Guardiã do Rei

A Rebelião I - O Quê Você Realmente É?


Everything seems perfect, everything's okay

It will all get better now, at least that's what they say

But I don't see it coming!

~ When You're Young

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Annabeth seguiu para onde sabia que iria ou pensava que sabia. Quando Fritz passou reto diante dos muros baixos da Igreja e continuou por mais uns duzentos metros, Annabeth começou a ficar realmente preocupada.

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As rédeas do animal malhado do sacerdote só foram puxadas quando este se viu diante de uma pequena casa miserável. Suas paredes de pedra estavam cobertas por musgos, e ela se localizava no topo de uma íngreme subida. Lá o vento batia mais frio e cortante do que no Pátio, e Annabeth pôde enxergar partes do castelo e o começo da cidade.

Para trás da moradia não havia nada sequer mato. A solidão do lugar lhe dava um aspecto quase fúnebre, e não melhorou quando Fritz desceu do cavalo e destrancou a gigante porta de madeira que rangia. Após resmungos e maldições por parte do velho a porta se abriu, deixando a claridade entrar em uma sala que parecia há muito no escuro.

O queixo de Annabeth batia involuntariamente, e a dor que sentia a viagem desde o Acampamento lhe atacou. Agarrou-se aos trapos do vestido rasgado como se fosse a única coisa em que confiava. Fritz havia entrado e deixado a porta aberta, e Annabeth teve de admitir que não aguentaria mais um minuto lá fora. Contrariada, entrou na casa devagar.

Não sabia ao certo o que esperava encontrar dentro da moradia, mas definitivamente nunca seria algo que ela tivesse previsto. O chão era de madeira velha e quebrada, e as paredes, cobertas por estantes. E, em cada estante, milhares de frascos e de todas as cores. Frascos azuis, grandes, redondos, amarelos, com conteúdos líquidos e sólidos. Enquanto observava admirada, Fritz acendeu uma lamparina e fechou a porta.

A luz emitida iluminou toda a sala sem dificuldade, e o sacerdote a pousou sobre o que parecia ser sua mesa de trabalho. Sobre ela haviam papéis, tinteiros e penas suficientes para escrever a história do mundo. Sob a mesa estavam outros pergaminhos meio enrolados e alguns mapas com terras de formatos estranhos. Na cabeça de Annabeth, ecoava a voz de Quíron: Fritz esconde muitas coisas naquela Igreja. Igreja? Isso ainda não fechava o raciocínio dela. Ainda.

Da mesa, sentado em uma cadeira maior do que ele, Fritz assistia a admiração de Annabeth com visível satisfação.

– A senhorita parece desconcertada falou, entre risinhos.

– Você é um alquimista, não há nada de desconcertante nisto - rebateu Annabeth, indiferente.

O velho encolheu os ombros irritantemente.

– Se assim acreditas, muito bem. Nada posso faz...

– Um alquimista com muitos segredos - interrompeu bruscamente a semideusa. - Até demais, mesmo para o senhor. Por que me trouxeste aqui?

Fritz não parecia ter pressa para respondê-la.

– Lembra-se de quando veio à minha Igreja pela primeira vez, senhorita? - perguntou, com uma expressão que nada revelava.

Annabeth estreitou os olhos.

– Como esquecer? - ironizou. - Mas responda-me antes: por que estou aqui?

– Eu me lembro deste dia - continuou Fritz, ignorando-a por completo, mergulhado em pensamentos. - Lembro-me de ter lhe dado um apelido que repeti por várias vezes. Qual era mesmo?

A conversa sem sentido já estava deixando Annabeth em cólicas.

– Por que estou aqui? - repetiu, com os dentes cerrados de nervosismo.

– Não me lembro do maldito apelido... - murmurou ele.

– Que diferença faz?! - explodiu Annabeth de repente.

Fritz arregalou os olhos em alegria.

- Lembrei! É claro, é isto mesmo - dizia, balançando o dedo indicador na direção dela - Chamei-a de brux​inha.

Annabeth começou a perceber o que Fritz tentava dizer-lhe.

- O senhor chamou-me meio-sangue - corrigiu ela. - Disso tenho certeza.

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O sacerdote cuspiu.

- Ah, meio-sangue, bruxinha... não há diferença, criança! Ou crês que exista algo que separe a magia de seus deuses gregos?

Ela abria a boca para responder, mas notou o modo curioso de como Fritz a encarava. A pergunta era claramente mais profunda do que ela pensara. Seu olhar viajou do rosto do velho para o corte dele nas costelas. Aquela fora a espada de Percy.

