Os dias seguintes a tão perniciosos acontecimentos transcorrem debaixo de uma aura ambígua mas de certa forma proveitosa para o casal, ainda que, inicialmente, as tormentas dos divórcios dos progenitores fustiguem de chuva e alguma trovoada as belas e habitualmente serenas paisagens da capital fluminense.

É a custo e com obstinada insistência que, ainda no decorrer desta semana medonha, Edgar convence Bonifácio a cessar os entraves à resolução de Margarida. O confronto entre a boa senhora e o implacável industrial levara ambos à exaustão e mesmo sendo crescente na mulher a decisão sobre o divórcio, o ponto chegou em que apenas a intervenção do filho mais velho leva a ventura a bom porto.

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Bonifácio: Parem de me amolar o juízo que eu já tenho problemas em demasia com que me apoquentar na fábrica. Como hei de conduzir os negócios se todos os dias Margarida me vem com esse assunto e agora até você, Edgar! – reclama exasperado durante mais uma discussão nas áreas comuns da residência da família. – Divórcio! Onde já se viu, uma mulher da sua estirpe, Margarida, dar-se ao desfrute de um divórcio – berra autoritário. – Jamais, jamais e você –, prossegue fuzilando o jovem rapaz – em vez de alimentar essas ideias descabidas de sua mãe, deveria incutir-lhe algum discernimento sobre as necessidades de um homem.

Edgar: O senhor enche-me de vergonha, meu pai – responde aborrecido e afundado em desgosto. – E, note, que mesmo desolado como estou, de alguma forma que desconheço, ainda me sinto na obrigação de reconhecer em si essa figura paternal que deveria ser motivo de orgulho e a qual o senhor reduziu a cinzas ao perpetrar atos dignos de bárbaros. Não tente erguer mais muros ao redor de algo que não existe mais, que provavelmente sequer alguma vez existiu – completa de mãos em riste argumentando a defesa. – Mamãe merece ser feliz, ou no mínimo tentar, e o senhor, pelo muito que a fez sofrer, deve-lhe ao menos isto.

Após mais um par de acareações verbais que a esta se seguiram, vendo-se desfavorecido pelas alegações finais do advogado e enterrado num prelúdio de solidão e ruína, Bonifácio acaba por concordar em ceder a Margarida o termo do desgastado elo matrimonial. Embora a contragosto, e aliado a tudo isto, sua permanência na luxuosa mansão herdada pela nobre senhora não se estende sequer ao romper de uma nova semana. É precisamente na altura em que se dá este rombo no quotidiano que as feridas abertas pelos anos de comodismo mais doem em Margarida.

Simultaneamente, porém em modos claramente mais brandos, dá-se o desfecho parcial do laço que uniu os Assunção, facilitado a priori pela troca dos papeis que, à época, favorece os homens em toda e qualquer contenda. Com o coração na mão, cravado de chagas até ao peito atraiçoado, Assunção toma Constância e boa parte dos seus pertences pelo braço e, desejando poupar-se a si e aos demais da presença da tresloucada baronesa, castigando-a por conseguinte ao abandono do lar e da família, bem como da fiel criada Luzia, condena-a a um cárcere longínquo e, de certa forma privado, numa das fazendas remotas que ainda possui.

Todavia, astuta e calculista que só ela, nem em hora tão dolente Constância se escusa a esforços para impor sua vontade e, parcas léguas percorridas para além dos muros da residência, suborna o humilde cocheiro a quem Assunção encarregara a tarefa do translado, forçando um desvio certeiro até às imediações da casa palaciana de sua irmã mais velha. Os favores de uma vida tramada em conluios e segredos fétidos encobertos por um vistoso telhado de vidro, valem então à baronesa e três dias passados desde a suposta partida, é sem pompa nem alardes deliberados que Constância se instala numa modesta habitação para os lados do Jardim Botânico, propriedade de Carlota. Não obstante a pobreza de luxos e as saudades dos aromas requintados a que desde o berço se habituara, o simples fato de quedar-se na capital, perto de tudo e de todos, serve-lhe, por quanto tempo não se sabe, de consolo.

