O rosto trancado, simulando um amuo de criança por entre os contornos de homem feito, espelha claramente a decepção que ataca Edgar. A argumentação vincada e sábia de advogado feroz que defende a pulso uma causa que lhe é deveras cara, em pouco ou nada aliviara as considerações anteriormente tecidas por Guerra e, embora não declaradamente, é certo que à saída do jovem, persiste entre ambos uma esbatida e agastada neblina. Obviamente que por isto não se abala a amizade, pois que tecer opiniões contrárias faz parte da densidade tão curiosa que pauta a essência humana e poucos vínculos se mostram na vida tão resistentes e duradouros quanto este que, como tal, deve cuidar-se com zelo como se de um tesouro se tratasse.

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Os restantes dias do mês de Agosto passam então sem que nada de maior suceda. Envolvidas numa manta de seda que aos poucos vai sorvendo os episódios tempestuosos do inverno, nas semanas que antecedem o quarto aniversário de Melissa, Fernando recebe a sentença que lhe cabe pela morte da amada cantora e, com a certeza do cárcere do rapaz, anuncia-se a chegada da primavera que agora se vislumbra nítida e colorida no chilrear alegre dos pássaros rasgando o céu e nos botões mimosos de flores que em cada canto enfeitam ruas e casas.

Outubro entra assim de mansinho, como heras trepando paredes e muros, carregando no regaço florido e brando o dia com que Celinha tanto sonhara. E, como se a ela se quisesse opor, o sol da manhã de sábado rompe iluminado e tranquilo, acompanhado de um frescor tão vívido e suave que nem sequer um grão de areia se move no areal das praias que banham o Rio de Janeiro.

Na residência dos jovens Vieira, o compromisso importantíssimo da manhã de sábado postergara a sonolência, endiabrada pela cantiga faceira do sabiá pelo que, cómodo a cómodo, as camas perfeitamente compostas denunciam a azáfama. No quarto aceso pela sobranceira luz diurna, Laura dá os últimos retoques na leve maquilhagem que lhe cora a face, luzindo os lábios num tom vermelho de maçã suculenta quando a ténue voz de Francisco se acerca da porta. Do alto da sua pequenez, o menino assemelha-se hoje, mais do que nunca, a um príncipe da corte, envergando um terno cinzento e os cabelos tão bem penteados que o seu papel para o dia não poderá ser senão o de pajem, a par da irmã que lhe fará companhia na subida ao altar. A bela mãe em nada lhe fica a dever e a curva contundente que a gestação de quase cinco meses evidencia por entre os brocados do elegante vestido, torna-a, se é que tal é possível, ainda mais encantadora. Ao precipitarem-se escada abaixo, de mãos dadas como cabe aos infantes cavalheiros sempre que acompanhados de graciosas damas, os sorrisos que trazem são tão largos e felizes que, pode-se afirmar, quase encandeiam os demais que na sala, em pé, os aguardam. O semblante de Edgar, que ainda há pouco se debatia com a possibilidade de um atraso, derrete-se perante a visão eloquente da esposa e palavras não são suficientes para que o advogado consiga expressar tamanho fascínio.

Edgar: Agora entendo porque me expulsaste do quarto, recusando a minha preciosa ajuda com o vestido – sussurra-lhe dengoso ao entrelaçarem os braços rumo ao automóvel que os aguarda no exterior.

Laura: Pois engana-se senhor meu marido – caçoa fingindo-se desentendida. – Apenas quis poupá-lo de tão maçante tarefa. Ou ainda não considerou o trabalho que dá abotoar as longas costas deste vestido?

Edgar: Mas eu não acharia de todo maçante! – reclama, empinando os olhos que penetravam os dela. – Muito pelo contrário, faria com agrado. Se bem que, pondo as coisas neste prisma, estou certo de que mais tarde os desabotoarei com mais gosto ainda – insinua-se esboçando um sorriso manhoso.

