Eu não queria, ainda, voltar para baixo das saias de Dorothea. Então, fui para casa... Encarei os destroços e chutei uma viga carbonizada. Mesmo depois de anos, eu ainda não considerava a casa de Dorothea minha também. Aquela era a minha casa, apesar de destruída; era como eu a via, afinal... E eu sempre voltava para lá. Costumava me sentar e observar, rabiscar em cadernos ou apenas refletir.

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Às vezes, vasculhava o lugar atrás de objetos, fotos... Acho que eu esperava encontrar o meu passado lá, sepultado sob as cinzas, esperando por mim. E, mesmo que eu não as tenha encontrado assim, foram em algumas dessas buscas que encontrei as poucas fotos daquela época que eu guardo hoje, com a minha vida.

Chutei um punhado de cinzas e percebi um vislumbre de cor: uma pequena planta brotara ali, estendendo suas folhinhas em busca de luz. Era a primeira vez em anos que eu via alguma coisa nascer naquele chão.

Precisava de água. Corri até o poço atrás da casa, puxei o balde para fora e enchi de água a palma da mão. Voltei e molhei a plantinha.

– Bem melhor assim, não é?

Sentei-me ali ao lado, apoiando as costas no resto de uma parede. A sopa ainda estava mesmo quente, e gostosa, descobri ao finalmente comê-la. Meu estômago vazio recebeu-a contente e dividiu seu calor pelo meu corpo. Depois, voltei ao poço e lavei a vasilha com um pouco de água para devolvê-la outro dia. Damon preferiu se manter longe da água.

Então, meu gato começou a rosnar ferozmente, como eu jamais vira. Virei-me e, sob as sombras das árvores, onde o descampado acabava e começava o bosque, um vulto me observava. Usava uma capa negra como seus cabelos, foi o que pude identificar à distância, e sua pele era clara. Damon continuava rosnando para o estranho.

Com certo desinteresse, ele finalmente notou o gato afrontando-o, e sua expressão era indistinguível de tão longe. Voltou-se outra vez para mim, deu um pequeno passo para trás, para mais dentro das sombras, rodopiou a capa e desapareceu num sopro de fumaça negra.

– Onde você foi? – Dorothea quis saber assim que eu voltei para a casa, no fim da manhã. – Quando eu acordei, cedo, você já havia sumido! Saiu sem comer... Que tigela é essa?

Fechei a porta atrás de mim cautelosamente.

– Eu fiquei com fome.

Ela me encarou com severidade, exigindo mais explicações. Sabia que a tigela não lhe pertencia, mas lhe daria uma pista de onde eu estivera, e me recriminei em silêncio pelo descuido de tê-la trazido comigo.

– Vou devolver para Alice quando puder. Fui visitar minha casa e... me distraí.

No mesmo instante, a expressão dela mudou, e eu soube que escaparia sem mais perguntas. Para Dorothea, conversar comigo sobre a morte dos meus pais era um assunto delicado, quase sempre ela se esquivava ou engasgava com as palavras, como aquela vez em que Ed perguntou para a mãe de onde vinham os bebês.

– Você está com fome? – mudou logo de assunto.

– Não, obrigada. Só preciso de um tempo.

Dorothea se afastou e eu fui para o meu quarto. Levantei a tábua solta do assoalho, sob a cama, peguei um caderno de capa surrada e a papoula misteriosa. Abri num par de páginas em branco e depois fechei a flor entre elas, com força; assim, ela ficaria conservada lá dentro. Repousei o caderno nas minhas pernas cruzadas e apanhei a cumbuca nas mãos, observando-a.

Espíritos não precisavam comer, logo não precisavam de louça; então, por que Byakko guardaria algo assim? A tigela não devia lhe pertencer; ou não devia ter lhe pertencido, originalmente. Passei a ponta dos dedos pelos arabescos monocromáticos que adornavam a borda, até me deparar com o toque mais áspero de um pedacinho de louça lascada. Imaginei uma criança, num momento de distração da mãe, puxar uma cadeira para subir e alcançar o topo da mesa, e pegar alguma guloseima. A mãe vê, grita, assusta o menino que esbarra na tigela, derrama seu conteúdo e cai no chão, chorando. Talvez tenha sido um casal de namorados distraídos que lascaram a tigela, muito tempo atrás. Talvez as mãos trêmulas de um velho... Imaginei a Morte reivindicando o objeto, como fazia com todas as vidas e histórias do mundo.

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Sacudindo a cabeça e os devaneios para longe, deixei a vasilha sobre a cama e mais uma vez abri o caderno, no ponto agora marcado pela flor. No alto da página eu escrevi: Byakko.