Indiferente a esta ocorrência, da qual, quiçá, se virá a inteirar num futuro deveras próximo, Assunção deixa-se abater, entregando-se por estes dias ao sossego triste de um lar que já se achara feliz, vivendo o luto necessário de quem perde um ente querido. As noites subsequentes à partida de Constância, revelam-se ninhos de insónia que a alcova agora vazia protela. Mesmo consciente da legalidade do seu ato de homem ferido no ego e na alma, a ausência dos odores perfumados da irreverente e elegante esposa inunda de água a vista de Assunção, tecendo neste aspeto, o paralelismo entre a sua nova realidade e a de Margarida já que, aos seres humanos, é sabido, nenhum tipo de rutura é totalmente alheio à dor. A par do fim do casamento, o médico vê-se ainda desprovido de seu filho caçula Albertinho que, dando asas à crença inabalável na conduta irrepreensível da bajuladora mãe, opta por não tomar partido na querela dos progenitores, partindo entretanto rumo a São Paulo com o intuito de seguir as pegadas de um enamoramento relâmpago por uma moça de boas famílias que humildemente o enfeitiçara durante os meses de férias que passara na capital. Assim, somente as constantes visitas a Laura o vão retirando pausadamente do precipício onde se sentia largado e, tendo neste interregno refletido sobre as suas opções, Assunção toma uma importante decisão, traçando com ela a resenha do futuro que lhe cabe.

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Assunção: Estou certo que é o melhor a se fazer, filha. O meu cargo no senado era o sonho de sua mãe, não o meu. De todas as vezes que piso os degraus daquela escadaria sinto meu coração rebentar com as lembranças do que agora sei – afirma abatido e resignado, prostrado no acolchoado azul do sofá da sala da moça. – E depois, eu nunca me ambientei realmente à vida de político. A medicina, essa sim, era o meu sonho e, portanto, é somente a ela que pretendo dedicar os anos que me restam.

Laura: Ah, e eu? Acaso não mais integro os alvos da sua atenta dedicação? – questiona manhosa pousando levemente a cabeça no ombro do progenitor. – Reconheço que o senhor é um excelente médico mas olhe que eu fico com ciúmes.

Assunção: Ora essa minha filha! – exclama embevecido esboçando um sorriso enquanto lhe acalenta os longos cabelos parcialmente recolhidos. – Você e essa família linda que construiu não são um sonho, são sim a minha doce realidade. Se não fosse por vocês eu não sei o que seria desse pobre velho.

Laura: Velho?! – interrompe erguendo de súbito a cabeça e averiguando o espaço em volta. – Onde, que aqui só vejo um homem jovem e, por sinal, muito garboso?! – acrescenta devolvendo-lhe um olhar afetuoso. – O senhor ainda pode ser muito feliz papai. Basta ter esperança e nunca fechar os olhos ao amanhã. Quem sabe que surpresas ele poderá trazer!

Assunção: Minha filha e suas ideias modernas – repara gracejando.

Laura: Ah papai, mas essa não é uma ideia, antes uma ilação bem simples. Eu acredito e defendo que a busca pela felicidade diz respeito a cada um de nós e não às regras e convenções sociais – proclama sólido nas suas certezas. – E, um dia, o qual espero que não esteja muito longe, o senhor há de concordar comigo – sorri beijando as faces emagrecidas do homem. – E será pela melhor das razoes, ainda que por hora o senhor pense o contrário.