O dia adivinha-se de sobremaneira auspicioso para as famílias felizes da capital porém, destas, poucas se podem vangloriar de cultivarem no núcleo, amor e contentamento maiores do aquele que enreda Laura e Edgar. Os amigos, que a vida lhes trouxe como presente de continuidade, selam, por volta do meio-dia e às mãos abençoadas do padre, a união que um desejara como água e o outro repelira como fel, jurando-se fidelidade e amor eternos, nos melhores e piores momentos da vida. A cerimónia não se delonga, regada à saída por aplausos em meio às lágrimas comovidas das senhoras e senhoritas que a atenderam –, umas despertadas pela melancolia das reminiscências, outras irrompendo dos olhos tristes sobre quem um outro par ainda não repousara – e, a festa que a ela se sobrepõe, não preza pelos convivas ilustres da fina flor da sociedade carioca mas garante os que de coração aberto e sincero abraçam os noivos. A modesta sala de espetáculos recentemente reconstruída do teatro Alheira, gentilmente cedida por Isabel a pedido de Laura, revela-se pequena para tantos vivas e felicitações.

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Enquanto o vinho escorre desregrado pelo vidro dos copos e as bocas se deliciam com o doce e salgado sabor dos acepipes, Guerra aproveita o instante em que Celinha prepara o arremesso do bouquet de flores para surripiar a atenção de seu padrinho de casamento, puxando-o delicadamente pelo braço até ao canto mais afastado do espaço.

Edgar: Para onde me levas Guerra? Não me digas que precisas de conselhos para logo mais… – inquere fazendo pilhéria com o secretismo que move o amigo.

Guerra: Ora Edgar! Por quem me tomas? – repreende num riso de troça. – Não é nada disso. É outro assunto e um que, creio, te interessará muito mais.

Edgar: Pois então diga, do que se trata?! – recobra o tom fitando-o intrigado.

Guerra: Ao longo destas semanas que se passaram, andei pensando e, depois de muito ponderar, cheguei à conclusão de que tinhas razão – principia misterioso levando uma das mãos à cintura por baixo do paletó.

Edgar: Sobre o quê Guerra?

Guerra: Aquele assunto de meses atrás – indica na esperança de despertar as recordações do advogado. – O artigo que a Laura escreveu! – completa ao notar o desentendimento alheio.

Edgar: Ah, claro! – exclama como se uma lâmpada lhe reacendesse os pensamentos. – O que houve? Não me digas que… – implícita alargando os lábios em sinal de aprazimento.

Guerra: É exatamente isso meu caro, decidi-me a publicá-lo.

Em júbilo pela notícia que não acreditava tão cedo poder ouvir, Edgar lança-se de braços abertos na direção do jornalista, aplicando-lhe um cumprimento digno de toda a sua euforia e gratidão.

Edgar: Ah Guerra, que maravilha! Obrigado meu caro amigo, obrigado.

Guerra: Calma Edgar, não é para tanto – resfriando os ímpetos do rapaz. – Há um senão… Eu não posso publicar um artigo assinado por uma mulher assim, de repente, sem preparo de espécie alguma – prossegue despoletando uma certa contrariedade no semblante confuso de Edgar. – Porém, considerando a impossibilidade de recorrermos a um pseudónimo masculino, pensei em colocar somente as iniciais da Laura; L.V. Bem sei que não é de todo comum e inclusive poderá levantar suspeitas ou por em causa a credibilidade da matéria mas, estou certo de que vale a pena corrermos o risco, não concordas?

Edgar: Não sei nem o que te dizer, Guerra. Fui apanhado desprevenido mas sim, obviamente que concordo! – exulta maquinando mentalmente a reação da esposa quando finalmente se vir confrontada com a surpresa. – Laura entenderá e, com o tempo, dependendo das críticas que possam incidir sobre o mistério da autoria, ela poderá revelar-se e seu nome completo vigorará nas páginas do jornal assinando dignamente o seu trabalho.

