A Pele do Espírito (versão antiga)

O Espírito do Templo


No dia seguinte, mais uma vez, a maré estava baixa. Saí de casa cedo, sem comer, pois meu estômago estava embrulhado. Voltei até a praia velha sozinha, atrás de sei lá o quê... Damon miou. Não, sorri, sozinha não.

Minha corda ainda estava lá, amarrada à árvore, onde Ed, Alice e eu a deixamos da última vez, depois de sairmos correndo, assustados do templo. Agora, aqui estava eu outra vez, procurando respostas para perguntas que eu nem conhecia. Enrolando a corda nas mãos, desci o rochedo. Hoje, o mar estava calmo, quieto demais...

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Eu logo estava diante do templo. Subi as escadas secas de mármore, vi-me diante das altas portas, das aldravas com seu sorriso, mas abrir as portas... Onde estava minha coragem toda de antes?

– Ei, garota, vai entrar ou não?

Dei um pulo de susto e soltei um grito agudo, olhando para todas as direções.

– Q-quem falou?

– Eu!

– E-eu? – perguntei, olhando para o meio das portas, aflita.

– É, eu – respondeu a aldrava de tigre – Anda, não temos o dia todo.

– É, não temos o dia todo! – continuou a outra aldrava, a da direita, que falava enrolado por causa da argola na boca – Se não bater, ele não vai abrir a porta.

– E se não vai entrar, pode ir embora. Nosso mestre é muito ocupado...

– Espera, quem?

– Nosso mestre – responderam ambas.

– Que... mestre? – perguntei. Como se eu precisasse saber, e não sair correndo imediatamente dali...

Elas me encararam, confusas, e depois se entreolharam acusadoramente.

– Fecha a boca, você fala demais! – acusou a da esquerda.

– Eu? Foi você quem deu com a língua nos dentes primeiro! – rebateu a da direita.

– Quietos! – esbravejou uma voz fina por trás da porta, que se abriu devagar, permitindo-se apenas uma pequena fresta por onde vi enormes olhos prateados – Por favor, entre. Não ligue pra eles...

Quando abri a porta, assustada, não havia mais ninguém lá.

– Olá? – chamei por alguém.

Eu me lembro de quando havia pessoas aqui, e oferendas, e preces, e incensos..., uma voz ancestral soou na minha cabeça, como se fosse meu próprio pensamento. Levei as mãos às têmporas como se pudesse impedir a voz de penetrar meu crânio. Eu gostava do cheiro dos incensos, confessou trivialmente.

De dentro das sombras a um canto, só se viam olhos prateados cintilando na escuridão, encarando-me. Olhos que carregavam uma profunda solidão, eu reconheci. A mesma que, ás vezes, também pesava nos meus.

– Oi... – a voz que veio das sombras era jovem, diferente da que soara da minha mente, apesar de terem o mesmo timbre, e parecia insegura. Parecia ainda mais assustada que eu, e me comovi por isso.

– Oi – respondi.

– Não ligue pra aqueles dois – repetiu, dando um passo para a luz, revelando-se – Eles normalmente falam mais que escutam. Não era pra terem assustado você...

Fiquei quieta, encarando fixamente o mesmo menino de cabelos brancos, carregando flores, que me encontrara na floresta e que, por algum motivo que eu desconhecia, sabia o meu nome.

– Ninguém aqui está acostumado a... receber visitas. As pessoas não se aproximam daqui por vontade própria há muitos, muitos anos. Acho que você entende...

– Sim.

Ele olhou ao redor, depois para mim.

– Vem, vamos sair desse salão frio – convidou – Vem comigo.

– Como você sabe o meu nome? – perguntei, seguindo-o.

Ele puxou a capa rota que escorregava de seus ombros magros, incomodado.

– Você não devia se lembrar disso...

– Como você sabe o meu nome? – insisti.

– Eu sei o nome de todo mundo.

– Todo mundo?

Ele empurrou uma porta nos fundos do grande salão e gesticulou para que eu entrasse.

– É – respondeu – De todos no mundo todo.

Era o mesmo cômodo em que eu fora parar depois de correr do salão de orações, na primeira vez que viera ao templo. A mesma cama simples, uma tigela vazia sobre a mesa no centro, a estátua abocanhando um rubi enorme – que voltara ao lugar, apesar de eu tê-lo derrubado -, o espelho no canto.

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– Sente-se – o menino pediu.

