9 Crimes

O Crime de Paulline


Paisley, 24 de julho de 2014.

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Caro Sr. Fellipe Garroway,

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Venho por meio desta para, infelizmente, informá-lo da morte de seu pai. Nas últimas semanas, Joseph vinha demonstrando uma piora em seu já débil estado de saúde. Nós tentamos entrar em contato com o senhor diversas vezes, mas sem resultados. Sabe, o câncer é uma coisa horrível.

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E eu sou uma enfermeira. Estou acostumada a ver coisas horríveis. Estou acostumada a lidar com pessoas desfiguradas, desmembradas e sangrando até a morte. Estou acostumada a filhos que ignoram os pais. Essa é minha especialização, o que escolhi há 25 anos para ser meu futuro. Soa como uma terrível escolha, não? Uma jovem, com uma vida toda pela frente e com muitos pretendentes aos seus pés... optar por ver o fim, o terror, a mágoa e as lágrimas. Lágrimas com as quais ela não teria obrigação nenhuma de se importar, mas o faz porque sabe que outras pessoas não carregariam esse fardo - nem mesmo se fossem obrigadas.

Cuidei de seu pai pelos últimos três anos. Um senhor adorável, devo dizer. Contava-me histórias de sua juventude, de seus romances e de sonhos que nunca chegou a realizar. Ele sempre quis ver o mar, sabia?

Ele também me falou muito sobre você e seus irmãos. Inclusive sobre Talissa e sua partida prematura e injusta quando ainda tinha 14 anos. Falou-me sobre os netos que gostam de ver a chuva. Falou-me sobre o filho que o colocou aqui, e que prometeu ao pai vir buscá-lo algum dia. Algum dia em que o pai melhorasse. Joseph guardou essa sua promessa, Sr. Garroway. E, graças a ela, morreu acreditando que nunca havia melhorado.

Eu imagino o que está se passando em sua cabeça nesse exato momento: "Como uma mísera enfermeira pode se intrometer em minha vida dessa maneira?"... Você tem esse direito. Tem o direito de vir até esse asilo, abrir a porta com violência e exigir por satisfações. Acredite, terei prazer em atendê-lo. Dir-lhe-ei o que quer ouvir. Ouvirei também, com paciência, as palavras maldosas que me proferirá. Não me importarei. Pelo menos o senhor estará aqui. Pela primeira vez em dez anos. Talvez a última. Mas, quem sabe, a tempo suficiente de presenciar o enterro de seu pai.

Sinto muito que essa seja a única maneira de atrair sua atenção.

Entendo como a vida é corrida. Como o senhor tem todas as suas preocupações e, inclusive, suas mágoas pessoais com seu pai. Entendo - ou, posso jurar, esforço-me ao máximo para entender - como seria inviável visitá-lo regularmente. Mandar cartões de Natal. Trazer os netos dele aqui, para juntos assistirem a chuva. Levá-lo ao mar.

Acredite, o que estou tentando fazer aqui é mais do que uma mera chantagem emocional, listando alguns motivos que o fariam derramar uma lágrima rebelde ou tornar seu coração pesado por alguns minutos. Estou escrevendo essa carta, indo muito mais além de meu simples objetivo de informar a morte de seu pai e arriscando meu trabalho, apenas porque fiz poucas coisas dignas de se recordar em minha vida. Quando você acompanha o fim de tantas histórias, de tantas famílias pelo mesmo tempo que eu, você perde a fé. A fé naquele período de tempo tão fugaz e injusto, que deixa marcas indeléveis na sua mente. Eu não via mais motivos para fazer as coisas além de minhas obrigações. Não via razões em sacrifícios, em lágrimas, em gritos, em silêncios pensativos. Tudo acaba, de um jeito ou de outro, dentro de um caixão enterrado sob a terra.

Sabe, o câncer é uma coisa horrível.

E ele é como um monstro que, quanto mais perto de você, mais assustador se torna... com aqueles dentes afiados e sedentos por sangue, por força, por vitalidade.

O câncer é horrível de longe. E pior ainda de perto.

Pior ainda quando você é diagnosticado com câncer.

Estou com o mesmo tipo de câncer de seu pai: cólon. Ele já se espalhou por meu corpo. O médico do asilo me atende. Disse que já tenho um limite de tempo para viver, mas eu não sei qual é. Disse a ele que não queria saber. O que adianta? É um privilégio horrendo saber qual a data da sua morte, ao contrário de outros seres humanos que andam por aí, completamente alheios a essa ignorância.

