Quero que você conheça meu mundo

A conexão natural e transformadora


Música ouvir enquanto lê

– Estou pensando em parar de advogar, Bento. – Frederico anunciou ao amigo. Ele não tinha muita certeza disso, sabendo que seria um ato arriscado, mas não aguentava mais trabalhar em algo que tanto o entediava.

– E vai fazer o quê? – Bento bebia o refrigerante direto da garrafa. Estavam no apartamento que alugaram na praia e era o último dia de estadia.

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– Você lembra da minha época de TCC, OAB, não lembra?

– Que você quase teve um ataque de pânico? Como esquecer!

– E eu questionava todos os dias por que ainda estava fazendo aquilo. E não desisti simplesmente porque era o último semestre de faculdade, e já havia passado por tanto que acabar com tudo seria idiotice. E passei na OAB milagrosamente e cá estou eu, entediado e não sabendo nem mais quem eu sou.

– Você passou na OAB porque sempre foi um nerd filho da mãe, Frederico Escobar! Agora um emozinho reclamão, isso é novo pra mim. – Bento brincou, e então colocou a garrafa de refrigerante no chão da sala. – Olha, o que quer que você queira fazer agora, eu estou do seu lado. E não ligo se essa frase ficou totalmente gay porque você é meu melhor amigo e meninas fazem isso toda hora, merda! Qual o problema de caras fazerem também?

– Só falta isso acabar com um abraço emocionado entre nós dois e falarmos ‘eu te amo’ um ao outro. – Frederico entrou na brincadeira.

– Não exagera! Isso já ultrapassa os limites de uma amizade saudável. – E então Bento trocou olhares com Frederico que apenas melhores amigos fazem e deu um peteleco na cabeça dele.

– Se esse é seu jeito de demonstrar amor, eu também te amo. – E Frederico devolveu o peteleco. Ambos acabaram rindo. – Mas falando sério, estou à beira de um colapso mental.

– Verbalize isso, amigo.

– Pense bem: eu vivo uma rotina insuportável, e todos os dias subo naquele prédio sério e cinza, com aquele céu cinza de São Paulo, com aquelas pessoas de cara fechada, e parece que sou um robô. Parece que vivo no piloto automático. E então estou aqui na praia, onde o céu é cheio de nuvens, e a azul é tão azul que parece uma fotografia. E eu entro no mar, e a brisa bate no meu rosto. E eu fecho os olhos, e os sons ao redor se harmonizam, e eu sinto as ondas batendo nos meus pés, e a areia que se afunda com meu peso. E eu sinto isso. Sinto a conexão natural e transformadora com a Terra e penso: o que é mesmo que estou fazendo com a minha vida?

– Meu Deus do céu, meu amigo virou um hippie e vai vender arte na praia?! – Bento tirou todo o clima introspectivo que Frederico passava no momento.

– Expanda um pouco essa sua mente, Bento! Acha mesmo que é certo me render a algo que odeio e deixar o que me faz feliz apenas como válvula de escape se posso vive-las plenamente?

– E o que você vai fazer então?

– Lembra de quando estávamos no Ensino Médio e eu era visto como o fotógrafo oficial da turma?

– Não me diga que quer voltar a fotografar.

– Nunca parei exatamente.

– Isso me lembra muito uma pessoinha.

– Não seja tão infantil, Bento!

– Clarice, a fotógrafa que virou sua cabecinha! E ela? Sumiu não é mesmo? Será que ainda está viva, vivendo seu sonho ou foi morar em alguma sociedade alternativa nas montanhas e virou uma mulher das cavernas pós-moderna?

– Nossos estilos são totalmente diferentes. E eu gosto disso, Bento. Me concentra, relaxa.

– E me atordoa! Seu apartamento é cheio de fotos e mais fotos amontoadas.

– Então vai virar fotógrafo?

– É uma hipótese.

– Fotografar casamento? Aniversário?

– Não. Penso em fotografia documental.

– Vai morrer de fome.

– Não seja tão pessimista! É uma forma de arte que sempre gostei, e isso é claro no meu quarto. Todas as fotografias do meu quarto são momentos que aconteceram e foi marcante, e eu fotografei. Aquela foto do João andando? Documentamos isso e eterizamos. É isso que eu quero.

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– E quais momentos quer documentar, fotógrafo?

– Penso em ir para o interior do país durante esses anos, fotografar o cotidiano do povo, suas histórias e costumes, e juntar isso numa exposição ou livro.

– É uma ideia boa.

– Não é?

