A Lenda dos Sete

O Forasteiro


Agora, vamos voltar um pouco no tempo crianças. Não muito, apenas algumas horas. Agora, estamos em Balran, perto das oito. E pelos portões duplos e reforçados da cidade, um homem coberto de trapos negros dos pés à cabeça adentrou a cidade. E seus olhos brilhavam, um brilho amarelado e misterioso. O rapaz um dia teve nome, mas o passado dele era manchado pela guerra, e ela levou o nome dele. Por isso hoje em dia, apresentava-se como Zen.

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Foi só ele cruzar os portões, que dois guardas vieram logo ao seu encontro. O sono ainda os tornava menos diligentes que de costume, por isso, Zen não precisou falar muito para conseguir a passagem livre. Ele podia parecer um imbecil quando queria, ou seja, na maior parte do tempo. E por parecer esse imbecil, os guardas o deixaram entrar. Estava dentro da cidade, finalmente. Só restava encontrar uma estalagem para passar a noite, e no outro dia ir embora. Só uma noite por vez numa cidade, era essa a sua política. E dava certo, Zen se livrava das maiorias dos problemas, que com certeza se enfiaria se ficasse mais de um dia numa cidade. Pois cidades sempre tem problemas, e o nosso herói não consegue ver problemas e ficar de braços cruzados.

— Senhor, senhor! — uma criança maltrapilha surgiu na frente de Zen, sorrindo-o com os braços cruzados atrás das costas. — Vejo que é de fora, já conhece a cidade? Posso te apresentar os melhores lugares, por apenas dois cobres!

— Me empreste três cobres que te pago os dois cobres para você me mostrar a cidade — respondeu Zen, seguindo caminho. O garoto, por sua vez, não desistiu.

— Ora senhor, você não gostaria de passar a noite com a mais bela mulher de Balran? São apenas cinco cobres, e te levo até ela!

— Oh, já sou muito velho meu garoto — e imitou uma voz velha, fingindo uma tosse seca. — Nada mais levanta lá embaixo. Mas ajudaria muito minha saúde, se você me doasse dez cobres.

— Ei, você é tapado? Como vai fingir que é um velho se falou agora há pouco com uma voz de jovem — o garoto tinha uma expressão cínica no rosto.

— O tempo passa voando para um adulto, uma hora você é um jovem na flor da idade, apanhando por apalpar mulheres alheias por aí. E então, de repente, você não controla mais sua bexiga e marcas estranhas começam a aparecer em lugares indesejáveis do seu corpo. — Ainda fazia uma voz de velho, fingindo outra tosse.

— Eu te entendo, vovô — disse o garoto, dando alguns tapas leves próximo a cintura de Zen.

— Ah, eu sei que me entende, meu garoto — respondeu o rapaz, dando tapinhas também próximos à cintura do garoto.

E correu. O menino, não o Zen. Cortou pelo meio das pessoas que já andavam nas ruas aquela hora da manhã. Virou em alguns becos, sempre olhando para trás, certificando-se de que não era seguido. Depois de um minuto, parou arfando, encostado na parede de uma viela qualquer. Ergueu na mão um saquinho rechonchudo. — Aquele estranho era mesmo tapado, foi fácil roubar ele. — E abriu o saquinho, esperando vislumbrar várias moedas de cobre. Mas para sua surpresa, só haviam pedras, que foram jogadas no chão com raiva. — Maldito! — gritou, e outra voz gritou junto. — Maldito! — e junto do grito, o garoto tomou um cascudo na cabeça. Era Zen.

— Está cem anos muito novo para roubar de mim, rapaz — disse o homem, erguendo uma bolsinha. O garoto arregalou os olhos, espantado. Aquela era a sua bolsa de dinheiro!

— Ladrão! — e tomou outro cascudo.

— Se eu sou ladrão, você é o que moleque? O rei dos ladrões? — o garoto coçou a cabeça e respondeu.

— Eu sou uma nobre e virtuosa criança inocente, que tenta sobreviver à realidade dura do mundo. E para isso, tem que realizar pequenos delitos. — Falou com inocência, e tomou outra pancada.

— Virtuoso e inocente porcaria nenhuma. Se você é virtuoso e inocente eu sou a reencarnação do Iluminado. — Vocês sabem, o prometido que viria livrar a humanidade das trevas e tudo mais. — Agora para de me enrolar e me mostra uma estalagem.

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— E o que eu vou ganhar com isso? — o garotinho cruzou os braços.

— Vai começar não tomando outra pancada — o garoto o olhou com uma sobrancelha erguida em dúvida. — Anda de uma vez.