Depois, foi até a mesa, pegou a tigela e quando a estendeu para mim, fios de vapor saiam da sopa quente, que repentinamente encheu-a até as bordas.

– Está com fome?

– Ah, obrigada - minha barriga roncou.

Era canja e tigela logo aqueceu meus dedos frios, mas eu não comi. Ao invés disso, encarei o menino de esguelha.

– Você... vai sempre no bosque? – perguntei, finalmente, imaginando por onde começar a interrogá-lo.

– Não. Não costumo sair daqui, nem mesmo para colher flores.

– E o quê está fazendo nesse templo abandonado?

Ele puxou a única cadeira diante da mesa e se sentou na minha frente.

– Essa é a minha casa.

Encarei-o.

– Então é você – disse-lhe.

– Eu?

– Você é o espírito desse templo.

– Sim – ele disse. – Você não tomou café, é melhor não voltar pra casa de barriga vazia.

Estremeci e encarei a comida.

– Acho que deveria me assustar por você saber que eu saí de casa sem comer, mas já que sabe o meu nome sem nem mesmo termos sido apresentados, eu não deveria me surpreender...

Eu não contive um sorriso, pegando-o de surpresa. Mas logo seu rosto recobrou a sobriedade contida de antes, quando ele se mantivera distante, elusivo. Parecia ter receio de me ter por perto, tanto física quanto emocionalmente. Como, na época, não entendi, estendi-lhe a mão e disse:

– Você parece ser um cara legal. O quê acha de começarmos outra vez, do jeito tradicional? Eu sou Lorena, e quem é você?

Ele não apertou minha mão. Parecia não saber ao certo como deveria reagir, contudo disse sem hesitar e sem emoção, tal qual uma resposta ensaiada incontáveis vezes diante do espelho:

– Eu sou a morte.

– Mas esse é o seu nome? – sacudi os dedos para chamar sua atenção e fazer o sangue voltar a fluir pelo braço estendido. – Morte?

O espírito piscou incrédulo.

– Meu... nome?

Eu assenti.

– Nunca alguém... quis saber o meu nome.

– Mas você tem um, né?

– Sim.

– E... – comecei a ficar impaciente, com o braço dolorido, sem entender toda aquela surpresa.

– Byakko – disse devagar e atrapalhando-se um pouco, como se não estivesse acostumado a dizê-lo. Depois, repetiu-o com mais segurança. – meu nome é Byakko.

E depois finalmente estendeu a mão para mim, perguntando-se o quê faria em seguida. Então, eu a peguei. E, apesar de não entender o gesto, seu aperto era firme, e sua pele era fria como uma brisa.

– É um prazer conhecer você – sorri.

Ele quase sorriu de volta.

– Já... Já está na hora de você ir para casa – Byakko se levantou da cadeira e me levantei também. – Toma, não esqueça a sopa.

– Mas vai esfriar – retruquei.

– Não, não vai esfriar enquanto não comê-la. Vamos.

Atravessamos o salão de orações e ele abriu as portas para eu sair. Ao lado delas, ele parecia tão pequeno quanto eu, e não um espírito poderoso... Antes que ele as fechasse, falei:

– Espera! Você vai estar aqui amanhã?

Ele me encarou pela pequena fresta, tímido.

– Eu sempre estou aqui – respondeu.

– Então eu venho visitar – disse, desci as escadas e acenei. – Até logo!

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Vi-a se afastar através das portas entreabertas. Depois que Lorena deixou a praia para trás, parecia seguro sair. Ergui as mãos diante do rosto e observei-as minuciosamente. Não havia qualquer diferença. Entretanto por que, então, eu as sentia tão pesadas e ao mesmo tempo vazias?

Outra coisa também parecia estranha: meu peito... pus a mão sobre ele, parecia pleno agora, onde eu nunca soubera que havia um buraco. Estava cheio de uma sensação cálida e serena que pareceu transbordar até meus dedos sobre o peito, e acalmar um pouco minhas mãos vazias.

– Tem alguma coisa estranha... comigo.

– O quê foi, mestre? – Um e Dois, as aldravas, perguntaram em uníssono.

– Byakko – eu corrigi – Me chame pelo meu nome.

Eles se entreolharam, surpresos e reticentes, mas obedeceram.

– O quê foi, Byakko?

– É quente – expliquei o melhor que podia, já que não sabia ao certo do que se tratava. – Aqui – apontei para o meu peito. – O quê é?

Mais uma vez, os dois responderam juntos:

– É um coração.