Abrupto
Capítulo 7 - Ricardo - P. I
Marcavam dez horas da noite na antepenúltima vez que Alicia conferiu o relógio. Marcavam três horas da madrugada na penúltima vez que Alicia conferiu o relógio. Marcavam duas horas da tarde na última vez que Alicia conferiu o relógio.
Apesar de ter passado a noite remexendo no seu celular, nos seus livros e pensando na vida — o que exigia mais habilidade de concentração que o resto —, ela tentou parecer o mais disposta possível às sete horas da manhã. Não conhecia muito bem de maquiagem, mas passou o que considerou básico, e um corretivo de olheiras. Domou o cabelo loiro, deixando-o à seu ombro esquerdo, e alisou o uniforme escolar. Parecia tudo certo, por fora.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Por dentro, ela se sentia um lixo. As aulas arrastaram-se, os professores cada vez mais patéticos. A hora do lanche não terminava nunca, o som irritante de mastigação e de conversas desnecessárias atrapalhando-a. É claro, ela poderia ter suportado isso como suportou todos os nove anos que estudava no ensino fundamental, mas nesse caso era diferente. Poderíamos somar a tudo isso olhares, frases de “incentivo” e alguns cochichos.
Não, não era bullying. Era o oposto. Era pena, e não a de escrever, mas a pena de sussurrar “coitadinha” no ouvido da amiga apontando a garota. Alicia já não saltitava mais, e comia em silêncio ao lado de Júlia. Até que uma pessoa da mesa a cutucou.
— Ei... manda meu oi Ricardo? Diz que estamos torcendo por ele — pediu, meio envergonhado, um garoto, sem nenhuma segunda intenção. Todavia, isso a estressou. Ela levantou da mesa com raiva, olhando para ele.
— Por que não manda você mesmo? Só o que vocês sabem é pedir isso! Alicia, fala pro Ricardo isso, Júlia, diz pro Ricardo aquilo, que saco! Ir lá ver ele ninguém quer, não é mesmo? Estão ocupados demais nas vidas de merda aí pra levantar dois segundos e ver um colega! Pois ele era meu melhor amigo, e quando conseguir falar conversarei com ele sobre o que quisermos, e não sendo um pombo-correio! — Alicia disse, em um tom muito alto, quase um grito. Todos da mesa pararam para vê-la e ouvi-la, trocando olhares. O silêncio dominou o refeitório.
— Pobrezinha, está estressada por causa do acidente — sussurrou Caroline para Natália, que devolveu a ela um olhar de raiva. Negou com a cabeça, balançando os cachos cor de rosa. Ela lembrava do chilique das garotas ao poderem ir para a praia com agora debilitado Ricardo. Mandou Carol ficar quieta e voltou o olhar para Alicia, que saía correndo.
Alicia jogou suas embalagens de lanche no lixo e abriu a porta do refeitório com brutalidade. Percorreu corredores, desejando estar perdida como aquele dia, mas na realidade sabia muito bem onde estava. Suas passadas rápidas a fizeram tropeçar, o que ajudou Júlia, que vinha logo atrás silenciosamente.
Ela praguejou e virou de barriga para cima, massageando as têmporas. Olhou para seu lado. Havia uma porta de uma sala. Levantou-se e espiou. Todas as cadeiras tinham mochilas, exceto uma, no meio da sala, vazia. Ainda meio tonta estranhou aquilo e foi para trás ler o nome da sala.
Era exatamente a mesma sala que havia esbarrado com Ricardo não fazia muito tempo. Mesmo assim, pareciam décadas desde o ocorrido; o Rick debilitado e o Rick saudável pareciam completamente opostos, principalmente quando o debilitado mal consegue falar.
As lágrimas encheram seus olhos, mas ela não as deixou escapar, batendo os pés enquanto chegava até a sala e pegava sua mochila, jogando todo seu material ali dentro. O lugar estava todo vazio, exceto por ela.
Quando virou-se, a mochila já pendurada no ombro, ficou sem saber o que falar durante alguns minutos, contemplando Júlia à sua frente, parada na porta. Ela estava séria como nunca estivera antes, o queixo erguido e os braços cruzadas, meio de lado apoiada na parede. Negou com a cabeça enquanto Alicia se dirigia à porta, impedindo sua passagem.
— Você não pode sair daqui assim, Alicia. É irresponsável.
— E quem é você para me falar de responsabilidade? — ela falou, entredentes, encarando a amiga, os olhos semicerrados de raiva.
— Sou sua melhor amiga e sua irmã durante todos os anos que passaram, e não vou deixar você estragar seu currículo escolar por um mero ataque de raiva. Eu sou leal. — A postura de Júlia ficou ereta, agora decidida e segura.
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— Você? Logo você, pra me falar de amizade e lealdade? Bem, não sou eu que vivo de segredo por aí, que solto algumas coisas e depois finjo que não falei nada, que não conta nada sobre o passado por algum medo. Medo do quê? De rejeição? Isso não é confiança, é traição! — Alicia gritou, mais falando para si mesma do que para a garota, agora espantada, na sua frente. A empurrou para o lado de maneira agressiva e passou pela porta, sem se importar em olhar para trás, fixando o olhar à sua frente até que Júlia ficasse à metros de distância dela.
Júlia não falara com ela fazia semanas, e agora vinha falar de lealdade? Quem era ela para dizer alguma coisa desse tipo? Alicia se mandaria dali mesmo. Confiante, atravessou a entrada do hospital, dirigindo um sorriso falso para a recepcionista, que se assustou — provavelmente porque seu rosto não estava mais tão acostumado a sorrir, e talvez ela tivesse se esquecido como se fazia isso.
Correu até achar o quarto de Ricardo, abrindo a porta de leve e deixando a leve brisa do corredor ficar um pouco na sala. Ele estava acordado, olhando para o teto, concentrado em alguma espécie de tarefa de separar tipos de cores de branco. Ao menos, parecia ser algo assim. Sua presença era séria, compenetrada.
Ao vê-la, fitou-a divertido, mas com uma certa tristeza no olhar. Logo estranhou quando percebeu que horas eram. Toda a coragem que Alicia tivera se esvaziara, sobrando apenas sua figura imaculada ali, olhando-o como se fosse algo digno de se observar.
— A cômoda... primeira gaveta... — ele falou, a voz toda cortada de quem tivera um tubo em sua garganta. Estava progredindo, era o que os médicos diziam. Mas não há previsão de alta.
Alicia abriu a primeira gaveta e achou dois envelopes brancos, um com seu nome e outro com o de Júlia. Presumiu que tivesse tido muito mais ali, e olhou-o com as sobrancelhas unidas.
— O que é isso? Cartas... para mim e para a Júlia?
Ricardo confirmou com um aceno de cabeça. Parecia calmo, mais calmo que o garoto sempre divertido jamais parecera. Tranquilo com qualquer que fosse seu destino, mas ainda com a tristeza escondida, louca para soltar-se.
— Que legal que você descobriu como se comunicar até sua garganta sarar — Alicia disse, agora mais relaxada, mas ainda insegura devido ao ambiente hospitalar que se encontrava. Estava tensa, e Ricardo percebeu isso nela, logo sussurrando para não forçar a voz.
— Pode ler na sala de espera, se te faz se sentir melhor.
Alicia confirmou e deu um beijo estatelado na sua testa, ao que ele respondeu com uma careta, e foi até a sala ler a carta enquanto alguns enfermeiros e enfermeiras entravam no quarto dele.
“Cara Alicia,
Provavelmente, quando terminar de ler isso, estarei morrendo.”
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