Paper Women

A Montanha


A forma das árvores e da luz escapando entre as folhas delas traz uma sensação de estar sendo filmada. Ou, melhor dizendo, a sensação de estar em um filme. É relaxante, como se desapertasse um nó que eu não sabia que existia dos meus pulmões, permitindo-me respirar a vida ao meu redor. É úmido, verde e limpo. Há um rio, uma ponte, e muitas árvores.

É o paraíso.

Lembro-me da explicação sobre Sylvia Plath e a pausa na linha do tempo. Fecho os olhos, pensando que eu nunca mais quero sair desse exato lugar. Para mim, é onde o meu tempo para. Onde há aquele momento de clareza, e eu estou flutuando, flutuando, flutuando, virando uma flor na água guiada por um único raio de sol que vem ao meu encontro através do espaço das folhas acima de mim. Não há montanha russa, não há perigo. É como se eu chegasse no núcleo da vida.

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Estou novamente em um filme. A trilha sonora são os pássaros piando, voando de uma árvore para outra, e minha mente tenta capturar cada imagem que consegue, porque sabe que meu coração não reage com essa tranquilidade a praticamente nada. Não sinto nada. Nem tristeza, nem felicidade, mas é o melhor estado em que já estive.

—Como você está se sentindo? —o guru me pergunta; fecho os olhos, concentrando-me no barulho da água, o fio que me conecta a tranquilidade que estou sentindo.

—Como se não houvesse morte aqui.

É verdade. É como se não houvessem manchas pretas em nada.

—Não é verdade. Coisas morrem todos os dias aqui.

—Alguém já morreu aqui? —seguro com mais força na ponte. Estou com medo da resposta e da minha reação, mas engulo seco e me obrigo a escutar. Ele fica quieto por um tempo, considerando contar ou não.

—Já. —minhas pernas estremecem um pouco.

—Como?

—Suicídio, sempre. Não conseguimos salvar todo mundo.

Não sei se ele está falando de salvar emocionalmente ou salvar fisicamente, mas suas palavras entram em mim, no meu coração.

Não conseguimos salvar todo mundo.

A frase mais famosa de Anais Nin me vem a cabeça, sobre não poder salvar ninguém, apenas amar. Não faz sentido. O amor é suficiente? Eu amava Vivian. Ela era como uma mãe para mim.

Diana, Diana, Diana... Anais não está dizendo que o amor pode salvar, Vivian explica na minha mente.

Mas eu já vi isso acontecer. Com Claire e Gwen. Talvez não com meus pais, mas Gwen sim. Ela foi salva por sua filha, eu não tenho dúvidas disso. Esse tipo de amor pode sim salvar vidas, porque tudo que queremos no mundo é sermos amados da melhor forma que alguém pode amar. Se você é amado, acho que pouco importa outras distrações. Eu amava Vivian, então por que ela fez isso?

Não conseguimos salvar todo mundo.

—Você não fica meio... deprimido quando isso acontece?

—A mente humana é fascinante. Ela se protege de tudo que pode causar perigo, inclusive a tristeza. E pra se proteger da tristeza, ela manda a pessoa terminá-la.

—...se matar. —completo, me sentindo meio vencida.

—Exatamente. Às vezes a pessoa não quer se matar. Na maioria das vezes, ela não quer. Isso é evidente em quase todos os bilhetes de suicídio por aí. As pessoas só querem acabar com a dor, e isso afeta um pouco o julgamento delas. Aprendi com os anos que a vida dessas pessoas não são responsabilidade minha. Fico triste, sim, porque sei que é possível encontrar a luz novamente. Mas às vezes a tristeza é melhor que a realidade que essas pessoas tem que enfrentar. E a única saída para a tristeza é a morte. Eu faço tudo que eu posso para ajudá-los, mas a vida dessas pessoas, de todo mundo, é regida por escolhas pessoais, não pela vontade dos outros.

Eu não sei o que responder. Minha mente está cheia de ideias correndo para lá e para cá tão rápido que não consigo capturar nenhuma, então não falo nenhuma das coisas que estão me afligindo nesse momento. Eu pergunto o básico, o que eu sei lidar, o que é seguro.