Ergueu os olhos novamente, sentindo o queixo cair devagar enquanto raciocinava. A lamparina de Fritz o iluminou quando ele sorriu.

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Hermes desceu as escadarias do Salão Real vazio com uma expressão alegre. As sobrancelhas, unidas no meio da testa, demonstravam que sua alegria derivava de planejamentos e lógicas perfeitas. Nada poderia sair da linha, ou um longo período investido em função de um garoto iria por terra abaixo.

Do canto do Salão, entrou humildemente um criado esfregando o chão com água abundante. O perfume de maresia que exalava de seus instrumentos de trabalho e que inundou o ambiente fez Hermes parar. Havia algo de... único, naquele aroma. Algo de pessoal. Como uma assinatura. E bem sabia Hermes a quem ela pertencia.

O ministro virou-se na direção do distraído criado, observando-o com atenção. Como o criado limpava tudo com bastante paciência e pouca pressa, o deus impacientou-se e caminhou até ele. Seus passos ecoaram gravemente até cessarem ante a poça de água no chão formada pelo homem.

O criado esfregou um pouco de um lado e depois, quando mudava de posição para esfregar do outro lado, colocou os olhos pela primeira vez nas botas caras de Hermes. Ele ergueu a cabeça lentamente, até, sob a cabeleira negra e espessa, surgirem dois olhos verdes e penetrantes. Um olhar curioso e um pouco desconfiado, que surpreendentemente lembrava os de Perseus.

Um longo silêncio perdurou, enquanto Hermes arqueava a sobrancelha direita em questionamento. O criado sorriu ante aquela expressão. Pôs-se em pé, ficando alguns dedos de altura acima do ministro. Era forte e jovial, com a pele bronzeada e cheiro de mar.

- Por que será que sua presença não me surpreende? - perguntou Hermes ironicamente.

- Talvez não a minha presença - considerou Poseidon -, mas com certeza a demora dela.

- Não posso deixar de concordar.

- Agradeço o presente que mandou à minha corte. Precisei rever vários conceitos de batalha com meus soldados, mas nada que me atrasasse totalmente.

Hermes riu surpreso.

- Totalmente? O Reino está praticamente uma...

- Não importa - interrompeu o deus do mar. Seu jogo não está vencido. Faça um favor a si mesmo e lembre-se disso constantemente.

- E o que pretende fazer? - provocou o ministro. - Contar a Perseus a verdade e comandar o Reino? Acha que será simples assim?

Poseidon inspirou e expirou tranquilamente.

- Não disse que será simples - ele recordou. - Nem mesmo tente me subestimar, Hermes. Acha realmente que tem tudo sob controle?

Hermes ainda sorria, até seu sorriso desmanchar-se.

- Espere - protestou ele - onde está...

- Então. Onde está Sally? - insistiu Poseidon, vendo Hermes se alterar cada vez mais. - Onde está sua ferramenta de tortura contra Percy, neste exato segundo?

O ministro rangeu os dentes.

- Apolo - grunhiu.

O deus do mar encolheu os ombros.

- Também possuo uma mesa de Conselho própria - sorriu.

Hermes estreitou os olhos para ele:

- Cuidado com as águas que escolhes para nadar, peixe... cuidado - ameaçou, antes de empurrar Poseidon para um lado e caminhar tempestuosamente para fora do Salão.

Quando já estava quase cruzando a porta de marfim da saída, Poseidon gritou de longe.

- Seu mundo apenas começou a se partir, Hermes. Apenas começou.

O deus olhou para ele desconfiado, enquanto Poseidon continuava falando:

- Ouvi dizer que havia enviado Luke Castellan para uma caçada, e achei demasiado injusto, afinal, é hora de pais encontrarem seus filhos, não acha?

Hermes empalideceu.

- Não - murmurou. - May disse que ele ficaria dias... dia fora, meses... se fosse preciso, mas...

A mão do ministro se contorcia sem que ele ao menos percebesse, como uma atitude já muito comum. O anel parecia incomodar-lhe de repente, mas ele não o tirava.

- Pai! - a voz de Luke vinha gritando pelos corredores. Poseidon sorriu. Era tarde demais.

O olhar de Hermes fuzilou por segundos o deus do mar, até ouvir Luke adentrar ao Salão.

- Pai, o que houve? O que... - o olhar azul do menino parou em Poseidon, com um ar desconfiado. Hermes voltou-se para ele, mas foi impedido de falar.

- Não é maravilhoso encontrarmos nossos filhos, Hermes? Eu encontro Percy, e você encontra este belo jovem, Luke.