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Descobri meu câncer há dois anos. Seu pai e eu já éramos próximos, tão próximos quanto um paciente com demência e uma enfermeira podem ser. Ao saber de minha condição, passei a olhar para seu pai sob uma nova perspectiva. Via diante de mim mais que um velho morrendo. Via alguém que, de uma forma macabra, me entendia. E aquilo me fascinava. Enquanto eu me corroía com a ideia de estar morrendo, seu pai parecia não ligar para isso. Acreditava tão fielmente em seu filho herói que a doença não o assustava.

Eu o invejava. Invejava essa promessa. Essa fé que eu havia perdido há tanto tempo. E eu queria saber mais. Queria me aproximar de seus pensamentos, encontrar algo dentro dele que me motivasse a viver. Nós tínhamos o mesmo destino, não poderíamos ter a mesma esperança?

Meu interesse em Joseph me levou até você. Descobri que aquele senhor se alimentava de ilusões. Meu melhor amigo era um inocente, um sonhador. E eu sabia a verdade. E agora? Qual de nós era o sortudo? O iludido ou a que enfrentava a realidade?

Dei a mim mesma uma promessa na qual me agarrar: trazer o filho de Joseph até ele. Minha vida entrou em função disso desde então. Não tenho marido, filhos ou qualquer família próxima: em mãos, apenas uma vida se desfazendo. Dei a essa vida um objetivo, e talvez esse seja o motivo que o senhor esteve buscando para explicar o aumento significativo de cartas, e-mails e telefonemas vindos aqui do asilo. A cada derrota, a cada ignorada, a cada telefonema soando até cair, eu o conhecia mais, sr. Garroway. E o senhor me assustava.

Ao vir para atender seu pai esta manhã, encontrei-o caído à janela. Ele ficava lá todas as noites, olhando ao horizonte como uma princesa faz enquanto espera por seu salvador determinado.

Ele morreu esperando o senhor.

E, pela primeira vez em 25 anos, chorei por um paciente que se foi.

Sr. Garroway, somos iguais. Amargos pela vida, por coisas que ouvimos e pelas pessoas que atiraram pedras contra nossos corações. Somos do grupo de pessoas que se afasta, que prefere a solidão, que se identifica com o frio. E agora percebo isso, agora que seu pai se foi e levou com ele o objetivo que eu havia dado à minha vida sem sentido.

Estou derrotada.

Envio essa carta com essas palavras para dizer que fui derrotada. Sou o soldado ferido caído no campo de batalha, sangrando, vendo o dia passar através de olhos quase totalmente fechados. Não sei o que fará quando acabar de ler essas palavras. Talvez as esquecerá, enterrando esse papel no fundo de alguma de suas gavetas-limbo. Talvez se sentirá culpado, e virá visitar nossos túmulos. Só quero que saiba que, não importa qual seja sua escolha, já não causa efeito algum sobre nós.

Apenas sobre você.

Seu pai pode não ter sido a melhor das pessoas, mas a consciência de tê-lo ferido quando criança o mudou. Ele permitiu que você o derrotasse, porque percebeu que merecia o castigo. Aceitou a solidão que o senhor lhe impôs acreditando ser esse seu fim. Talvez seu pai tenha se adoentado para tentar salvar nossas vidas. Mostrar-nos o quão errados estamos, mesmo enquanto tentávamos enfiar na cabeça dele o contrário. Joseph aceitou sua doença, pensando em seus filhos, usando-se como o exemplo de uma vida amarga. Sacrificando-se para nos ensinar uma lição. Não é isso o que o amor faz? Sacrifica-se pelo outro? Você o derrotou, Sr. Garroway. Derrotou sua força de viver. Mas ele ainda tenta salvá-lo. E pensar que ele morreu achando que não havia melhorado, porque seu filho não veio buscá-lo!

Ele parecia bem melhor para mim, sr. Garroway. Apesar de não ter conhecido o mar. Apesar de não ter conhecido o próprio filho.

Termine o que ele começou.

Salve sua vida, Sr. Garroway. Eu estou tentando salvar a minha.

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Paulline.

Asilo Municipal de Paisley, Escócia