Nessa mesma noite, horas volvidas depois da partida de Assunção, já o relógio da sala se aproxima das dez quando o brilho resplandecente dos olhos de Edgar espreita o interior do escritório da residência por entre a fresta da porta mal encostada. Ali, a escassos metros do seu alcance travesso, paira, voltada de costas, a silhueta perfeita de sua bela esposa. Em pé, e apoiando a cintura no rebordo da secretária, Laura passeia as mãos lentas e enlevadas por umas quantas folhas de papel que retirara de uma das suas pastas de trabalho. No chão em madeira Edgar projeta a folhagem naturalmente derramada em solo florestal, caminhando nele de sobremaneira silencioso, qual animal que se acerca sorrateiro do rio onde pretende saciar a sede. De dedos distendidos à procura de apoio e lábios rasgados num sorriso matreiro e ardente, o advogado envolve as curvas da esposa assustando-a de início. O pulo contraído do corpo faz com que Laura solte de imediato os papéis espalhando-os pelo tampo da mesa e, uma vez sanada qualquer ínfima dúvida que pudesse restar quanto à identidade de tão furtivo atacante, um carinhoso toque de repreensão no ombro seguido de um beijo aprofundado dão início ao colóquio.

Edgar: Posso saber o que minha amada esposa faz no escritório em plena noite de sábado quando me ocorrem outras coisas indubitavelmente mais interessantes para se fazer… a dois? – averigua sugestivo aplicando-lhe vários beijos seriamente convidativos no pescoço e na face.

Laura: Nada de mais, senhor curioso – responde a custo, sem forças ou vontade para se livrar das investidas do rapaz. – Estava aqui perdida com os meus pensamentos e ponderava se devo mostrar-te algo que concluí ao longo desta semana.

Edgar: Hum… temos segredos, senhora Vieira? Desde quando? – indaga num misto de curiosidade e preocupação. – Pois agora estou intrigado. Diz-me, o que tanto escondes de mim?

Laura: Ah, não fique emburrado que não tem motivos para isso. Vou-te mostrar mas, antes, você tem que me prometer que será imparcial no julgamento. Quero uma opinião profissional, não de marido. Entendidos? – adverte transparecendo a seriedade que a questão assume para si, recolhendo entretanto as folhas e passando-as ao jovem.

As folhas, de um clarão amarelado, denunciam no carvão de grosso lápis, uma sequência de linhas escritas, reescritas e incontáveis correções. Ocupam ao todo três páginas e, desde a primeira letra, o conteúdo prende a atenção de Edgar que, compenetrado na leitura, recua até ao braço do sofá de couro sobre o qual se acomoda sem despregar dedos e olhos do papel. Intencionado ou não, o certo é que no seu semblante nada se consegue desvendar e tal situação inquieta Laura, cujas pontas dos dedos já levara inconscientemente à boca, como que descarregando nelas a ansiedade por um parecer que não tardará muito mais a sobrevir.

Edgar: Laura foi você que escreveu isto? – interroga mirando-a de frente sem se mover da posição em que está e continuando o raciocínio tão rapidamente que nem permite à professora a formulação de uma resposta. – Que ideia a minha, é claro que foi você, é a sua letra e…

Laura: E você não gostou, claro – interrompe suspirando nervosa e com a desilusão estampada no rosto. – Eu devia saber, …

Edgar: A senhora professora pode-me deixar concluir o meu argumento, por obséquio? – volta a falar, desta feita levantando-se e aproximando-se dela. – Como eu ia dizendo, você pediu-me para ler, eu li, pediu-me uma opinião de profissional e o que eu posso dizer-te é que este artigo deveria luzir nas páginas de um jornal. Laura, além do seu talento inegável para com as palavras, você tem o dom de expressar uma opinião sem imposições, recorrendo a exemplos reais para expor situações adversas.

O discurso do rapaz não poderia ter um gosto mais doce e qual melodia que embala um romance intemporal, descobre na face corada de Laura umas gotículas de água que a gravidez, aliada à emoção, afloram provocando um quase imperceptível mas copioso soluçar. Sorrindo abertamente, Edgar corre a embalá-la nos braços.

Edgar: Se eu adivinhasse que a minha opinião causaria tanto choro, ter-me-ia mantido em silêncio – brinca emoldurando o rosto da jovem nas mãos, contendo-lhe com as pontas dos dedos o lacrimejar.

Laura: Culpa do seu filho que me transformou numa manteiga derretida – retruca enfim retomando aos poucos o prumo e as palavras.

Edgar: Filha, você quer dizer – emenda estranhamente convicto e extasiado, surpreendendo uma vez mais a jovem à medida que lhe afaga o ventre.