—Como foi a Vivian aqui?

—A mesma coisa de sempre. Saiu daqui bem melhor do que entrou.

—Mas ela se matou.

—Gosto de pensar que ela teria se matado muito antes se não fosse por esse lugar. —olho em volta. Ele está certo.

—É incrível.

—A natureza é o remédio.

—É a forma pura de vida. —comento, maravilhada com os peixinhos no rio, mesmo que violento. É como um quadro que eu poderia ficar observando por dias, porque a cada segundo, algo se move, algo muda, transforma-se em uma nova atração. É tipo um circo só que menos assustador.

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Ficamos mais algum tempo ali, então ele me leva até a praia. Ficamos nas pedras, encarando as ondas. Sinto-me leve.

—Sabe por que as pessoas procuram esse lugar? —faço que não, apesar de ter uma ideia. —Porque esse lugar te obriga a pensar no presente. Na realidade. Aqui elas tem que escolher entre a realidade ou a tristeza, e enfrentar a escolha delas. No mundo lá fora, todo mundo vive preocupado com o futuro. O que vai acontecer semana que vem, mês que vem, ano que vem. Se você está aqui, está com a mente e o corpo aqui. Te força a perceber algumas coisas sobre você e os outros que você não ia perceber lá fora, porque lá o tempo passa depressa, nunca para, nunca dá para sentar e respirar fundo.

Lembro de Sylvia Plath.

—É como se você parasse no tempo? —o guru sorri.

—Pode-se dizer que sim. E aqui não tem tecnologia.

—Uau. —exclamo, mais para mim mesma do que para ele. Quando voltamos, está começando a escurecer. Ian está conversando com Bridgette Kowki, e me lança um olhar de vamos?

Eu devolvo o olhar com um sim.

Bridgette interrompe nosso contato visual e começa a falar.

—Vocês vão ficar aqui a noite?

Balanço a cabeça, veementemente.

—Íamos voltar.

—Mas vocês tem que ficar. —A garotinha, Rose, aparece por trás de Ian. Seu tom de voz e sua expressão imploram para que eu ouça o que está dizendo.

—Nós... —Ian começa, mas é interrompido por Chris.

—Nós temos uns amigos, na montanha. Nos convidaram para visitar, vocês deveriam vir.

Ian me encara.

—Mas não temos onde dormir. —tento argumentar, mas sei que é sem fundamento. Cabem várias pessoas nessa casa.

—Nós temos quartos, não se preocupe. Posso garantir que vai ser incrível. —diz Bridgette. Por um segundo, fico confusa com a animação deles.

—Por quê?

—Verão, se vierem conosco. —ela sorri, parecendo mais uma avó que dona de um lugar como esses.

Quão ruim seria?

Meus olhos se voltam para os de Ian, procurando permissão. Seu olhar espelha o meu, e eu encolho os ombros, indicando que não tem problema ficarmos.

Ele imita meu gesto, e eu me viro para Bridgette.

—Tudo bem, então, só vou precisar fazer uma ligação. —olho para meu celular. —E eu não consigo sinal.

—Tudo bem, pode usar o da cozinha. Kristin! Traga um dos seus casacos para Diana! Chris, você empresta para esse jovem aqui. —Ela sorri para Ian. O gesto me faz sorrir também, então vou em busca do telefone.

Becker atende no segundo toque.

—Quem é? —ouço sua voz desconfiada.

—Diana.

—Oh, oi! De onde você está me ligando?

—St. Mara.

—Ai meu Deus! Como está indo?

—Acho que vou passar a noite aqui, eu conto tudo pra você amanhã, prometo, mas pode...

—...falar com seus pais, eu sei. Sem problemas. Você dormiu enquanto estávamos assistindo um filme.

—Obrigada, Becker.

—De nada. Se divirta e me conte tudo depois.

—Prometo.

Quando eu volto para a sala, Ian está vestindo um casaco pesado, e todos os outros estão com casacos assim. O inverno mal passou, mas não vejo necessidade de usar casacos tão grossos.

