Dezenove

Cartas


Olhei para o papel em branco sobre a mesa, segurando impacientemente a caneta. Eu, que nunca tive trabalho algum para escrever o que quer que fosse, não conseguia começar uma simples carta de despedida. Pensei em roubar alguns versos de Jota Quest, e começar com o clichê — nem tão clichê assim —, esta não é mais uma carta de amor. De fato, poderia lhe assegura que tudo o que aquela carta não era, era de amor. Contudo, também não eram pensamentos soltos, traduzidos em palavras, porque eu entendia exatamente do que se tratava, apenas não conseguia escrevê-lo.

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Tombei a cabeça sobre as mãos, em desespero. Minutos atrás aquilo parecia estupidez, e então soava como se fosse a melhor ideia que eu tivera nesses dois anos. O problema é que nem o seu nome eu conseguira escrever na primeira linha, pois minhas mãos tremiam e minha visão embaçava cada vez que tentava fazê-lo. Todavia, não era aquilo necessário?

Achei por bem medir todas as palavras antes de colocá-las em definitivo naquele papel. Levantei-me, tomei um copo d’água, e voltei a me sentar na sala, o único cômodo iluminado do apartamento, porque era o mais distante do nosso quarto. Era incrível notar o quanto eu estava sendo hipócrita ao não querer acordá-lo, enquanto planejava fazer algo muito pior: deixá-lo.

E foi quando o relógio bateu duas horas da manhã que as palavras começaram a surgir em minha mente. Uma a uma, mais afiadas que cacos de vidro, entretanto mais sinceras do que quaisquer que eu houvesse proferido em dois anos.

Querido Thomas,

Não sei se ainda posso lhe chamar de querido, ou se poderei, quando terminar de ler isso que lhe escrevo. Bom, provavelmente não. Não que isso seja bom, mas... Bom... Bem... É a realidade, certo? Certo. Por favor, nunca mais me deixe escrever nada de madrugada e... Esquece o que acabei de falar. Na verdade, vamos recomeçar.

Thomas,

Creio que já faz muito tempo que não lhe chamo pelo nome. “Amor”, “Thomm” e “Querido” costumavam ser menos impessoais, mas... Thomas é melhor. Ao menos, será melhor quando acabar de ler. Sei que nunca gostou de cartas, que sempre as achou piegas e completamente obsoletas, e foi exatamente por isso que escolhi esse pedaço de papel com algumas letras rabiscadas. Não queria que associasse essa lembrança a algo que gosta, porque duvido muito que vá ser algo feliz.

Na realidade, seria muito melhor se fosse algo feliz. Se, ao ler essas palavras, desse risada e comemorasse internamente por eu ter feito algo que você já planejava a eras, mas que nunca teve coragem o suficiente para executar. Realmente facilitaria as coisas. Mas as coisas nunca foram fáceis para nós, certo? Certo.

Sei que a esse ponto você já sabe o que está por vir. Você sempre foi muito esperto, sabe? Acho que foi por isso que me apaixonei tão perdidamente em tão pouco tempo. Gostava da sua facilidade em entender as coisas que eu dizia, sem requerer explicação. Na verdade, eu amava isso em você. Não se preocupe, há tantas outras garotas lá fora, e dezenas delas vão se apaixonar por essa sua característica em especial, eu sei disso.

Sabe, acho que é realmente melhor deixá-lo livre. Pode fazer multidões felizes com seu senso de humor e justiça. Com sua alegria contagiante, seu otimismo, sua facilidade em enxergar a luz em tempo de trevas. Em ser a luz em tempo de trevas. Acho que chegou a hora de compartilhar essa minha luz pessoal que mantive aprisionada por dois anos.

Por favor, não me pergunte o porquê disso. Nem eu sei. Só sei que, ultimamente, estar com você — ter você — parece muito errado, como se o quebra cabeça de nós dois estivesse perdendo as peças, ou desgastando as emendas. E quando uma peça não se encaixa, Thomas, é hora de se livrar de todas. Impossível tentar reparar, substituir.

Eu sei que você está tentando, pelo simples fato de que o conheço o suficiente para ter certeza de que já espera, de certa forma, por esse momento. Você sempre me leu da cabeça aos pés, por que eu acharia que seria diferente dessa vez? Inocência e ingenuidade deixaram de fazer parte do meu vocabulário quando me dei conta de que algo seu é insubestimável. E com “algo seu”, quero dizer: você todo.

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Também sei que estou dando voltas e mais voltas, porque não consigo escrever aquelas malditas palavras. Dói demais, quando não deveria. Por quê? Por que não consigo dizê-las, sequer pensar nelas? Por que é tudo tão difícil? E não me venha com essa resposta óbvia, porque não consigo aceitá-la. Se o motivo de doer tanto fosse esse, então porque estaria aqui, definhando em busca de uma maneira de acabar com tudo?

— Ei. — Thomas coçou os olhos, encostado à meia-parede que separava a sala da copa e cozinha. — São duas da manhã.

