Chamem os Bombeiros

Mais um dia de trampo


Olho no relógio e fico contente: consegui bater meu recorde! Ainda cheguei dois minutos, adiantada. As pessoas devem pensar: “mas o que são dois minutos?”. É um tempo considerável na vida de um jornalista. Às vezes, dois minutos fazem a diferença para obter um furo!

Saio do elevador e sigo em direção à portaria. O carro da reportagem do jornal já está me esperando. Inclino-me para ver quem é o motorista e me dá um frio na barriga. Desta vez é o Juarez. Olha, esse cara é completamente insano. Talvez ele seja um piloto de fórmula 1 frustrado. Também, ele ultrapassa micro-ônibus, ônibus, caminhões e até os motoboys. “Tudo pela notícia”, diz ele. Uma ova! Ele gosta é de correr!

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— Bom-dia, princesa! Tudo bem com você? – ele me cumprimenta.

— Oh, Jura! Bora que o dia é longo! E Vossa Excelência vai ficar aí parada?

O moço “simpático” que disse tão doce frase é o Júlio Sardinha. Pois é, “adoro” o jeito que ele trata os outros... Entro no carro, pelo banco traseiro.

— Tudo bem, garota?

— Agora, não sou mais Vossa Excelência? – pergunto.

— Ops, desculpe aí! Pensei que fosse a outra repórter... Aquela arrogante! – reclama o fotógrafo.

— Qual? – indago.

— Deixa pra lá! – dá de ombros. — Agora não é mais importante. – e me mostra um sorriso.

Cara, como ele pode ser tão irritante? Aquela calça preta, lotada de pelos do cachorro... Pois é, ele tem um golden retriever, o Mozart. Muito fofo, mas completamente xarope, e como perde pelos! Ah, tenha dó, né? Sou dona de um gato, mas não ando desleixada assim! Também o Ernesto é tão limpinho. Esse tonto bem que poderia comprar um rolinho para tirar os pelos da calça. Aliás, de todas as roupas dele!

— E aí? Preparada para a aventura? – ele me indaga enquanto coça a barba. Meu, como isso me irrita!! Vontade de enfiar cinco dedos na cara desse energúmeno.

— Sim! – respondo seca e tentando achar uma maneira de comer meu café da manhã.

— Com fome? – pergunta o Juarez. — Trouxe suco e uns pãezinhos de queijo. Estão no isopor lá no porta-malas. A gente come alguma coisa quando pararmos.

— Mas não teremos tempo! – responde Júlio, agora, torcendo os pelinhos daquela maldita barba, com os dedos finos. Cara, como isso me irrita! Já disse isso antes, né?

Pois bem, ele é bonito, não posso negar. Tem os cabelos enrolados castanhos, os olhos de um azul bem escuro, próximo ao marinho. São quase negros, mas muito charmosos. Ah, sim, aquela barba que me enerva. Ele pensa que é hipster? Calça preta, uma camiseta branca com dizeres sobre games, uma camisa xadrez jogada por cima e tênis que deveriam ser brancos. Mas de tão sujos (ele fala que é cool), que se tornam cinzas. Ele tem uma argola na orelha esquerda. Porque como ele mesmo disse, se deixasse na direita, seria um código que é gay.

— Bem, estou com fome! – declaro.

— Sério? Aposto e ganho que você trouxe bolinhos e suco de soja. Você é toda natureba!

— E você é hipster! – retruco.

— Cara, por que você quer tanto comer essas coisas naturais? Coisa boa é bacon...

Ele nem termina a frase, e quase cai em cima de mim. Isso porque o Juarez conseguiu fazer uma manobra espetacular (e mortal) desviando de uma moto.

— Cara! Não quero morrer já, não! – o pentelho do fotógrafo reclama e quase me esmagando. E só dou aquela rosnada básica que ele fica com cara de “O que fiz?”.

— Daria para você ir mais para lá?

Júlio fica até corado (e tímido?) e se afasta.

— Desculpe. – diz baixinho.

— Putz, os gambés estão fechando todas as vias! – avisa Juarez.

Ele dá umas voltas tão malucas que nem sei muito bem onde estou. E olha que conheço o Centro de São Paulo como ninguém. E a fome aperta! Tento abrir a sacolinha de papel com cuidado, mas sinto uma respiração na minha nuca.

— O que tem de bom aí?