Contrariado, seguiu andando apressado pelas ruas, virando esquerdas e direitas. Logo chegaram numa estalagem com três andares de altura, muito bonita por sinal. Então o garoto tomou mais uma porrada na cabeça.

— Por que você fez isso?! — gritou ele, esfregando a cabeça.

— Você ia me cobrar para me trazer aqui, a vinte passos da porcaria do portão? — ele esfregou a mão.

— Nunca disse que era longe — defendeu-se o garoto —, vai ficar reclamando ou vai entrar?!

Zen suspirou e entrou na taverna, o garoto foi logo atrás. A taverna era daquelas luxuosas, que nem essa aqui em que estamos. Só que com um andar a mais, um pouco de ouro e luxuosidade a mais, talvez uns clientes a mais. Certo, já parei, não precisa tirar minha bebida! Bem, aquela era a melhor e mais luxuosa taverna de toda cidade. Foi só os dois entrarem, que um atendente foi ao encontro deles.

— Bom dia! Uma mesa para dois?! Um quarto?! Bebida, alguma comida?! Temos tudo aqui no Baile da Princesa! — sim, era um atendente muito animado.

— Uma mesa. Vinho para mim e leite pro moleque — falou Zen, sem dar trela pro rapaz. Escolheu uma mesa qualquer, descrevê-la não tem importância. O garoto sentou-se do seu lado.

— Você ficou bonzinho do nada — prosseguiu —, vai até pagar leite e ovos com bacon para mim.

— Ei, quem falou algo de ovos com bacon? — o atendente chegou a mesa dos dois, trazendo uma jarra de vinho, outra de leite, uma bandeja como ovos e bacon, e dois pães inteiros.

— Aqui está senhor. Leite, pão, ovos com bacon e vinho — disse o atendente, sorrindo.

— Ei, quem pediu ovos com bacon. E quem pediu os pães?! — quando ia falar para o garoto não comer nada que o atendente trouxe, já era tarde demais. Ele se empanturrava com pão, e já tinha devorado os ovos e os bacons. Quando foi reclamar com o atendente ele tinha sumido, como se fosse um mágico. — Ei, ei, ei. O que está havendo aqui? Eu estou com amnésia? Será que as porradas que eu dei em você me causaram amnésia?

— Balran tem bandidos em todos os lugares, até mesmo nas estalagens e tavernas — falou o garoto, como se fosse a coisa mais normal do mundo, terminando de beber o leite de uma vez só. Ele ergueu um saco de moedas. — Mais ovos e bacon!

— Ei, esse é o meu dinheiro! — gritou Zen, apontando para o menino.

— Não é não! Eu encontrei ele, honestamente, no seu bolso! — protestou.

O atendente surgiu outra vez, com uma bandeja com mais ovos e bacon, largando-a em cima da mesa. Antes que Zen pudesse reagir, ele já tinha sumido e levado seu dinheiro da mão do garoto. E antes que pudesse tocar na comida, o pequeno já estava devorando tudo!

— Meus deuses, parece uma draga — comentou o viajante, esfregando a cabeça.

— Eu estou em processo de crescimento, preciso me alimentar bastante ou vou ficar fraco e raquítico que nem você — comentou o garoto, engolindo o último pedaço de ovo, soltando um arroto logo em seguida.

— Me rouba e me xinga. O que serão dessas crianças de hoje em dia? — disse, agarrando o jarro de vinho e levando-o até a boca. Bebeu-o todo, sem nem parar para respirar.

***

O tempo não demorou a passar. Zen decidiu que iria ficar naquela mesma taverna aquela noite, e até deixou que o garoto dormisse no mesmo quarto que ele. O Sol já estava lá no centro do céu azul, e as nuvens mantinham-se bem longe, para lá longe, detrás das montanhas. O garoto jogava dados com Zen, e por algum motivo misterioso — o velho deu um sorriso —, o garoto sempre vencia. Foi na décima quinta rodada, que o viajante decidiu parar.

— Deu, já me cansei desses seus dados roubados, daqui a pouco não vai restar mais nada para apostar — e recostou-se na cadeira.

— Oh, senhor, está me acusando de roubar no jogo? De quebrar a regra mais valiosa de todas? — o garoto balançou a cabeça, em negativa, com um rosto inocente de desapontamento. — Como pode fazer acusação tão grave. Se não suporta perder, não deve jogar.

— Pare de me chamar de senhor, moleque — ele pegou um copo de vinho que tinha pedido meia-hora atrás e ainda não tinha dado cabo. Fez uma cara de marra, e fez a pose com mais estilo que conseguiu pensar. — O nome é Zen. — E bebeu o vinho.