Guerra: Não sabes como me tranquiliza saber que chegamos a um consenso meu nobre amigo! Vou instruir o Jonas para que ele cuide da publicação durante a próxima semana já que eu andarei ausente por motivos de força maior – graceja enamorado espreitando de soslaio a agora esposa que do outro lado do salão tropeça desajeitada no pé de um cavalheiro ao tentar achegar-se à sobrinha. – Aproveitando o bonde –, continua volvendo-se para o amigo – adianto também que surgiu uma nova pauta para o Ferreira. Estou curioso para saber o que tão afamado e convincente jornalista terá para me dizer sobre liberdade e tolerância religiosa.

Edgar: Com um tema interessantíssimo como este, não necessito sequer de uma avaliação mais cuidada para te garantir a atenção do Ferreira – afirma à medida que se encaminham de volta à restante comitiva. – Aliás, tal assunto deixa-me tão empolgado que se não fosse pela amizade que tenho ao noivo, sairia agora mesmo de fininho para dar início aos trabalhos.

Guerra: Agradeço pela parte que me toca – ri imprimindo-lhe uma leve batida no ombro. – E, assim sendo, venha meu amigo, brindemos à nossa amizade – convida apanhando dois copos de espumante sobre a mesa principal.

Edgar: E ao amor Guerra, e ao amor! – conclui num piscar de olhos travesso que dirige a Laura à meia distância.

Expansiva e solarenga, a tarde prolonga-se até ao crepúsculo, entre cavaqueiras amenas e sonoras gargalhadas, notando-se aqui e ali exequíveis parelhas exalando um harmonioso entrosamento. Não obstante o esgotamento físico, Laura, Edgar e as crianças são os últimos a sair, levando consigo o fresco casal que, ao embarcar lado a lado no banco de trás do automóvel, se fita inebriado, buscando no outro as sensações e pequenos temores que a responsabilidade do feito acarreta. Distraídos, marcham plácidos e serenos sob a lentidão agitada do céu carregado de estrelas, seguidos de perto pelo clarão magnânimo da lua cheia.

A caminhada para o final da semana subsequente ganha contornos de cavalgada galopante, correndo numa velocidade muito própria de quem anseia por algum outro acontecimento marcante. Assim se vê Edgar, a quem a sucessão destes dias exacerba o buliço, tão ampla e cativa é a sua vontade de ver finalmente nas ruas, o fruto das mãos tradutoras da esposa. Laura permanece por esta altura ainda alheia à empreitada do marido, dedicando-se ao magistério que continua a consumir-lhe as manhãs e ao cuidado redobrado com Francisco e Melissa. O peso ainda leve do ventre permite-lhe gozar de certa autonomia e, mimada que é por todos quantos a rodeiam, intenta concluir no ativo o ano letivo que se aproxima do fim para só então se devotar aos preparos que o nascimento do novo membro exige.

Quando mais uma manhã de quinta-feira os desperta aos acordes da brisa que no jardim desdenha dos ramos fartos das árvores sacudindo-lhes delicadamente as folhas, estão ambos tão subjugados à preguiça da aurora que o enlevo do namoro de bons dias faz-se calmo e sem pressas. Todavia, se a jovem professora pudesse presumir então a boa nova que a aguardava na sala austera da madre superiora, ter-se-ia levantado com caprichosa rapidez, a mesma com que se detivera contando as voltas dos ponteiros sobre o relógio da sala, na ânsia de que a tarde se fosse e com ela trouxesse Edgar. No jardim lateral que abraça a meia frente da residência, Francisco e Melissa dão azo à algazarra das brincadeiras, já não se distinguindo em nenhum, o tom natural das peles e o castanho seco da terra que os cobre quase dos pés à cabeça. O vestidinho amarelo da menina terá, se tanto, um palmo de tecido limpo, e com os pés estendidos sobre o chão, diverte-se efusiva a observar o castelo de lama disforme que o irmão tenta erguer-lhe sobre os mesmos.

Melissa: Tens que construir a torre Francisco, ou eu não terei onde por a minha princesa – instrui esticando a mão direita de forma a alcançar uma de suas bonecas.