Laura: Eu ouvi bem? O meu marido está dizendo que quer uma menina? – reforma estupefacta, impondo um ligeiro afastamento entre os dois corpos para melhor lhe espiar o semblante.

Edgar: Isso mesmo, desta vez estou certo de que teremos uma filha, uma menina que será assim como a mãe dela… apaixonante, destemida, guerreira, teimosa – zomba franzindo o cenho – e, obviamente, tão bela quanto você.

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A declaração do rapaz exacerba de novo o pranto comovido de Laura e a retoma do soluçar impõe um breve silêncio entre ambos.

Laura: Hoje ainda não te disse e creio que não existem dúvidas quanto a isso mas, ainda assim, você merece ouvir e eu quero muito dizer: eu te amo Edgar, tanto, tanto que…

Laura não chega a concluir a frase pois que o mútuo sentimento e a impulsão do desejo levam Edgar a desferir-lhe um longo e voluptuoso beijo que lhes prende os lábios e todas as outras arestas dos corpos pelo tempo limite que o oxigénio lhes consente.

Edgar: Também te amo minha jornalista disfarçada de professora – devolve embriagado de entusiasmo. – E, se você me autorizar, quero levar esse texto a quem deveras o possa julgar e, quem sabe, talvez publicar.

Laura: O Guerra? – supõe alternando num ápice as feições. – Me desculpa meu amor mas eu não acho que o Guerra vá dar valor ao que escrevi, isso se sequer se prestar a ler. Primeiro porque fui eu quem escreveu, uma mulher e, segundo, porque o tema expõe e critica o papel conservador, restritivo e até preconceituoso que nós ocupamos nesta sociedade machista – argumenta insatisfeita.

Edgar: É, pode ser… – concorda conhecendo bastante bem os princípios masculinos que o amigo defende no que ao jornalismo e à carreira respeita. – Mas e se não lhe dissermos a princípio que foi você quem escreveu? – cogita após uma curta pausa para organizar os pensamentos. – Posso entregar-lhe o rascunho como se fosse uma proposta do António Ferreira. Tenho certeza que ele não se oporia a dar uma vista de olhos e ao tecer uma opinião, aí sim, contamos-lhe a verdade sobre a autoria.

Laura: Não sei Edgar. Sei que tens a melhor das intenções e é claro que eu adoraria ver o meu texto publicado porque afinal escrevi para que outras mulheres ganhem consciência de si mesmas e do mundo em que vivemos, como a sua mãe que foi quem involuntariamente mais me inspirou – confessa vagueando os passos ao largo dos móveis dispostos ao redor do cómodo. – No entanto, tenho bem presentes as objeções do Guerra acerca de artigos sérios escritos por mulheres.

Edgar: Mas se ele gostar você pode assinar na forma de um pseudónimo, … masculino porventura. Se bem que…

Laura: Isso não Edgar! – recusa firme. – Prefiro que meus escritos se encham de pó no fundo de uma gaveta do que esconder-me atrás do nome de um homem só para vê-los publicados.

Edgar: Desculpa meu amor, você está certa. Talvez a proximidade do casamento e a convivência com a sua tia tenham amansado entretanto o coração retrógrado do meu amigo! Do mesmo jeito que você amansou o meu desde que nos casamos… – conclui feliz no preparo para o furto de mais um beijo.

Laura: Hum… muito me apraz saber que tenho esse efeito no senhor meu marido. Porém, saiba que ainda tem um longo caminho a percorrer para se igualar a mim no que toca a ideias modernas. É certo que o senhor advogado evoluiu bastante mas continua sendo um tanto ou quanto antiquado em certas e determinadas coisas – desdenha debochada trilhando o tronco do rapaz à procura dos espaços abertos entre o paletó e o colete.

Edgar: Que esposa pedante eu fui arranjar! – reclama divertido apertando-a vigorosamente contra si. – Isso merece uma retaliação exemplar.

Laura: Concordo senhor advogado mas, primeiro, precisamos concluir esta nossa conversa. Tenho algo mais para partilhar.