— Uh... — resmunguei, levantando-me do sofá e indo para o cômodo ao lado. — Estava pensando numas coisas.

— Acho que pensaria melhor se não fosse tão tarde. — ele riu, seguindo-me. Tinha os cabelos bagunçados, o pijama amassado. — Você não é muito produtiva de madrugada, sabe disso, não é?

— Falou aquele que hiberna por doze horas se não o acordarem. — sorri de volta. Virei mais um copo d’água, mas o garoto o tirou de mim ainda pela metade, tomando o restante todo de uma única vez. — Folgado.

— Com prazer. — colocou suas duas mãos em meu rosto, beijando minha testa. — Venha, Ana, já está tarde. Não durmo bem sem você do meu lado, e a empresa quer que eu esteja lá às nove. Reunião importante.

— Aposto que é alguma emergência. Com certeza uma patricinha que acabou de completar dezoito está desesperada por uma casa. Vai salvar o dia, Super Arquiteto. — brinquei. Ele sorriu ainda mais; sabia o quanto eu o admirava, e que, muitas vezes, essas piadas eram apenas para aumentar minha própria autoestima em função do meu fracasso profissional. — Tenho que lavar a louça, já eu vou.

— A louça vai estar aí às nove. — puxou-me para o quarto. — Eu, não. E, se continuar arrumando desculpas para ficar acordada de madrugada, então eu vou lhe dar os motivos para isso.

— Você não vai querer estar cansado às nove. — retruquei. Tirei a roupa, vestindo o pijama, e prendi o cabelo. Por alguma razão, odiava dormir com ele solto.

Deitei-me ao seu lado na cama, virando-me para o criado mudo. Duas e vinte e dois, indicava o rádio relógio. Apaguei o meu abajur, e momentos depois senti um par de braços envolverem minha cintura. Thomas havia colado seu corpo ao meu, e deitado sua cabeça em meu travesseiro, fazendo-nos ocupar apenas metade da cama larga.

Virei-me de maneira desajeitada até ficar de frente a ele. Tinhas os cabelos escuros caindo sobre os olhos de mesma tonalidade. A pele clara e o corpo magro destacavam-se na luz fraca proveniente do abajur dele, que ainda estava aceso. Ele sorriu e me beijou suavemente, fazendo meu corpo se arrepiar por inteiro. Quando reabri os olhos, finalmente vi.

Não é como se tivesse visto o reflexo de meus olhos no seu, ou então o quanto eu o amava, nem nada desses clichês de histórias adolescentes melodramáticas. Não. Mas eu vi o que precisava: vi porque não suportava a ideia de deixá-lo; e porque tinha essa necessidade de me afastar.

— Precisamos conversar. — pigarreei.

— Acha que eu não sei? — ele sorriu. — Demorou mais tempo que o usual.

— Desde quando você sabe?

— Eu sei lá, Ana. — voltou para seu lado, revirando seu criado mudo. — Simplesmente sei das coisas. Ainda mais das coisas sobre você.

— Como sabe?

— Bom... — pegou minha mão, colocando um anel no dedo anelar. — Acho que é porque eu amo você. E porque você me ama, ainda que não tenha percebido. Mas, sabe, da próxima vez que quiser terminar comigo sem motivos, não vou deixar que chegue tão longe. Ia me deixar um bilhete?

— Uma carta. — dei risada, analisando a aliança. — Não vai ter pedido?

— Você ia terminar comigo porque achou que não queria nada sério com você. — beijou meu rosto. — E pior, por uma carta. Isso estragou completamente a surpresa.

— Que surpresa? — arqueei uma sobrancelha.

Thomas saiu do quarto sem falar nada. Retornou com a pasta do trabalho em mãos. Desbloqueou-a e tirou um projeto de lá de dentro, desenrolando-o sobre a cama. Pelas diferentes grossuras de traços, notei que ele havia trabalhado várias e várias vezes na planta, em dias diferentes, com lapiseiras diferentes.

— Essa é a nossa casa. — sorriu. — Na realidade, vai ser. A construção começará daqui a duas semanas.

Ele parecia uma criança novamente. Explicava o projeto com o brilho no olhar. Mostrou-me nosso quarto, seu escritório, cada uma das salas, o quintal, a piscina. Todos os detalhes, metro quadrado por metro quadrado.

— Parece meio grande, não? — comentei, admirada.

— Vai parecer bem pequena quando as crianças chegarem. — guardou as coisas, abraçando-me novamente na cama. — Sinto muito se dei a entender que queria namorar você eternamente.

— Nunca mais dê a entender isso. Eu já estava quase escrevendo a carta. — revirei os olhos. — E eu sei que você sabe.

— Por favor, Ana, você não me surpreende mais. — mordeu o lábio. — E não invente de me surpreender agora, tudo bem? — pegou minha mão, encarando-me nos olhos. — Você aceita se casar comigo?

Sorri.

— Isso depende. Em quanto tempo a casa ficará pronta? — ele encarou-me com confusão. — As crianças estão chegando, Thomas.

E eu finalmente o surpreendi, depois de longos dois anos.