—Na montanha é mais frio. —Bridgette me explica, enquanto Kristin, a garota ruiva que me lembra Becker, me estende um casaco cor creme. Ele é um pouco grande para meu corpo, mas é quentinho, confortável. Olho em volta, a procura de algo para fazer. Chris aparece com as chaves de um carro. Pego as minhas chaves também, mas ele balança a cabeça.

—O caminho é complicado, você não pode dirigir por aqui de primeira. Vem, vocês dois vem comigo e Rose e Kristin vão com a senhora Kowki.

Estou surpresa. A ideia da senhora Kowki dirigindo nunca me passou pela cabeça, mas quando vamos para fora de casa, ela entra em um fusca e eu sinto vontade de rir, porque o carro é a cara dela. Me limito a sorrir, porque cenas como essa são genuínas demais e deixam o coração um pouco melhor com a simplicidade de tudo.

Eu e Ian entramos no carro com Chris, em seguida entramos em uma estrada de chão. O carro balança enquanto Ian, no banco da frente, tenta manter uma conversa com o guru.

—Tudo isso é propriedade de vocês?

—Sim, a senhora Kowki herdou. Mas como haviam casas aqui quando ela recebeu as terras, como essa família que estamos indo visitar, ela resolveu deixar todo mundo no seu lugar. Não vendeu nenhuma terra nova, mas deixou as pessoas ficarem.

Eles continuam conversando. Chris nos conta sobre a ficha de Vivian, mas Ian muda de assunto rapidamente, fazendo meu coração apertar. Eles começam a falar sobre filmes, e coisas banais, e depois de um tempo eu paro de prestar atenção. Ao invés disso, tento reconhecer as formas das árvores no limite da estrada, porém está escuro demais para isso.

A viagem dura uma hora. Quando chegamos, o ar parece rarefeito e meus ouvidos ficam com aquele barulhinho estranho, por causa da pressão. Me sinto meio nas nuvens. A família que eles vieram visitar é formada por um casal e dois filhos. A mãe é gordinha, enquanto o pai é magro demais. A filha mais velha —provavelmente uns dez anos —está usando um vestido, e o filho menor usa roupas de verão também. Provavelmente acostumados com o frio que —Bridgette tinha razão —aumentou conforme subimos.

Quando saímos do carro, percebo que está nevando, deixando escapar um riso incrédulo, que faz Ian olhar para mim com uma sobrancelha erguida.

—Está nevando. Em março. —no fim, ele também cai na risada, olhando para cima. O casal se aproxima e apresenta-se.

—Essa é a Greta. Eu sou Carl. Muito prazer. —balançam nossas mãos sem parar. Descubro que a filha mais velha se chama Viola e o menino Carl Jr. —Meu garotão. —comenta Carl Pai, segurando o menino no colo.

—Venham, venham. —Greta pede, e a seguimos para o lado de trás da casa, onde há uma fogueira. Alguns metros para frente, um grande precipício coberto por árvores, onde se tem uma vista de tudo embaixo de nós. Não é tão alto, mas é o suficiente para me fazer estremecer de perplexidade. Aperto o casaco mais perto do corpo. Rose se aproxima do precipício.

—Cuidado. —Exclamo, alarmada. Ela se vira, surpresa, mas sorri.

—Não se preocupe. Tem uma cerca aqui. —consigo ver as formas escurecidas da cerca, e deixo-me relaxar. Bridgette e Greta conversam enquanto ambas trazem xícaras de chocolate quente em nossa direção. Entregam uma para cada um, sorrindo como mães fazem.

—Sentem-se. —pede Bridgette.

—Aqui. —avisa Kristin, apontando para um tronco de árvore estendido perto da fogueira. Kristin, Rose, eu e Ian sentamos enquanto o casal conversa com Bridgette e Chris brinca com o garotinho. Não consigo achar a garota.

—Isso é legal, não é? —Rose comenta.

—É surreal. —respondo para ele, e digo para Ian: —Eu sinto como se isso fosse um sonho estranho ou algo assim.