Francisco: E o meu dragão onde fica? – questiona parando um segundo para verificar o andamento da obra.

Escassos passos além, Laura flana em círculos e linhas vazias, deitando de vez em quando os olhos ao largo da rua que atravessa o portão aberto da casa, consumida pela aparente delonga de Edgar. Nisto, de relance entreouve o burburinho do motor e quando o vislumbre da capota negra transparece por entre o verde dos arbustos que circundam a vedação, um largo sorriso se desenha em seus lábios. Amparando nos dedos da mão esquerda uma dobra da longa saia, folgando desta feita o andar, impele-se contra ele num espasmo tão firme e irrequieto que o jovem a custo controla o desequilíbrio do corpo, tamanha a surpresa que o toma de assalto sem aviso prévio. O desvio da carroçaria traça em si um recanto, escondendo o casal da vista das crianças e sem tempo para cogitar outras ações, Laura demanda pela boca entreaberta de Edgar, arrimando o rapaz contra a porta do automóvel. Um poderoso desejo sobe-lhes pelos pés como formigas recolhendo alimento e o beijo sôfrego que trocam perde-se no tempo e nas carícias sem lei que o sopro de fim de tarde arrepia.

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Edgar: Eu também senti uma saudade enorme de ti! – murmura interrompendo o silêncio compressor de fôlego mantendo a esposa apertada nos braços.

Laura: Não imaginas o quanto me custou passar a tarde à tua espera – replica ainda de olhos meio cerrados, acariciando-lhe languidamente os contornos da face. – Aconteceu uma coisa!

Edgar: O quê meu amor? Foi algo grave contigo ou os pequenos? – inquere sentindo de súbito uma ruga de preocupação invadir-lhe a testa. – Sentis-te uma dor, um desconforto? – gagueja afastando-a levianamente e transportando as mãos que apoiavam a cintura da moça de encontro à saliência do ventre.

Laura: Não, não é nada de mal meu amor, pelo contrário – tranquiliza rindo embevecida com tamanho desvelo. – É que hoje recebi um convite maravilhoso e estou tão feliz que não via a hora de partilhá-lo contigo – principia já não contendo a destreza dos vocábulos. – Edgar, a madre decidiu-se a construir uma ala de ensino beneficente para adultos iletrados e crianças desfavorecidas nas imediações do convento e adivinha quem ela propôs para dirigir o projeto… eu e a Sandra – conta extasiada sem lhe dar o devido tempo para formular o palpite.

Edgar: Que boa notícia, amor – felicita sincero afagando-lhe as curvas dos fios castanhos que pendem parcialmente do coque. – Mas para quando será isso? A madre sabe que ficarás alguns meses afastada por conta do nascimento da nossa filha!

Laura: Dará tempo para tudo. O espaço escolhido para o efeito está em bastante mau estado, precisará de obras profundas e até que tudo esteja pronto, a nossa filha, ou filho –, reforça impondo a dúvida que Edgar teima contradizer – já estará balbuciando as suas primeiras palavras – derrete-se deixando escapar uma lágrima alegre e cristalina. – Estou tão feliz que nem caibo em mim.

Edgar: Melhor assim – sossega alvejando-lhe o pescoço. – Vem, vamos entrar que eu quero saber tudo sobre esse projeto – convida oferecendo-lhe o braço – e se não arrancarmos aqueles dois dali o mais depressa possível, tenho para mim que precisaremos chamar o jardineiro – gargalha ao notar a farra de Francisco e Melissa.

Na manhã seguinte, Edgar acorda cedo, não conseguindo conciliar o peso das pálpebras com o desassossego de se inteirar enfim acerca das manchetes do “Diário da Republica”. Enrolado no robe azul escuro, desce as escadas saltando alguns degraus, sem forçar em demasia os pés no soalho para não sobressaltar a empregada e corre à porta exterior da residência a recolher os matutinos ainda quentes das mãos do ardina. A alvorada prematura do patrão intriga Matilde e, antecipando-lhe os pensamentos, rapidamente dá início à composição da mesa para o dejejum. De jornais em punho, distraído enquanto varre freneticamente os olhos pelas longas páginas, Edgar mantém-se de pé entre as costas do sofá e a ambiência da escadaria onde morre ainda a penumbra das primeiras horas do dia mas, quando os seus olhos resvalam finalmente no que tanto procuravam, o contentamento do jovem é tal que, sem se aperceber, solta um risinho excitado.