— Então pare de me chamar de moleque — ele agarrou um outro copo, cheio de leite, que também tinha pedido meia-hora atrás, e também não tinha bebido. Imitou a cara de marra e a pose de Zen. — O nome é Rey. — E bebeu o leite.

O viajante ergueu a sobrancelha, irritado. Resolveu que outra hora daria uma porrada na cabeça daquele Rey, quem sabe até duas. Largou o copo sobre a mesa, e quando ia pedir mais um, sentiu um cheiro estranho. Era essa uma habilidade singular que tinha desde pequeno, ele conseguia sentir o clima mudar, escutar a ameaça se aproximando, cheirar o perigo se esgueirando. Olhou para os lados, e não encontrou nada de anormal. O estalajadeiro, o atendente, um homem caído no chão, cinco pessoas bebendo, um homem caído no chão? Pensou Zen, voltando o olhar pro caído, se assustando. Uma fera negra, maior que um lobo estava logo adiante de um corpo sangrando no chão. Se estava morto, ele não sabia, e nem tinha tempo para descobrir, pois ele percebeu que o lobo percebeu que ele tinha percebido que o lobo estava ali. Deu para entender? Tanto faz, o lobo estava preparado para saltar na direção de Zen, e isso é tudo que importa.

Se no lugar de Zen, fosse qualquer outro daquela estalagem, talvez o animal o tivesse abocanhado. Mas a presença do viajante ali, fazia com que a fera não fosse o predador, e sim, a presa. Se o animal tivesse parado para analisar seu alvo, teria percebido isso, mas não o fez. Simplesmente investiu com um salto, e Zen moveu-se junto. Agarrou o copo e enfiou na boca da criatura, impedindo-a de morder qualquer coisa. Quando ela pousou, derrubando a mesa, Zen já tinha se movido uma segunda vez. Vida alguma restava naquele monstro.

— D-d-demônio! — o dono do Baile da Princesa gritou, seguido de todos os outros clientes. Menos Zen, ele encarou a besta morta no chão. Havia matado com as mãos nuas.

— Não é um demônio — comentou, baixo demais para alguém ouvir —, eles são piores que isso. — E seu olhar se perdeu enquanto encarava a besta morta no chão. Um tremor o tirou de seu transe.

Não foi apenas um tremor, é claro. Vocês sabem o que é isso, então junto do tremor veio um grande estrondo. E então outro, e mais um, e por fim o rosnado. Ouvindo aquilo, o corpo inteiro de Zen arrepiou-se, enquanto sua mente era levada para tempos distantes. Uma zona sem vida, com corpos ungidos em sangue atingidos por todas as mazelas possíveis, espalhados aos milhares. E no meio deles, Zen gritava sua fúria, com o corpo coberto de cortes e perfurações. Ainda guardava consigo as cicatrizes, sentia a dor de cada uma toda vez que ia dormir, torcendo para que encontrasse paz nos sonhos. Mas só tinha pesadelos. Rey que veio a arrancar Zen de seu devaneio, ele puxava freneticamente a manga de sua jaqueta, gritando qualquer coisa. Não conseguia entender o que o garoto falava. Mesmo estando presente ali, seus sentidos estavam desfocados. Mas presumiu o que era, por isso, puxou o braço, livrando-se do garoto, e caminhou para fora do Baile da Princesa.

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Lá fora, uma besta colossal, tão alta quanto a taverna, metade homem metade touro, com o corpo inteiro coberto de pelos negros. Na mão direita, uma espada gigante com lâmina de um só lado, uma lâmina serrilhada e negra. Zen e criatura pararam de se movimentar, e encaram um ao outro. O viajante já tinha visto uma daquelas antes, sentiu na pele a carnificina que ela podia provocar com um balançar de sua espada. Lembrava do medo que sentiu quando viu-a pela primeira vez, da dor e do cheiro do próprio sangue escorrendo. Do último sopro de vida que escapou Dela, caída ao seu lado. Dos seus amigos sendo mortos um por um, sem chance alguma contra as forças daqueles monstros. Daquele homem, sacrificando a si mesmo para protege-lo. E de como no fim de tudo, só restava o cheiro repugnante da morte. Todas aquelas memórias vieram de uma só vez, ocupar sua mente, e Zen não sentiu nada. Expulsou-as todas assim que vieram, e mandou junto seus sentimentos. Por fim, não restava nada, só um vazio negro. Ele estava calmo como um lago.