– E está preparado para largar tudo? Começar do zero?

– Não tenho nem vinte e cinco anos. Vou largar tão pouco.

– Tudo bem então. Só não esquece de voltar sempre para São Paulo visitar o João.

– Só o João?

– É claro que só ele vai sentir saudade de você. Eu não vou nem lembrar mais de sua existência depois de uma semana. – Bento disse, mas seus olhos diziam o contrário.

¨¨¨

DOIS ANOS DEPOIS

Nova York nunca dormia. Nova York brilhava.

E Clarice também.

Depois de dois anos cheios e cansativos de produção árdua, finalmente se via os pôsteres e os trailers do filme da “Promissora cineasta que chegava com uma ideia inovadora no Cinema mundial” como uma fonte ligada à entretenimento dissera.

E tudo estava compensando. Toda a dor e medo.

– E como você sente sabendo que em cinco dias estará pisando na première de seu filme, brasileirinha? – Hayden perguntou e deu um beijo na testa da amiga. Ele tinha acabado de chegar na lanchonete em que eles tinham marcado de se encontrar. Hayden passava uma temporada em tour, e como estava em Nova York, pôde se encontrar com Clarice.

– E você também estará pisando! Como o responsável pela música principal da trilha sonora, tem que estar lá no meio dos flashes.

– E quem sabe eu não ganhe um prêmio pela música emocionante que eu compus?

– Sonha baixo... – Clarice zombou e sorriu.

Com toda certeza era Hayden que estivera em todos os momentos na hora da produção do filme. Até achavam que eles estavam juntos, mas como bons melhores amigos eles faziam cara de nojo e começavam a rir.

– Eu tenho uma responsabilidade com meu país, Hayden. Depois dessa première eu vou embarcar para São Paulo para fazer uma première lá também. Você sabe de meu sonho, de poder transformar o Cinema Brasileiro, dar mais incentivo à novos cineastas, criar uma escola de Cinema acessível, projetos para comunidades carentes focados na arte, e tirar todo esse preconceito de “filme brasileiro é ruim”. Tudo isso a longo prazo, claro.

– Nem teve ainda a primeira exibição de seu filme ainda e já está pensando em tudo isso? Garota, você não descansa a mente nunca?

– Você está certo. Sexta-feira é a première, e no sábado sai as notas dos críticos e se elas forem ruins eu acho que desmorono! Então é melhor focar todas as energias para isso.

– Não vão sair notas ruins, Clarice. Esqueceu de como eu subornei todos os melhores críticos do mundo com esse meu corpo abençoado? – Hayden brincou.

– Então estou te devendo uma, ó corpo abençoado.

¨¨¨

Fazia um ano em que Frederico via toda a divulgação do filme de Clarice. Os portais de noticia brasileiros faziam questão de sempre postar notícias sobre o filme, já que Clarice é brasileira e seu filme era muito esperado.

E então a notícia de que semana que vem ela estaria em São Paulo com o elenco em uma première o fazia ter sentimentos confusos. Queria vê-la, mas ao mesmo tempo temia o que sentiria ao estar perto dela de novo depois de seis anos.

A foto dela estampava uma postagem sobre o filme. Era a mesma, definitivamente. A mesma tatuagem na clavícula vazando pela blusa, a mesma cor dos olhos, o mesmo sorriso distante. E em baixo tinha fotos do filme, e ele reconhecia algumas imagens pelo roteiro que alguns anos tinha ajudado a escrever.

E então clicou para ver o trailer. Nem sabia porque fazia isso, se torturar. Mas o vídeo já passava.

E então atirou para longe o celular passando o vídeo, e colocou as mãos em cima da cabeça, tremendo. Não dava para continuar assim.

Pegou o celular de volta e clicou no ícone da foto da Clarice para ligar para ela. E caiu direto na caixa postal.

É obvio. Ela não usava mais o número brasileiro, mas um americano. E ele se sentiu mais idiota por não ter pensado nisso.

¨¨¨

A première tinha chegado. Clarice olhava seu reflexo no espelho com um vestido bonito, mas nada extravagante como o das atrizes do filme. Todo o glamour ela preferiu deixar para o elenco, pois o que ela mais esperava era sentar-se e assistir seu filme em uma tela de cinema pela primeira vez.

E Nova York parecia estar três vezes mais brilhante, se isso era possível. E estar no carro a caminho da première fazia seu coração pular e seu estomago embrulhar. Nem tudo isso tirara seus pés do chão, ou fizera ela esquecer suas raízes. Era tudo tão grande, e continuava parecendo um sonho.