Edgar: Hum… e tem que ser agora? É que de repente lembrei-me que temos um assunto pendente esperando por nós lá em cima, … no nosso quarto – propõe dengoso valendo-se de carícias mais vistosas que logo agravam as sensações, já de si ferventes, da esposa.

Laura: Edgar… por favor, eu prometo que serei breve – insiste próxima da rendição, no entanto convicta da necessidade de não prolongar o esclarecimento de um último ponto. – Eu adorei passar essa quase semana e meia em casa, gozando plenamente da sua companhia e das crianças mas é chegada a hora de eu voltar ao trabalho – comunica escrutinando a reação do rapaz que não se desvia largamente daquilo que a própria previa.

Edgar: Meu amor, para quê tanta pressa? Você está grávida, passou por momentos tão terríveis, aproveite mais uns dias de sossego. Julgo que a própria madre achará por bem que você permaneça em repouso.

Laura: Também não é para tanto Edgar. Eu entendo a sua preocupação mas eu não estou doente e já me sinto bem, muito bem aliás. Além de que já fiquei muito tempo afastada do colégio, sinto falta da minha rotina, das minhas alunas – esboçando um sorriso que brota juntamente com a recordação das pequenas. – Por favor meu amor, tenta compreender – pede lânguida mimando-lhe o queixo. – Não quero brigar.

Edgar: Nem eu Laura mas é que… é algo que eu não controlo, essa apreensão, esse medo de que algo suceda contigo ou com o nosso bebê. E com o tanto de horrores que nos sucederam, não posso ser julgado por querer zelar pelo bem-estar da minha crescente família.

Laura: Bobo, não te julgo pelo desvelo com que nos tratas mas já passou e nós não podemos viver atormentados. Não vai acontecer nada, fica tranquilo – garante envolvendo-lhe o pescoço entre a pele alva dos braços. – Sabias que continuo te amando ainda que sejas um bobo cuidadoso?

Edgar: Olhe mas que displicente está hoje minha esposa! Só neste curto espaço de tempo a senhora já fez pilhéria comigo umas poucas de vezes! Portanto, creio que afinal vou querer brigar contigo – afirma disfarçando o riso num semblante levemente mais sisudo, aproveitando o passo de diferença que o separa de Laura enquanto se encaminham para fora do escritório.

Laura: Como, se eu não disse nada que não seja a mais pura verdade? – interroga parando subitamente ao pé da escadaria para encarar o advogado de frente.

Edgar: Isso agora não vem ao caso – desconversa afoito. – O que interessa é que eu acabei de ter uma ideia interessantíssima para um selar de pazes perfeito mas para que isso aconteça é necessário que armemos uma briga.

Temendo perder o controlo emocional sobre a gargalhada que lhe estala desde a garganta por força destas conjeturas inebriadas de Edgar, Laura desvia ligeira e momentaneamente o olhar na direção oposta à do jovem prensando os lábios um no outro, num esforço homérico em travar o ímpeto de beijá-lo ali mesmo. Não que o local não seja propício a tal ato ou que ambos se detenham atados a pudores hipócritas, o que não é de todo verosímil principalmente quando o teto sobre eles é do lar que habitam, não, o gesto ponderado da moça deve-se simplesmente à vontade de exacerbar no parceiro a avidez por uma atitude que os instintos emergentes maquinam já por todo seu corpo e mente.

Edgar: Não vai dizer nada? Pensei que aprovaria de bom grado a minha sugestão – profere quebrando a placidez que os sons da noite perpetuam pela sala.

Laura: Analisava mentalmente um motivo bem forte para iniciarmos essa briga e a verdade é que me lembrei de vários – surpreende fitando-o com uma calma aparente segundos antes de principiar a subida. – E, dado que foi você quem deu a ideia, devo alertá-lo, para o caso de não se sentir à altura do desafio –, subestima em meio aos risos arrepiados que as mãos dele provocam à medida que percorrem o corpo na demanda de lhe desfazer o singelo laço que orna o decote da blusa em tons de um rosa seco – que é minha intenção experimentá-los um por um.