Júlio parece o Ernesto, aquele esfomeado. Não pode escutar mexer em saquinhos de pão, sacolinhas de supermercado que ele levanta as orelhas. Com a diferença que ele não é fotógrafo, come ração e não enche o meu saco. Miro com certa reprovação para meu colega, mas ele continua me encarando com olhar pidão. Que ódio disso!

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— Você quer.. Quer.. um peda...

— Eu quero!

Ele não é odioso? Mal perguntei e ele disse que quer um teco.

— Perguntei por educação!

— Tudo bem! Mesmo assim, quero um pedaço!

Divido o muffin em dois, mas não em fatias proporcionais, afinal a maior vai ser minha. Enquanto faço isso, o fotógrafo fica olhando atentamente. Se tivesse orelhas como as de gato, ficariam eretas, assim as de Ernesto enquanto me observa quando preparo alguma comida para mim e para ele. Quando começo a pegar o suquinho, escuto o Juarez dizendo:

— Chegamos!

O Júlio coloca o pedaço dele na boca, e sai disparado em direção à confusão. E com a boca cheia, me avisa:

— Me segue!

Ainda bem que estou com uma mochila porque fica mais fácil de carregar. Saco o gravador digital, um bloquinho e uma caneta que já está no espiral desse. E vou atrás do tumulto.

Bombas de efeito moral infestam o ar, gritaria, confusão. E quase do meu lado, os manifestantes ateiam fogo em um ônibus. O Júlio me puxa para trás dele, mas em um ímpeto de moleque começa a tirar fotos do veículo incendiado.

Estamos na frente do Teatro Municipal, onde foi palco de milhares de óperas, concertos e até o Manifesto de 22. Mas os integrantes do MSTS nem ligam. Não dá para entender direito e tento me integrar ao grupo para conversar quais são as reivindicações.

— Ei, onde você vai? – grita Júlio, que vem em minha direção.

— Preciso saber o porquê eles entraram em conflito com a polícia!

— Vou junto com você! – informa e me puxa para longe do tumulto.

— Não precisa ficar de mimimi que sei me cuidar!

— Ah, sabe, né? – tira sarro da minha cara com um sorriso cínico. — Você já viu seu tamanho, garota? Pequenininha, frágil e ainda querendo se fazer de heroína?

Como esse fotógrafo pode ser tão... Chato? Ranjo os dentes e saio correndo em direção ao grupo que tentava arrancar uma cabine de um fiscal de ônibus.

— Eita, garota complicada! – reclama e vem atrás de mim.

“Como é maravilhoso quando essa casa fica silenciosa. Bem, agora vou tirar um cochilo... Que barulho é esse? Furadeira? Não, não pode ser! E outra, a humana não está aqui, tenho certeza! E esse ruído de novo! Que coisa mais irritante! Onde pode ser? Sigo o som e parece sair lá da sala. Que nervoso! Ninguém respeita mais alguém que precisa dormir a essa hora da manhã? E quem teve seus momentos de caça e exploração durante a noite! ? Gente mais sem respeito!

Sigo até a sala e parece que não é o vizinho. É lá fora! Subo até o peitoral da janela. Lugar onde essa humana destrambelhada colocou telas. Aliás, ela colocou telas até em Marte! E precisava disso? Claro que não iria cair! Tenho destreza, meu corpo foi feito para aguentar qualquer queda! E repito: qualquer queda!

Ah, esse barulho irritante de novo! Coisa mais esdrúxula! Como diria aquela humana que cuida de mim, achando que sou apenas um gato! Que estúpido! Inclino-me para rua e lá está o causador do ruído: uma maldita britadeira! ‘Ei, você! Desligue essa porcaria e vá comer um lanche de mortadela! Maldito! Ninguém tem mais respeito, não?’ Mio! E mio com todas as minhas forças brandindo aos quatro ventos a minha indignação! E ele me ouve? Claro que não! Ai se tivesse lá embaixo! Iria unhar sua cara.

Fiquei tão nervoso que me deu vontade de fazer xixi. Xixi, não! Cocô mesmo! Vou até a caixa de areia e me imagino fazendo isso na cabeça daquele desgraçado! Maldito seja que não me permite dormir como devo! Ou melhor! Como eu mereço! Com as patas acabo enterrando o meu feito! Ah, sim, afinal a humana me trata bem, isso seria ao menos um favor.

Também, não trago mais ‘presentes’ para ela. Ah, tenha dó, gritar por causa de uma barata? Que menina idiota! Desço da caixinha de areia e me limpo com a minha língua. Nada como ficar limpinho. E olha, me deu até saudades da humana... Como será que ela está se saindo?”.