Edgar: Matilde, Matilde! – chama alvoraçado tornando a vista para os lados da cozinha. – Prepare uma bandeja com as coisas que a Laura mais gosta, por favor. Hoje faremos o dejejum no quarto.

Matilde cumpre à risca as orientações do advogado, ornando inclusive a bandeja com um jarrinho de vidro fino de onde sobressaem os ramos de alecrim que o jovem colhera enquanto aguardava o findar dos preparos na cozinha. No andar superior, impera uma calma emudecida de ares campestres e no cómodo do casal, o leito ainda comporta o corpo dormente de Laura. Pé ante pé, Edgar acerca-se da cama e pousando cuidadosamente a carregada bandeja ao fundo da mesma, aninha-se furtivo nas costas da esposa, deslizando delicadamente as pontas dos dedos pela pele desprotegida dos braços dela. Ao toque do rapaz, a penugem imperceptível eriça-se descompassada e, numa lentidão infindável, Laura espreguiça-se sorrindo. Encarando-se, demoram-se breves instantes neste enleio em que se tocam as extremidades possíveis do corpo, dando tempo aos olhos da professora para se ambientarem à luminosidade da manhã. Depois, palpando já o cheiro forte das sumarentas frutas e afins, Laura espreita por cima do ombro o trilho de onde lhe sobrevém os aromas e visivelmente entusiasmada, acomoda-se entre os travesseiros.

Laura: Isso tudo é para mim? – indaga maravilhada fitando-o com ternura. – Tem até alecrim!

Edgar: É, claro. Para vocês duas e um pouquinho para mim também mas só se a minha amada esposa assim quiser – insinua-se trazendo-lhe o rosto alvo para perto após aplicar-lhe um carinhoso beijo no ventre.

Laura: Hum… vou pensar senhor advogado – chalaça divertida. – Se me permite perguntar; a que se deve este dejejum a dois no quarto? Tanto quanto sei hoje ainda é sexta-feira – repara curiosa com o gesto que normalmente se estabelecia nos dias livres de compromissos laborais para ambos.

Edgar: E é meu amor – confirma puxando a bandeja pelas pontas por cima das cobertas, desvendando num dos cantos as folhas dobradas de um jornal. – Porém, esta não é uma sexta-feira qualquer – revela apanhando o diário. – Você é uma mulher tão maravilhosa, Laura, tão doce e delicada, igualmente forte e decidida – prossegue descobrindo-lhe as faces marejadas por entre os fios de cabelo soltos. – E, porque por vezes tenho a sensação de que nunca estarei à altura do quão feliz você me faz, achei por bem oferecer-te algo que, espero, seja do teu agrado.

Um longo minuto arrasta-se à medida que Laura discorre a vista sobre as folhas do jornal, depois outro, e outro interminável minuto até que, por fim, já com a face banhada em lágrimas, a moça exclama emocionada:

Laura: É o meu artigo, … no jornal do Guerra e com as iniciais do meu nome!

Edgar: É, me perdoa se não é ainda o seu nome com todas as letras meu amor mas, se puder, tenta entender. O Guerra receia que gente maldosa e de ideias obsoletas se insurja contra o jornal ou, pior, contra você e só por isso concordamos em lançar os seus textos assim, sob a forma de iniciais – explica titubeando nos vocábulos, perscrutando alguma oposição por parte da esposa. – Daqui a uns tempos, quem sabe as coisas caminham em terreno fértil e mais propício…

Laura: Eu sinto tanto orgulho de você Edgar, de ser sua esposa, sua mulher – declara interpondo-se no monólogo que o rapaz por segundos travara sozinho. – Este é o melhor presente que eu poderia receber. Obrigada meu amor, obrigada – agradece replicando-lhe pelo pescoço os beijos que iniciara na boca entre apertos inquietos. – Não são ainda todas as letras como você mesmo disse mas são as principais e, um dia, serão todas elas, uma por uma, como as que compõe o nome do meu jornalista predileto – sugere dengosa.

