Dezenove

Para-Brisa


A água começou a cair no para-brisa assim que saí do trabalho. Já se passava das cinco horas, e tudo o que eu não queria era dirigir à noite. Tirei o carro com facilidade da vaga, o que provavelmente custou a mim alguns xingamentos por ter sido mal estacionado, mas aquela era a última coisa que me importava naquele momento.

Coloquei o restante do café no porta-copos ao lado do câmbio, torcendo para que o trânsito colaborasse. Morar numa cidade e trabalhar em outra tem lá suas desvantagens. Prendi o cabelo e liguei o rádio, agradecendo mentalmente pelo único obstáculo em meu campo de visão ser a neblina. Adorava dias calmos.

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O céu escureceu ainda mais, e as gotas de chuva tornaram-se mais grossas e frequentes. O limpador já não conseguia retirar todo o volume de água, mas a pouca luz que refletia era o suficiente para que pudesse ver a placa de acidente. Reduzi a velocidade, tentando identificar o acontecido.

Era um carro vermelho, daqueles antigos. A neblina não me permitia reconhecer a placa, mas eu me senti subitamente familiarizada pelo automóvel. Aproximei-me, com um único pensamento: que não seja ele. Infelizmente — ou felizmente, descobriria eu mais tarde —, era.

Thomas não parecia me ver, deitara a cabeça sobre o volante e talvez tivesse até pegado no sono. Pensei em prosseguir, mas eu não conseguiria deixá-lo ali. Não depois de tudo. Procurei seu número em meu celular e lhe liguei. Dois toques depois, ele atendeu, a voz embriagada pelo sono.

— Ana? — falou, surpreso. — O que...

— Lado esquerdo. — suspirei. — Entre no carro, eu deixo você em casa.

Seus olhos fitaram os meus. Mesmo com incríveis três metros e uma neblina densa entre nós, o arrependimento bateu ao encará-lo. Um nó se formou no fundo de minha garganta e não se desfez nem mesmo quando a porta se abriu e o rapaz se sentou ao meu lado. Colocou o sinto de segurança e passou a mão pelos cabelos molhados, aliviado.

— Obrigado por...

— Disponha. — interrompi-o mais uma vez, jogando o celular no console do painel. Tomei um gole do café, e só então parti com o carro novamente. — Quer?

— Não, estou bem. — tirou o copo de minhas mãos, colocando-o no lugar onde estava. — Não vai colocar o cinto? Deixe que eu seguro o volante.

Concordei com a cabeça, e seus dedos correram em meu auxílio. Minhas mãos tremiam, então levei mais tempo que o desejado para afivelar o equipamento e retomar a direção. Thomas não parecia se importar.

— Ainda mora na mesma casa? — perguntei, virando-me para a frente. Olhá-lo era doloroso.

— Sim, sabe como chegar lá? — apenas fiz um aceno positivo. — E você, no mesmo apartamento?

— Não, saí de lá faz duas semanas. — menti. Não queria que, por alguma desventura, ele voltasse a me incomodar lá.

Dirigi em silêncio pelo que me pareceu pouco mais de dez quilômetros antes de a chuva piorar. A pista estava escorregadia, e eu sequer era capaz de enxergar as linhas que delimitavam a estrada.

— Não acha melhor parar? — ele pigarreou.

— Tem razão. — suspirei, encostando o carro e ligando o pisca-alerta. A chuva só piorava. — Espero que não tenha algum compromisso hoje, chegaremos atrasados. O que aconteceu com o Johnny?

Ele sorriu, provavelmente porque não esperava que eu fosse me lembrar do apelido ridículo que ele dera para o carro quando o ganhou. Ameaçou começar a falar, mas só explicou o acontecido quando finalmente voltei a olhá-lo.

— Resumidamente, — sintetizou, depois de longos cinco minutos — Johnny precisa se aposentar.

— Hm. — suspirei, pegando um livro em minha bolsa. Odiava ficar presa por conta da chuva, ainda mais com ele ao meu lado. Nada poderia dar mais errado.

— Machado de Assis, é? — comentou, observando a capa. — Achei que não gostasse de Dom Casmurro.

— E não gostava. — dei de ombros, abrindo na página marcada. Contudo, conhecia Thomas suficientemente bem para saber que não me deixaria ler.

