Chamem os Bombeiros

Encrenca, encrenca e encrenca


Estão o Jura ao volante, o Murilo no banco da frente, eu no banco de trás do lado do motorista e o Júlio do meu lado esquerdo, dentro do veículo. A conversa corre animada, principalmente pelo Murilo.

— Então foi isso! Não admito que as pessoas sejam algozes das outras. Ou mesmo, desonestas! – o novo redator encerra, com toda a sua eloquência, o porquê saiu do jornal concorrente.

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— Caramba, cara! Então, foi foda! – dispara Jura. Mas quando ele percebe que sua explanação termina com um palavrão daqueles, vira e dispara:

— Ops, desculpa, cara! Não sou assim.

— Não! Ele é pior! – retruca Júlio com tremendo mau-humor.

Desde que saímos do jornal, o fotógrafo hipster entorta a boca a cada frase dita pelo colega. E eu e o Jura tentamos deixar o cara à vontade. O Murilo é muito bonito, mas como fala! Isso definitivamente me incomoda um pouco. Mas dá para levar.

Encaro o fotógrafo como fosse uma reprimenda. Ele me olha e levanta os ombros como quem dissesse “o que foi?”.

— Desculpe, Murilo! Definitivamente, o calor afeta o Júlio! – tento amenizar a situação.

— Coloque aí também a sua companhia, garota! – o hipster retruca com a voz com tom um pouco esganiçado.

E não é que vejo o Jura e o Murilo sorrindo como fossem cúmplices? Afinal, o que eles ganham com isso? O garoto mal chegou e já tá todo cheio das gracinhas com nosso motorista? Ah, qual é?

O trânsito está caótico, um calor absurdo. Parece até que toda a cidade está a ponto de enforcar alguém. E nada de chuva. Nada de água. Nada de investimentos... Mas isso é outra história...

Quando entramos Avenida Higienópolis já avistamos um flagra. Um senhor na frente de um condomínio chique lava a calçada com toda calma do mundo com um esguicho de alta pressão.

Aponto em direção a ele, e digo:

— Jura para onde der que vou lá pegar o depoimento do cara. E Júlio – viro-me para o fotógrafo que me olha com uma cara azeda, mas não me intimido e continuo: - Vem comigo que você pode...

— Ei, garota, antes que você peça para que eu traga a farinha, já venho com o bolo pronto! – quando vejo, ele está a postos com a câmera na mão, me empurra, quase se joga no meu colo e mira em cheio para o cara e...

— Ei! Você! – grita o homem e aponta o esguicho em nossa direção. Eu e o Júlio nos atrapalhamos para fechar o vidro automático do veículo. Tentando sair da confusão, o Jura recebe uma fechada, ou melhor, ele dá uma fechada no carro que passa ao nosso lado e o motorista mete a mão na buzina.

— Você viu o que fez? – indaga o barbudinho para mim, com a voz acima da média. - Quase estraga a minha máquina!

— Fiz porra nenhuma! Se você tivesse a paciência de esperar e... – grito, mas sou cortada. Meu, que irritante!

— Não fez o quê? Queria que o Jura parasse a carruagem, princesa!? Se não me arriscasse para pega a cena...

— E você me atrapalhou para fechar o vidro, idiota!

— Ei, ei, crianças! Superem! Vou dar mais uma volta e duvido que a gente pegue algo mais grave do que isso – nos diz Jura.

— Definitivamente, é mais divertido trabalhar em campo, não é? – declara Murilo.

— Não! – respondo.

— Depende com quem você sai! – arrebata o Júlio.

Só vejo o Jura respirar fundo procurando ficar calmo.

Mesmo no meio do rebuliço, arranjo forças para anotar sobre o acontecido, o endereço e horário que encontramos o senhorzinho esbanjando água. Penso em perguntar ao Júlio se conseguiu tirar alguma foto. Mas de minuto em minuto, ele bufa, então, deixo quieto.

Mais algumas voltas e descobrimos uma empresa que está lavando as janelas de outro condomínio. E esse é de doer. São dois caras paramentados em andaimes, mas com uma mangueira que extravasa água para todos os lados, de modo intermitente. O Jura consegue parar em uma ruazinha e saímos correndo do veículo, eu, o Júlio e Murilo.

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— Murilo, fica do meu lado! – oriento-o.

Mesmo com fôlego atrapalhado, o Júlio dá uma patada:

— Ele não é foca, gênia!

Faço de surda, porque se parar, vamos perder mais um flagra. Mas minha vontade era parar, dar um tapa na cara dele, pegar a câmera e dizer: —Volta para o carro, criança!

Paramos em frente ao prédio e o porteiro aparece na porta da guarita e nos intimida:

— O que vocês querem?

— Moço, o síndico e o zelador sabem que se continuar esse tipo de serviço – aponto para os dois funcionários que pareciam dois moleques tomando banho e brincando com chuveirinho – e alguém denunciar, vocês podem ser multados? – indago.

Ele dá um sorrisinho de canto de boca e com escárnio nos responde:

— Oh, mocinha, você pensa que é da Sabesp, é?