A mão direita encontrou a empunhadura da espada, embainhada na cintura, e removeu-a vagarosamente, no tempo de uma longa respiração. Seus olhos encontravam a da fera, e milhares de imagens tentaram completar o vazio de seus pensamentos. Todas foram expurgadas, deixadas de lado. Nada poderia quebrar sua concentração naquele momento. Ergueu lentamente a espada, apontando ao monstro colossal em sua frente, e disse com uma frieza inumana.

— Venha — e a besta veio. Com um urro demoníaco, ela baixou a grandiosa lâmina negra na direção do viajante.

Quando a arma pareceu encontrar Zen, ele já tinha se movido. O monstro mal conseguiu ver quando aquele vulto negro literalmente rodopiou voando pelo ar, abrindo um enorme talho ao lado de sua perna direita. O sangue negro correu, e ela virou-se noutro urro, tentando encontrar o rapaz. Estava logo ali atrás dela, parado, o sangue negro cobrindo toda a extensão da lâmina de sua espada. O homem-touro golpeou, e a cena se repetiu. Outro corte, na coxa esquerda, tão profundo quanto o anterior. O monstro virou-se outra vez e recebeu mais um corte, na panturrilha direita. A cada vez que girava, tentando acertá-lo, recebia um talho tão feio quanto os outros. Suas pernas estavam cobertas deles, quando ela finalmente o pegou. Ele estava ali parado, e o monstro atacou. Quando Zen saltou por cima da lâmina, o monstro moveu a outra mão, certeira. Foi tão rápida, ou até mesmo mais rápida que o viajante, e esse tomou o golpe direto, sendo arremessado contra uma casa. Atravessou uma parede, outra, e finalmente foi parado pela terceira.

Três, quatro costelas quebradas? Mais até, mas não tinha tempo para contar, o monstro vinha logo adiante.

Levantou-se do jeito que pode, o vazio dentro de si oscilando. Não sentia a dor, nem tinha medo, o problema eram suas memórias. Memórias, crianças, são tão poderosas quanto os sentimentos. Ainda mais quando são as lembranças que queremos apagar de nossa mente. Então, quando Zen olhava o monstro adiante, a própria realidade piscava e se alterava. Uma hora a criatura das trevas se aproximava, bufando, preparada para mata-lo com um golpe, e noutra, tinha que desviar de uma lança que vinha certeira perfura-lo no coração.

— Preciso me concentrar — balançou a cabeça, afastando-se de seus pensamentos. Ergueu a espada, apontando a besta que havia parado, intrigada com o rapaz dentro da casa. — Venha.

E ela foi outra vez, urrando e balançando a espada. A grande lâmina negra rasgou a moradia em duas, mas não chegou a tocar Zen. Ele era esperto, quando a besta golpeou, saltou por uma janela logo ao seu lado, e a sua sorte o fez cair num monte enorme de feno, que amorteceu todo o impacto. Foi questão de levantar, que teve que desviar outra vez, pois o monstro já vinha com outro ataque. E outro, e mais um, e assim seguiu-se, com Zen desviando da melhor maneira que podia dos golpes consecutivos da criatura, esperando alguma brecha. Por que ele não está rápido como antes? O que você acha? Ele quebrou umas seis costelas!

Foi uma loira que deu a ele a brecha que procurava. Ela usava uma imponente armadura de batalha, e a lança que ela arremessou atingiu bem na parte detrás do joelho do monstro, fazendo ela curvar o colossal corpo para trás. A criatura urrou, e Zen também. Saltou para o joelho da fera, e literalmente começou a correr, subindo por toda a extensão do corpo daquele gigante. Quando alcançou o topo do peito do monstro, saltou. Parecia voar, e o próprio tempo parou para que todos vissem a imagem daquele homem no céu, encarando o homem-touro com superioridade. Até mesmo aquela loira, a pessoa mais inabalável que já andou por essa terra teve que admitir. Aquela era uma cena impressionante.

Foi o grito de Zen que fez o tempo andar de novo, um grito de vitória. Enquanto caía até o chão, baixou a espada, rasgando todo o corpo do monstro numa linha vertical, da cabeça à virilha. Quando chegou ao chão, levou ainda um segundo para que o sangue jorrasse todo de uma só vez do ferimento da besta, proporcionando um banho de sangue à rua — o velho ajeitou-se na cadeira, enquanto as crianças o ouviam muito atentas, com olhos brilhantes. — Havia acabado, o monstro caiu de costas no chão, coberto de sangue. A vida dele havia terminado. E com a vida da besta, o vazio da mente de Zen finalmente rompeu-se, e toda a dor de seus ferimentos veio de uma só vez.

Ele caiu no chão. A última coisa que viu antes de desmaiar foi o rosto angelical de uma loira, gritando algo para ele.