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—Talvez seja por isso que ela nos trouxe aqui. —diz ele, quietamente. Sei se suas palavras tem mais peso, mas não ouso medi-las agora. Tomo meu chocolate, esperando algo acontecer, sentindo-me bem. Pela primeira vez em muito tempo, muito bem. Tão bem que, se nada acontecer, continuarei assim.

Lembro do número de telefone escrito no livro. Mesmo se isso não der em nada, acho que eu já vou estar feliz por ter descoberto esse lugar. Mesmo que mais e mais dúvidas tenham surgido na minha cabeça, é como se algo estivesse certo. Completo. Não vou pensar no futuro esta noite. Vou ficar no presente.

Viola sai da casa com um... violino. Observo seus movimentos, confusa. Sua mãe senta-se no lado de Ian e começa a falar.

—Quando minha mãe veio morar com a gente, ela odiava o som do violino da Vi, então Vi tinha que praticar tarde da noite, aqui fora. Nunca reclamou, mas eu sempre ficava preocupada. Até que um dia, a gente começou a ouvir uns uivos.

—Tipo... lobos? —indaga Ian.

—É. Eles ficam lá embaixo.

—Não sobem? —subitamente, Carl grita: "tapem os ouvidos!" e espera um segundo, enquanto largamos nossas xícaras, para fazer o que ele pediu. Curiosa, vejo ele sacar uma espingarda e atirar para longe, fazendo todo mundo arfar um pouco. O tiro ecoa nos meus ouvidos.

—Isso espanta eles. Os mantém longe. E eles nunca subiram. Nem sabíamos que eles existiam, até ela começar a tocar esse violino aqui. É uma graça.

—Eles só uivam quando ela toca? —me inclino para frente para ver Greta melhor. Ian inclina para trás, ajudando.

—Não é que é isso mesmo? —ela sorri. —Vi, estamos todos escutando. —Viola assente.

Todos os outros sentam no tronco, se espremendo um pouco para sobrar espaço, e ao mesmo tempo para nos aquecermos. A única coisa que nos separa de Viola e seu violino é a fogueira queimando lentamente no centro. Posso ver os flocos de neve caindo ao longe. A tensão da espera começa, a ansiedade.

Não demora até Viola começar a tocar. Ela só fecha os olhos e passa a haste pelo violino, resultando em um som triste e feliz ao mesmo tempo. Não sei explicar, mas forma um nó na minha garganta. Por algum motivo, estou com vontade de chorar, mas duvido que seja por algo ruim.

Parece mágica. Parece o paraíso. Parece contentamento.

E é a realidade.

Ela muda de nota, passando para uma mais aguda, depois voltando e se demorando em outra. Não sei dizer se está tocando uma música ou só de cabeça, mas é lindo e faz com que eu me sinta tão bem. Tão bem. Fecho os olhos, apreciando a música e o chocolate quente, junto com o frio e o barulho dos galhos queimando na fogueira.

Acho que se eu quisesse, poderia sair voando agora. Uma borboleta. Me sinto... bonita.

Fica melhor quando escutamos um uivo. O primeiro, começando do nada. Todo mundo arfa de surpresa, e o violino não para. Ele continua, fazendo o mundo explodir. Os uivos se tornam mais frequentes, de alguma forma combinando com a música. A melodia me envolve, destrói cada agulha que afligi dor no meu ser, e eu me sinto uma flor, uma balão navegando pelo céu escuro. O mundo continua bonito mesmo no escuro.

Olho para Ian.

—Então, —sussurro. —valeu a pena?

Ele não responde. Só sorri. Mas acho que depois de tanto tempo prestando mais atenção as coisas que as pessoas fazem, não ao que elas falam, eu consigo entender o sorriso dele. Ian não precisa responder com palavras, porque o sorriso que ele me dá traduz melhor. Palavras são desnecessárias quando você não sabe usá-las. O sorriso é bem vindo. Gosto mais dele porque é uma ação, e está acontecendo nesse exato momento —não uma palavra, que ecoa na nossa mente —aqui, agora. É um sorriso vencido, como se cedesse a mágica do que está acontecendo e dissesse sim, valeu a pena.

Sim. Valeu a pena.