Clarice começou a notar o barulho dos flashes das câmeras dos fotógrafos, e foi quando caiu na real. Seu estômago embrulhou e desejou que alguém estivesse ao seu lado para sentir-se mais confortável. Afastou a ideia imediatamente, odiava se sentir vulnerável, e então a porta foi aberta e ela saiu.

Os pôsteres do filme, os jornalistas, o elenco. Tudo estava na sua frente, e o momento se eternizou em sua memória imediatamente. Ela sabia da importância dos momentos, e os reconhecia rapidamente.

¨¨¨

– Daqui duas semanas conheceremos o trabalho do fotógrafo Frederico Escobar, é isso mesmo produção? – Bento estava com João de seis anos no apartamento de Frederico.

Fazia apenas dois meses que ele havia voltado para São Paulo, pois estava organizando todo o grande evento que seria sua exposição no museu. Durante o tempo que passou fotografando, ele divulgou seu trabalho na internet, o que deu a ele uma boa visibilidade.

– Eu fui na gráfica ver como estão ficando os livros ontem, e sim, está perto. – Frederico comemorou, e se assustou em ver como João estava grande.

– Mas aqui para seu amigo não tem problema de adiantar um pouco do que vai acontecer na sua exposição?

– A editora planejou fazer uma noite de autógrafos no museu, e um bate-papo sobre o projeto.

– Tá, tá, beleza. Mas agora eu quero saber sobre os lugares! As gaúchas são gatas como parecem ser mesmo?

– Sério mesmo, Bento?

– Eu tenho bolas!

– São gatas sim, mas...

– Tem alguma foto delas aí? Tipo uma delas peladas numa cachoeira ou coisa do tipo?

– Claro que não!

– Que porcaria de fotógrafo, você! Nenhum nu artístico ou coisa parecida?

– De nu eu acho que só tenho das fotos que tirei quando passei três dias numa aldeia indígena.

– Eu lembro, você me mandou mensagens quando estava indo pra lá.

Frederico estava trabalhando de ver como estava todo processo da exposição. As fotos já estavam prontas para serem expostas, a decoração do salão já escolhida, os folhetos de divulgação espalhados, e o evento já contava com centenas de pessoas confirmadas para ter o livro assinado.

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– E tem alguma foto sua de dois meses antes aí no meio? Porque vamos ser honestos, você parecia um náufrago depois que parou de se barbear e cortar o cabelo durante a viagem.

– Quando cheguei em São Paulo e decidi usar o barbeador até estranhei em ver o tamanho da minha cara sem todo aquele pelo.

– Muito másculo o menino Frederico. – Bento zoou, e João pulou do sofá e foi até o tapete brincar com as peças de Lego. – E você viu quem estará aqui semana que vem?

– Se está falando de Clarice, sim eu vi. – Respondeu Frederico meio ríspido.

– E você vai atrás dela?

– Por que faria eu isso?

– Bem, por que ela está divulgando um baita filme que todos estão falando? Que chamam ela como a “esperança do cinema”? Que você amou ela tipo muito?

– Ela está muito bem no mundo da fama, não deve nem se lembrar de mim.

– Não se rebaixe tanto, Frederico. É claro que ela lembra dessa sua cara de palerma.

– Eu estou ocupado demais para dar atenção a isso. A exposição é o foco principal.

– Quem diria que a namorada de Frederico se transformaria em tudo isso, não é? O mundo me surpreende todo dia.

Frederico viajou por dezesseis meses, e nesse tempo ficou praticamente off-line do mundo. De vez em quando mandava mensagens para seu tio Lúcio e seu melhor amigo Bento. Tio Lúcio o atualizava sobre sua família e Bento da cidade. Foi uma boa forma de esquecer o que preocupava, e esfriar a mente e procurar seu equilíbrio interno. O único problema era que, mesmo que não quisesse, toda vez que tocava em sua câmera lembrava de Clarice. Mas não era um sentimento incomodo. Não mais depois que se tornou algo tão natural. Lembrar de Clarice não despertava nada dentro de si, era como se ela estivesse morta, de tão longe que estavam, e ainda estivesse em luto, com a saudade de algo que não estava ali.

Nos dezesseis meses conhecem muitos pontos do país, e muitas pessoas e suas filosofias. Conheceu música, dança, estilo de vida, sorrisos, comidas e sotaques. E a essência da vida sempre esteve no simples ato de viver, e levou tanto tempo para que ele notasse que quando a resposta veio, sentiu-se tolo. Sempre esteve ali.