Possivelmente por obra da agitação interior que o casal enfrenta na ânsia de reassumirem os afazeres diários aos quais os anos volvidos os ambientaram, o domingo não se faz de rogado e tão logo rompe, põe-se como que cerrando as cortinas defronte a um palco onde se ensaiara o auge do lirismo dramático. E se os fenómenos meteorológicos de sentimentos humanos decorressem, bem se poderia dizer que o sol ensaia na manhã de segunda-feira o ritmo de uma paz próspera. Os raios franzinos e aclarados lançam-se timidamente através do nevoeiro que desperta a cidade, bafejando a humidade com uma brisa amena.

Um suspiro animador, um murmúrio alegre alvejando a esposa que lhe acena efusiva e delicadamente desde a calçada ao vê-lo afastar-se e Edgar sente-se finalmente seguro para agrupar as ideias que ao amanhecer lhe haviam povoado a mente. O destino primário do advogado é, por esta altura, um só e único e a pressa de chegar diminui o prolongamento da condução. Na redação do “Correio da República” a azáfama é notória, como assim exige o começo de uma nova semana mas é no gabinete privado de Carlos Guerra que se trava a importante contenda que lá levara Edgar. As posições diversas que acomodam ambos no humilde e estranhamente organizado cubículo – o jornalista sentado na cadeira à secretária fitando as mesmas folhas de papel que Laura revelara ao marido há menos de dois dias, este último em pé, varrendo nervosamente os dedos das mãos pelos cabelos, – estabelecem a circunferência de receio declarada nas palavras ainda não ditas.

Guerra: Olha Edgar, não sendo uma matéria de denúncia, com base numa investigação, confesso que estou surpreso com a perícia dos argumentos citados. Julgo que será um dos artigos de opinião mais coerentes e bem redigidos que li em bastante tempo ainda que eu não concorde completamente com alguns pontos – replica pondo cobro ao ruído dos tipos sendo ordenados que condimenta o silêncio. – Meus parabéns caro Ferreira! Por mim podemos publicar quando você quiser.

Edgar: Sabia que você não iria ficar indiferente mas não fui eu quem escrevi – conta empolgado. – Foi a Laura.

Guerra: A Laura?! – exclama perplexo abatendo-se de costas contra a cadeira. – Eu não fazia ideia.

Edgar: Ah Guerra, não me venha dizer que só porque o texto provém da inteligência incontestável de uma mulher, a minha mulher por sinal –, reforça gaguejando aborrecido – você está tecendo segundas considerações sobre uma possível publicação.

Guerra: Edgar, lamento mas, você sabe, por muito bom e consciente que o texto seja, sendo assinado por uma mulher, criticando justamente o papel delas entre nós, jamais terá o alcance dos demais jornalistas – alega vacilando nos vocábulos enquanto se ergue apoiando as mãos na mesa.

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Edgar: Jornalistas homens, você quer dizer! Ora, eu pensei que seu sangue revolucionário já seria mais condizente com a época em que vivemos mas vejo que me enganei. Meu amigo, ao lado de quem me insurgi tantas vezes em defesa dos que a sociedade menospreza, é o mesmo que agora afirma na minha cara suas convições machistas. Você mesmo disse, é um ótimo artigo, merece ser publicado e se não houver um vanguardista que rompa com estes preconceitos repressivos para com as mulheres, como podemos pensar que algum dia será diferente?

Guerra: Bem sei que estás certo e conheço até casos vários de violência mas… – titubeia descendo os olhos, ciente da arrelia do amigo – eu não posso Edgar. Não com o nome de uma mulher assinando a autoria. Talvez se Laura concordar em usar um pseudónimo – sugere esforçando-se por amainar as contrariedades da questão.

Edgar: Masculino? – conclui. – Laura já colocou essa hipótese de lado e eu concordo com ela. Intentava com isto fazer-lhe uma surpresa, um agrado que estou certo a deixaria imensamente feliz e inspiraria muitas mulheres – desdobra entristecido com a recusa. – Mas se não pode ser como ela sonha, então que não seja de todo.