— Não, senhor! Sou repórter! E estou aqui para cobrir...

Mas sou cortada porque o homem vem em minha direção, sem se intimidar. Quando ele percebe que o Murilo está do meu lado e o Júlio está tirando fotos nas posições mais esdrúxulas possíveis, ele assovia e aparecem outros dois caras.

— Caramba, vamos embora porque eles vão nos agredir – aviso os dois.

O Júlio para de tirar fotos e os encara. Ótimo, ele vai querer mesmo encrenca? Será que ele não percebe que os caras fazem dois dele? O xarope é alto, mas é magro como um pau.

— Qual é, cara? – indaga Júlio, com os braços cruzados, a câmera no pescoço de modo transversal como fosse uma bolsa e com olhos faiscando. – Que saiba os errados são vocês!

— Ah, é, mocinho? – encara o mais troncudo e com a cara do Anderson Silva, aquele lutador de UFC– E podemos chamar a polícia e falar que vocês tentaram invadir a propriedade.

— E qual seria a prova? – pergunta o fotógrafo com leve sotaque caipira. Será que ele não percebe que não dá para encarar os dois?

— Vamos embora, Júlio! Vamos embora! – aviso.

— Vão vocês! Ué? Onde fica a postura de repórter....

— Ei, pessoal!

Quando viramos, damos de cara com o Jura.

— Bora, que recebi uma multa! Puta que pariu de DSV e CET!

— O senhor está errado! E por que nos chamou de filhos da puta?

Todos viram a cabeça, incluindo aí os dois porteiros troncudos e quem fala é o agente que acabou de multar o nosso motorista.

— Definitivamente, não é nosso dia! – penso em voz alta.

E o dia corre assim. De sopapo em sopapo, conseguimos flagrantes bem assustadores da falta de conscientização da água.

Vou para redação e com a coautoria de Murilo, escrevo a reportagem, que estará inclusa na edição de amanhã. Logo mais será o fechamento, mas pelo bom pai, não vou precisar ficar.

Quando desço do elevador dou de cara com Edgar voltando com uma sacolinha, que de longe cheira à mortadela. Nunca vi homem para gostar de sanduíche com esse tipo de frio. E é sempre ele que vai buscar o lanche. Poderia ir a Lilian? Poderia! “Mas ela nunca traz do jeito que gosto, tostado com fatias de mozarela, tomate e orégano”. Sem contar que ele também descobriu que relançaram aquela bebida mais velha que minha avó: tubaína. É o acompanhamento preferido para seu lanche.

— Já vai, garota? – ele me pergunta.

— Sim, chefe! – respondo com um sorriso.

— Vi por alto e adorei sua abordagem na matéria. Foi a mais corajosa do pessoal!

Fico surpreendida com o elogio. Aliás, aí está algo que ele nem sempre faz, elogiar.

— Sério isso, chefe?

— Sim, sim! Sem contar que o Júlio reforçou que você enfrentou uma boa dúzia de pessoas falando da falta do consumo sustentável de água.

Como que é?

— O Júlio, chefe?

O elevador chega para que o Edgar subisse. Mas ele parece que não vai arredar o pé até a conversa terminar. Agora, não sei se isso é bom ou ruim. Talvez não quisesse saber o que ele tinha para falar. Talvez estivesse irritada em não querer entender o que eu sentia pelo hipster metido.

— Ele mesmo, garota! E pode reparar, vocês fazem uma dupla em tanto! E o Murilo se divertiu horrores!

Aí está uma coisa que me intriga: por que o chefe adora o Murilo que mal chegou? Uma das coisas que desconfio é que, na cabeça de Edgar, o novo redator irá passar toda a cartilha de nosso rival. Vai entender... Ou seria outra coisa? Bem, deixa para lá.

— Ah, é? – foi o que pude responder.

— É, sim! Tanto é verdade que vou convocar a trupe novamente para sábado!

Sábado? Caramba, logo sábado? Tento disfarçar a minha decepção. Então estou escalada para o sábado. Não só eu, o Jura, o Murilo e... Oh, Deus, o Júlio.

Diante do meu silêncio e da minha careta, o chefe informa de um jeito debochado de ser:

— Você está sabendo que sábado pode ser o dia mais quente do ano, não?

— Sim, ouvi falar. – respondo.

— Então, o nosso foco não será quem desperdiça água, mas quem economiza e tenho umas indicações bem legais para vocês entrevistarem.

Ah, não... Lá vem ele com aquelas entrevistas bombas! Gente que fala pouco é como tirar leite de pedra. Ou, fala mais do que uma matraca trica e não dá espaço nem para a próxima pergunta, quiçá terminar de responder a que acabei de fazer. É... Já entrevistei gente assim e todas foram indicadas pela pauta do meu querido chefe.

— Mas fique tranquila. Serão duas entrevistas e acredito que até o horário do almoço vocês estejam liberados.

Terminada a bomba, meu chefe se despede e entra no elevador com uma cara de traquina. O observo, e ele me dá um sorriso e retribuo com outro. Faço um tchau e a porta se fecha.

E solto baixinho um:

— Que saco!

