregando uma das folhas e um lápis.

— Vamos brincar de “amor ou amizade”.

— O que é isso?

— Pare de fingir — reclamou ela. — Você já sabe.

— Tá bom! Como faremos?

— Eu começo.

Escreveu alguma coisa secreta em sua folha de papel.

— É alguma coisa de mim! O que é?

— Blusa!

— Blusa não é de mim! De mim quer dizer, alguma coisa em meu corpo.

— Ah tá! Cabelos...

Tinha que ser. Algo tão lindo teria que estar em primeiro plano.

— Não é!

— E agora? O que faço?

— Fale outro! Você parece que nem sabe brincar.

— Olhos!

— Não!

— Braços?

Gesticulou negando.

— Boca!

— Éh! — Riu, me mostrando o que escrevera na folha — Você fez sete pontos.

— Por que sete?

— Você não lembra as regras?

Dei de ombros como a dizer “sei nada”.

— Meninos! — Riu ela — São tão desligados. Se você acertar na primeira vale dez, se for na segunda tentativa vale nove, na terceira vale oito, na quarta vale sete.

— É isso! É que... faz tempo que a gente não brinca!

— Se tá é esquisito! Brincamos ontem no recreio da escola. Lembra que era sopa de fubá e a gente não gosta? Agora é sua vez! Escreva.

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A obedeci, escrevendo algo em minha folha. Depois disse:

— Alguma coisa de meu corpo.

— Também?

Dei de ombros como a dizer “por que não”.

— É a boca?

— Não!

— Os olhos!

Acenei que não.

— Cabelos?

— Nã, nã, nã...

— Braços!

Acenei negando.

— Peito!

— Também não!

— Você não escreveu bobagem! Não é?

— Nãão! — Neguei forte.

— Tórax!

— Tórax e peito é a mesma coisa, Beth.

— Sovaco!

— Acha?

— Ah! Nariz!

— Não é! Não vale de dentro da gente?

— Ah! Coração!

— Era! — Rindo, mostrei-lhe o papel. — Podia?

— Claro! Eu é quem bobeei! Quantos pontos eu fiz?

— Acho que foi... — Pensei — dois.

— Só?

Ela tornou a escrever e disse:

— Essa é fácil. O que quero de você!

— Um beijo!

— Regis! Tá exagerando!

— Carinho!

— Somos crianças, Regis!

— Carinho como amigos, ué!

— É outra resposta?

Pensei um pouco e decidi:

— Acho que não! Abraço?

— Quantos anos você tem?

— Hem?

— Se dizer que escrevi namorado te dou um beijo na boca! — Riu ironizando ela.

— Oba! Eu quero!— Esfreguei a mão na boca.

— Pare de ser safado!

— Estou brincando — ri disfarçadamente. — Amiza-de...

— Finalmente — Riu ela. — Deixe-me ver... sete pontos de novo. Você tem quatorze.

Tornei a escrever.

— O que sinto por você?

— Você não tem criatividade?

— Como assim? — Não entendi.

— Copia tudo de mim!

— Mas a resposta é outra!

— Vai dizer que escreveu amor?

— É sua resposta? — Dei leve sorriso safado.

— É!

— Errou.

— Amizade?

Acenei que sim, mostrando-lhe o papel.

— Nove pontos. Mais dois, onze — esclareci.

— Você disse que a resposta era outra.

— Tentei te engrupir! — Ri, franzindo os lábios.

— O que é engrupir[1]?

— Sei lá! Tapear eu acho!

E assim, embora eu não a tivesse reconhecido antes, em poucos minutos, já tinha conquistado sua simpatia. Quer dizer: acho que ela conquistou a minha, pois ela já me conhecia. Seja como for, criança é assim mesmo: mesmo que sejam desconhecidas, bastam apenas um minuto juntas e já são verdadeiras amigas.

— Posso ir à escola com você, amanhã?

— É lógico que você vai à escola comigo amanhã, Regis! — a estranhou. — Por que essa pergunta?

Dei de ombros, dizendo:

— Só quero ir com você!

— Todos os dias vamos juntos à escola! Por que esta pergunta?

— Sei lá! — Mostrei-lhe um leve sorriso fingido — Acho que só queria puxar assunto.

Permanecemos conversando e brincando juntos em seu quarto, até às seis horas daquela tarde.

Disse-lhe tchau no portão de entrada e ela retribuiu-me com acenos.

Depois de quase quatrocentos metros de caminhada, atravessei o portão de nossa casa e ao entrar na sala, encontrei o homem de lá, que acabara de chegar do seu trabalho.

— Oi! — Cumprimentei-o querendo reconhecê-lo.

— Oi — retribuiu-o, sem sequer olhar para mim.

Era triste, pois por mais de trinta anos, esperava por esse encontro e sua atitude até demonstrava desprezo.

Aproximei-me e o abracei, querendo reconquistá-lo.

Ele estranhou minha atitude, mas retribuiu o afeto.

— O que há, Regis? — Perguntou-me.

— Estava com saudades.

— Ah! — Apertou-me entre seus braços fortes.

— Quanto tempo que não vejo o senhor.

— É! — Riu ele — Quase metade de um dia.

— Gosto de seus abraços.

— Isto sim faz muito tempo. Não?

Olhei-me sério para seus olhos e cobrei:

— Faz tempo, é?

— Muito — riu ele.

— Por quê?

— Acho que você não tem me abraçado.

— Não é obrigação do pai?

— Obrigação do pai é trazer alpistes pra alimentar estes passarinhos.

— Será que um pouco de carinho não vale mais do que alpistes?

— Tá me cobrando?

Os ombros responderam por mim.

— Se o pai estiver cansado, estressado e se esquecer de abraçar o filho — o emendou — talvez então se o filho tomar a iniciativa de um abraço com carinho possa ajudá-lo a perceber o quanto isso seja importante.

— Me lembrarei disso — ri com sinceridade.

Só então ele me deixou. Acho que apenas estes segundos de afeto, já serviu para reencontrá-lo em meu ser.

Assim que ele terminou seu banho, pedi à minha mãe:

— Eu posso tomar um banho?

— O quê? — Se admirou ela.

— Um banho! Como o papai tomou!

— Você não só pode tomar um banho, como você tem que tomar seu banho e estou achando que você está muito estranho.

Sempre, por me sentir perdido, os ombros falavam por mim.

Segui ao banheiro e por pelo menos vinte minutos, deliciei-me com demorado banho, só desligando o chuveiro quando alguém bateu na porta.

— Regis, cai fora daí que tem outros que também gostam de banho.

Acho que era o irmão Luis.

Tudo bem. Embora não quisesse, obedeci-o.

[1] De fato esta palavra não existe, porém as crianças usavam para dizer, tapear.