— Você tem olhos de Capitu. — riu.

— Não me chame de cigana oblíqua e dissimulada. — bufei, voltando minha atenção para o livro, novamente.

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— Não digo por esse lado. — ele retirou o cinto, inquieto em seu banco. — Eles... Bom, seus olhos são como o mar de ressaca. Quanto eu olho neles... Eu sinto como se estivessem me puxando, entende?

— É isso o que olhos do mar de ressaca quer dizer, gênio. — fechei o livro, já irritada. Foi a pior medida que um dia tomei.

Thomas me encarava. Seus olhos nos meus, os meus nos seus. Sem graça, desci o olhar para seu maxilar e seu pescoço, analisando cada traço do que um dia pude chamar de meu. Do que um dia, definitivamente, foi meu. E já não era mais.

— Você sente falta, não é? — ele segurou minha mão que pousava sobre o freio. — Eu também sinto a sua. Todos os dias quando acordo e quando vou dormir.

— Não sinto sua falta. — menti, mais uma vez. O nó em minha garganta se apertou, e tive que controlar a voz para que ela não falhasse. — E não precisa mentir para mim. Não vou expulsar você do carro.

— Por que terminou comigo? — direto e reto. — Você ficou enjoada?

— Não.

— Entediada?

— Não.

— Você me traiu?

— Santo Deus, Thomas, não! — bufei, soltando minha mão da sua — Terminei com você porque você me deu motivos, e não finja que não sabe quais são.

— Acredite, se eu soubesse, já teria consertado meus erros e ido atrás de você novamente. — passou os dedos pelo cabelo, nervosamente. — Ana, seja sincera. Por que você me largou?

Eu voltei a fitá-lo. Não conseguiria mentir nem se vivesse um milhão de anos quando aqueles malditos olhos liam o fundo da minha alma. O nó na garganta se converteu em lágrimas que exigiram a máxima concentração para não escorrerem por meu rosto.

— Foi você quem me deixou. Aos poucos. Parou de me ligar e de retornar ligações. Parou de mandar mensagens ou e-mails. Chegou uma hora que eu me cansei de ser ignorada, e então acabei com aquilo que você já vinha destruindo há dias. — estalei os dedos, evitando socá-lo. — Então, se quer saber porque terminamos, é melhor que você nos diga porque se afastou.

Ele suspirou. De certo modo, parecia apresentar uma pitada de desapontamento. Virou-se novamente para a frente, e então sussurrou de forma quase inaudível.

— Eu estava com medo. — baixou o olhar para os próprios pés. — Estava me apaixonando por você. Não queria que você se apaixonasse por mim, também.

Senti o mundo desabar. Um ano se passara sem que nos falássemos, e todo o motivo por trás disso era algo tão — não sei que palavras usar — simples. Não que se apaixonar fosse tão simples, mas a solução, em si, era simples até demais.

— Demorou muito. — pigarreei, dando a partida novamente no carro. — Eu já havia me apaixonado por você.

Em silêncio, dirigi até sua casa. Enxugava uma ou outra lágrima teimosa que insistia em escorrer, e tomava café para amenizar os soluços. Thomas sequer respirava. Seus olhos pareciam estar cheios de dor e arrependimento, mas seus lábios permaneceram fechados por todo o trajeto. Seus dedos tamborilavam no apoio de braço, e o nervosismo fez com que eu apertasse o volante com mais força.

— Obrigado pela carona. — ele respirou fundo. — Sabe, eu ainda tenho um globo de neve seu, aqui em casa. Se quiser me deixar seu endereço, ou entrar para buscar, ou ainda se quiser esperar que eu...

— Qual deles é? — questionei. — Nunca abri as caixas, não sei qual está faltando.

— O dos Alpes Suíços. — O meu favorito.

— Posso entrar?

— Claro. — ele saiu correndo, deu a volta no carro e abriu minha porta. Sorri tristemente, ao lembrar que ele costumava fazer isso. Eu, Thomas e Johnny. — Ele ainda está naquele lugar que você costumava deixar.

— Hm.