Edgar: Quem, o Antônio Ferreira?! – interpela inebriado com a brincadeira, tateando com jeito uma posição favorável aos dois.

Laura: Ele mesmo!

A este primeiro artigo de opinião laborado pela professora seguem-se outros, contabilizando até ao final do ano de 1908 um total de sete, todos eles assinados somente com as duas letras que a capital curiosa espera ansiosamente vir a desvendar. Talvez bafejadas pela intriga que se forma ao redor da autoria, tal qual Guerra e Edgar haviam previsto, certo é que as opiniões controversas de Laura sobre assuntos distintos (sempre almejando contudo a exposição de situações discriminatórias) obtêm, num curto espaço de tempo, a atenção de ambos os géneros, independentemente de idade, cor ou estrato social. Por seu lado, Edgar permanece enredado no pseudónimo que criara, explodindo as páginas do jornal com denúncias fortes e de altiva relevância e o medo de uma exposição perigosa da família, reforça-lhe a vontade de manter o anonimato.

Neste meio tempo, já Dezembro entrara quente e embriagado com a chegada do Natal e o ventre de Laura se avolumava a olhos vistos, Isabel cumpre o sonho de subir ao altar pelo braço de seu pai, desposando desta feita o jovem francês que arrebatara seu coração com a mesma expressividade com que lhe aplacara as lembranças de um passado sofrido. A par deste acontecimento marcante na vida da mulata, outro igualmente senhor de si se impõe e a “Companhia Brasileira de Danças” estreia ao romper do novo ano, o palco do renovado Teatro Alheira com a casa abarrotando de gente.

É em plena terça-feira de Carnaval desse jovial ano de 1909 que a família Vieira dá as boas vindas ao tão desejado membro. Ainda o almoço em família transcorre ordeiro e afável quando à mesa Laura anuncia as primeiras contrações. Sem bravata intenta acalmar Edgar mas, se na moça a ciência do que está por vir esmorece uma parte do nervosismo, no marido a realidade da hora será eternamente tumultuada. Por conseguinte, cabe a Assunção e Margarida liderar as hostes para o resto do dia e enquanto o bom médico auxilia o genro a acomodar Laura no quarto, a avó absorve na sala as perguntas dos netos. Passam horas e horas a fio sem que nada além dos gemidos doloridos de Laura se ouça e o desespero de Edgar com a delonga só não extrapola as paredes do cómodo porque Assunção o autoriza a repetir a façanha do nascimento de Francisco. Acocorado nas costas da exaurida esposa, no momento exato em que o sol se põe pintando a janela com as cores do anoitecer, Edgar testemunha novamente o milagre da vida e apertando Laura contra si num pranto extasiado, observam em júbilo o tenro corpinho ser erguido às mãos do avô.

Assunção: É uma menina, minha filha, é uma menina!

Acometidos por uma pujante emoção que lhes destempera as sensações por completo, perdem-se todos três num choro enternecido que acompanha o da infante fazendo-se anunciar e à noite, quando a excitação em torno dela já amainara, Laura delega em Edgar a função de discernir sobre o nome. Recebe então por decisão do progenitor a graça de Leonor pois, tratando-se de um nome que coroara rainhas, em tudo agraciaria a mais recente princesa do casal Vieira.

Semanas volvidas sobre o nascimento de Leonor, sobrepõe-se no calendário os meses e a sucessão das estações comporta em si um achado que o tempo vai moldando no rosto da menina. Os cabelos dourados, de um brilho tão claro e intenso que até ao sol despertam inveja, desenhados em curvas de caracóis cada uma mais perfeita e única, e a pele alva e macia como algodão, não levantam dúvidas quanto à familiaridade dos seus traços delicados mas é durante um passeio que, pouco mais de um ano depois, a essência destes detalhes se abate contundentemente sobre Laura e Edgar.