Bem, o que me resta agora? Ir para casa, pedir uma pizza e abrir uma cerveja. Sem contar que preciso dar de comida para o Ernesto e trocar a água. Preciso realmente de descanso.

“Inferno! Mil vezes inferno! Como consigo sair daqui? Estou apertado de fazer xixi, já está escuro e nem sombra da humana. Ótimo, era tudo que precisava para hoje! Quem mandou ficar empolgado com essa estúpida bolinha colorida com cheiro doce e que me deixou ouriçado, dada pela humana? Sim, gatos são estúpidos de vez em quando! Agora estou preso entre a estante de livros e a parede. Como entrei aqui, até agora não sei. Só sei que meu corpo está comprimido. E essa sensação de confinamento é um horror! Estou com o focinho virado para um vão que nem sei onde vai terminar. E tudo começou quando aquela porcaria pulou mais alto e caiu nesse vão. Já entrei em tantos espaços apertados com uma facilidade e saí tranquilamente depois. Agora não sei o que aconteceu! Aaaaaah! As minhas laterais estão sendo apertadas por essa maldita estante e essa maldita parede. Mio como quem quisesse avisa-las para se afastarem! E não se afastam!

Tento levantar a pata para unhar essa maldita estante e... Não! Isso não é possível! A pata ficou presa também? Só sinto as minhas unhas raspando, mas, não consigo me mexer. E cadê essa HUMANA QUE NÃO CHEGA?! Meu estresse é tão grande que começo a me chacoalhar e aí sim, fico em uma posição pior! Consigo me mexer, mas não sair! QUE ÓDIO DISSO! Mio, mio, como louco!

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Escuto a tranca da porta abrir! Obrigado Bast por me ouvir!”.

Entro em casa e nem sinal do Ernesto. Estranho bastante. Ele sempre aparece quando abro a porta. Jogo a mochila no sofá e chamo:

— Ernesto? Ernesto! A mamãe chegou! Onde você está? – pergunto para o meu gato.

Silêncio. Vou até a cozinha e verifico as tigelinhas. Elas estão quase vazias. Tanto de ração como o de água. A caixinha de areia está suja, mas vejo isso depois. Volto para a sala e o chamo de novo:

— Ernesto? Onde você está?

Vou pelo corredor e paro em frente ao banheiro. E o chamo de novo. E de novo. E de novo. Aumento mais um pouco a voz. E meu coração fica aos pulos. Será que ele pulou uma das janelas? Não, não! Elas estão teladas! Ele...Ele não iria subir até a janelinha do banheiro, né? Abro a porta e verifico se ela está aberta. Não, não está. Também fecho quase todos os ralos e janelas por causa das baratas. Tenho horror a elas. E o pior que o Ernesto as encara como parte da diversão! Aliás, por onde anda Ernesto?

— Ernesto, vamos! Pare de brincar que a mamãe está preocupada! Vamos, onde você está? – pergunto com o tom de voz mais alto, quase próximo de gritar. E aí sim, ouço o miado abafado do meu gato. Caramba! Onde ele se enfiou?

Chamo várias vezes para descobrir onde ele está. E aos pouco detecto que vem do quarto que fiz de minibiblioteca e escritório. Entro e aí sim consigo ver o rabo dele mexendo para lá e para cá. E ele mia cada vez mais irritado! Quando chego perto, percebo que, não sei como, ele está entalado entre o vão da estante de livros e a parede. Caramba, esse gato tem comido demais! Só pode. Agacho bem próximo e digo com a voz suave:

— Vou tirá-lo daí, mas promete que não vai me arranhar? – indago.

“Se vire, humana! Faça qualquer coisa, mas, ME TIRE DAQUI!”, mio alto.

Primeiro tento puxa-lo pelas patas. Quase levo um coice! Imagina levar um coice de um gato! Penso em puxa-lo pelo rabo, mas paro antes da possibilidade de assim que tirá-lo de lá, ele vai unhar minha cara. E francamente, não quero perder o olho tentando ajuda-lo. E aí sim, tenho uma ideia. Volto até a área de serviço, pego a vassoura e volto para o escritório. Se coloca-la no vão, acredito que ele será inteligente em se agarra a ela e aí sim, irei puxa-la. Pode ser que ele saia um pouco esfolado, mas nada como uma boa escovada e uns beijinhos para que o bicho se acalme.

Faço a primeira tentativa e nada! Parece que ele desdenha o utensílio. Olha, hoje está sendo um dia infernal. E aí parto para segunda, terceira e quarta. Na quinta tentativa, ele entende. Com um pouco de esforço, miados revoltados, consigo tirar o bicho.

Agacho novamente para abraça-lo, beija-lo e agrada-lo. Ele simplesmente passa entre as minhas pernas e braços que estavam prontos para abraça-lo. Anda um pouco para frente, vira-se para trás e mia.

“Obrigado, humana! Mas chega de me dar esses brinquedos estúpidos que me entalam em qualquer lugar!”, mio e vou embora.

Depois dos seus miados, não sei dizer se ele me agradece ou me desdenha. Sento no chão, suspiro, resignada. É esse dia não foi fácil, nem um pouco.