Eu odiava quando Thomas ia à frente. Odiava, porque odiava vê-lo de costas. Odiava, porque amava vê-lo de costas. Ficaria dias observando como sua camiseta cai sobre os ombros, ou como as gotas de água de seu cabelo molhado escorrem pela sua nuca quando os fios estão mais compridos. Odiava ver seus braços tremendo ao abrir a porta, porque minha mente insistia em lembrar todas as outras vezes que seus braços tremiam ao redor de meu corpo.

— Entre, Ana. — puxou minha mão, fechando a porta atrás de nós e retirando meu casaco. — Quer beber algo?

— Não, estou bem assim. — suspirei, indo até o quarto. O quarto que um dia fora meu. Do mesmo modo que Thomas também fora.

Nada parecia ter mudado. O papel de parede listrado azul, os móveis, a decoração. Tudo parecia igual ao que abandonara um ano atrás. Aos pés da cama, estava o mesmo baú escuro e antigo, com um único globo de neve sobre ele. Ajoelhei-me ali, chacoalhando-o. Eu não sei o que me atraía tanto nele. Talvez fosse o fato de não ter bonecos de neve e decoração natalina como todos os outros. Talvez fosse o fato de que era o único que eu havia ganhado dele.

— Tenho um pouco daquele vinho que você gosta. — ele mordeu o lábio, ajudando-me a me levantar. — Tem certeza que não quer uma taça?

— Meia taça. — sorri, colocando o globo sobre a bancada. — Estou dirigindo, não se esqueça disso.

— Não deixaria você sair daqui embriagada. — ele brindou as taças, e tomamos um gole. Era irreal estar ali. Simplesmente parecíamos ter voltado no tempo, como se fôssemos o mesmo casal que morava junto no último ano da faculdade. Nada de preocupações. Aliás, se há algo de especial em Thomas, que não me permitiu esquecê-lo durante todo esse tempo, é a capacidade que ele tem de se livrar dos problemas. — No que está pensando? — sorriu.

— Em como a vida era fácil. — deixei a taça quase intocada sobre o balcão. — Em como as coisas eram fáceis para nós.

— Quer tentar torná-las fáceis, novamente. — Não era uma pergunta, ainda devesse ser. — Fica comigo.

— Só porque você pediu com jeito. — Suas mãos seguraram-me pela cintura e puxaram-me para o balcão, sentando-me ali.

Passei meus braços sobre seus ombros e o puxei para mim, colando nossos lábios. Eu amava beijá-lo. Amava a sensação de proteção que pairava no ar nos momentos que estávamos juntos. Amava o toque dele em meu corpo, conhecia-me como ninguém depois de incríveis dois anos e meio que passamos um ao lado do outro, durante todos os dias.

Carregou-me até o quarto, deitando-me na cama. Era assim com ele: tudo intenso; como se o mundo fosse acabar em horas, ou, quem sabe, em minutos. Beijava-me, tirava nossas roupas e nos cobria com o edredom que sempre usávamos em dias frios como aquele. Entrelaçava nossas pernas e, de certo modo, nossas almas, garantindo-me uma única certeza: homem algum conseguiria me fazer tão feliz durante a vida quanto Thomas fazia em algumas horas.

Sua boca se encaixava na minha; seu corpo, no meu. Seus braços tremiam ao me envolver, e meu rosto se escondia na curva de seu pescoço, de onde nunca deveria ter saído. Meus dedos se agarravam ao seu cabelo com força, sua pele roçava a minha, e nós nos perdíamos em um emaranhado de coberta e paixão tão típico de nós dois que sua ausência espantava. E então, estávamos entregues novamente um ao outro.

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Dormirmos abraçados, como se qualquer separação fosse capaz de nos arrastrar para as trevas mais uma vez. Thomas tinha o sono tão pesado que nem me viu levantar. Vesti-me e procurei por papel e caneta em algum lugar. Escrevi-lhe um bilhete e coloquei sob o globo de neve, para que ele visse ao acordar. Com as chaves em mão, simplesmente segui meu caminho.

Thomas,
Sinto muito por ter te deixado aqui, mas você estava certo.
Eu já estava me apaixonando.
Ana.

Era mentira. Eu nuca tinha deixado de amá-lo, em nenhum momento nesse ano que ficamos afastados, mas o destino sussurrava em meu ouvido que era melhor assim. Talvez tivéssemos outra chance de ficarmos juntos, mas aquela não era a hora.

E, se fosse, eu nunca saberia.