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Naquele domingo de Março de 1910, o fim do verão desce impiedoso sobre a cidade, aquecendo de tal modo as pedras do chão que nem os mais finos botins parisienses salvam os pezinhos das damas de lhes sentirem o calor. Num recanto agreste, entre a esquina da alameda e o recinto do imponente chafariz do Jardim Botânico, Laura e Edgar namoram cautelosos buscando na sombra um sopro fresco de brisa que as árvores frondosas criam a custo. Abraçados no banco de pedra, espiam o divertimento dos três herdeiros que, uns passos adiante deles tocam as várias espécies de flora que habitam o local, sorrindo largamente com a visão cíclica da desenvoltura de cada um e o desvelo com que os dois mais velhos guiam a caçula.

Laura: Impressionante como o Francisco se parece cada vez mais com você – constata estabelecendo o elo físico entre os dois rapazes. – Olha só o cuidado com que ele e a Melissa tentam amparar os passinhos reticentes da Leonor – derrete-se.

Edgar: Nós temos muita sorte, nossos filhos são maravilhosos, cada um à sua maneira mas todos eles incríveis – acrescenta trazendo para junto da boca o queixo da esposa seguro entre os dedos da mão direita. – Como a mãe deles, obviamente! – ri declaradamente apaixonado.

Laura: Ah também não é para tanto meu amor. Até que eles herdaram bastante de você além da aparência. Veja a nossa pequena, tão meiga e tranquila… puxou você.

Edgar: Eh, nesse último aspeto você tem razão, ela é realmente muito calma, não pode ter herdado isso da irrequieta mãe…

Laura: Irrequieta mãe que o senhor adora, não é mesmo? – devolve lânguida ao que ele prontamente assente. – Mudando de assunto, daqui a pouco teremos que ir. Eu ainda preciso concluir o preparo das minhas aulas para amanhã e quero que você releia o artigo que o Guerra me pediu.

Edgar: Esta semana ainda terei aquela prosa com o meu amigo – informa torcendo o nariz. – Ele está te sobrecarregando em demasia Laura. Até entendo que as vendas do jornal tenham aumentado de uns meses para cá com o desvendar da autoria dos teus artigos mas ultimamente ele tem encomendado praticamente dois por semana. Desse jeito não sobra tempo para mim e eu sou um marido tão necessitado de atenção – reclama fazendo manha enquanto lhe acaricia as maçãs do rosto com a ponta do nariz.

Amotinado com a falta de uma resposta e achando por isso que o comentário não fora do agrado da jovem, Edgar levanta o rosto do aconchego em que estavam e escrutina nos olhos de Laura um assombro que há muito não lhe conhecia. Seguindo-lhe o olhar, num ápice vê-se também ele surpreendido e atónito com a visão de um rico vestido em tons de vermelho e bege que o verde da envolvente demarca a contáveis passos das crianças. Envergada nele e com uma melancolia marejada nos olhos, Constância, revela-se, espiando visivelmente consternada, o convívio familiar do qual se vira bruscamente apartada e quem dividisse nesta cena as atenções entre os presentes, facilmente denotaria a semelhança entre o rosto da baronesa e sua neta mais nova. Espelhando no tremor das mãos uma inquietação que em nada fazia lembrar sua impavidez imperial, a mulher encaminha-se para o banco onde a filha e o genro prosseguem petrificados e sem se achegar totalmente, rompe o silêncio de anos.

Constância: Laura… deixe-me cumprimentar os meus netos, por favor filha!

Mutuamente o casal entreolha-se num misto de choque e espanto. À mente afloram-lhes raios de memórias passadas, tristes mas também algumas de dias felizes e a dúvida quanto ao consentimento ou não faz-se presente, pois apesar das desgraças, rancor não é ingrediente que lhes tempere os corações.


FIM!

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.