As sobrancelhas de Luke franziram-se.

- Mas Percy não é um... - ele arregalou os olhos, e fitou Hermes assustado. Parecia que, em sua cabeça, ele começava a ligar os pontos.

Poseidon aproximou-se de ambos a passos lentos e despreocupados.

- Devo dizer mais alguma coisa... - perguntou a Hermes - ...ou você mesmo se encarrega de reclamá-lo?

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Rachel inspirou profundamente antes de colocar a capa pela segunda vez. Agora, olhou para si própria e nada viu. Tentou encarar o fato como se este fosse completamente normal, antes de se aventurar para dentro das masmorras outra vez.

Teve de lutar contra o impulso de achar que alguém a via, e aprender a segurar firmemente o capuz de sua capa para que a invisibilidade não se desfizesse. Sua surpresa, no entanto, foi chegar até a entrada das masmorras e não encontrar ninguém.

Onde estão?, murmurou para si mesma, começando a ficar nervosa. Apolo fora muito claro quando disse que todos os segundos eram preciosos. Colocando os dedos nas têmporas, fez o possível para deixar os pensamentos em ordem. Deveria haver um motivo para que não estivessem mais ali. Fechou os olhos para tentar imaginar o ocorrido... e os abriu de repente: o julgamento.

Haveria um, não existiam dúvidas sobre isso. Percy tinha sido mandado para falar com o Conselho. Talvez arrumariam algum modo de fazer a população ver o grupo meio-sangue. Sensacionalismo; era justamente o que precisavam. Segurando as saias invisíveis, Rachel correu o máximo possível, dando a volta no castelo e se dirigindo para onde esperava encontrar todos reunidos: o Pátio.

Com um suspiro de alívio, ao alcançar o lugar, enxergou os jovens amarrados uns aos outros e cercados por soldados. Para o plano que Rachel arquitetara, talvez o grupo fosse um pouco pequeno demais, mas... mas ela não tinha escolha. Caminhou até eles, repetindo a si mesma que ninguém a estava vendo. Seu coração quase parou quando um dos guardas olhou exatamente em sua direção; segundos depois, ele fungou e voltou a olhar para o outro lado.

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Ficando nas pontas dos pés para enxergar sobre todos, Rachel procurou com o olhar por Annabeth. Não a viu. Em uma súbita coragem, ela correu para o meio de todos. Como os soldados faziam patrulha um pouco distantes do grupo, não perceberam quando ela baixou o capuz e apareceu.

Uma das crianças percebeu sua presença e arregalou os olhos, assustada. Rachel apressou-se em colocar uma das mãos na boca da menininha antes que ela gritasse.

- Por favor, por favor, não grite! - sussurrou Rachel, fechando os olhos. - Por fav...

- Quem é você? - uma garota musculosa e de cabelos escuros indagou, numa profunda desconfiança.

Todos os meio-sangues voltaram-se para ela, enquanto a menininha em seus braços ficava ainda mais assustada.

- Ei vocês, calem essas bocas - um dos guardas gritou para o grupo. Por sorte, ele não viu Rachel.

A garota rolou os olhos e voltou a olhar para Rachel acusadoramente.

- Fiz uma pergunta, garota vermelha - agora ela falava um pouco mais baixo, mas ainda um tanto estúpida - quem é você? Definitivamente, não é uma de nós.

Rachel inspirou profundamente.

- Meu nome é Rachel Elizabeth Dare, sou prima do príncipe, Perseus - respondeu, esperando que a citação do nome de Percy tivesse algum valor.

Os semideuses se entreolharam por alguns segundos. Ao contrário do que ela previra, o nome de Percy fez com que todos parecessem ainda mais irritados com ela.

- Ela é uma traidora! - alguém falou de repente entre eles. - Assim como o primo, ninguém percebe?

- Quieto, idiota - ralhou a menina forte. - Quer que os guardas cortem sua língua? Eu não me importaria; seria um favor.

O silêncio foi imediato. Rachel abria a boca para argumentar, quando foi interrompida:

- Você pensa o quê? - a garota lhe perguntava. - Que Perseus é bem vindo aqui? O príncipe é uma enganação, um traidor. Eu disse desde o começo para Quíron, mas aquele centauro está mais velho do que pensa. Seu priminho querido nos arrastou pra essa armadilha, e então o que dirá de sua família? Você é uma mortal tola, que acha que vai nos enganar mais uma vez.

Rachel soltou a garotinha e começou a gesticular.

- Não, não! Eu só preciso... preciso falar com Annabeth - pediu ela. - Não vim enganar a ninguém, vim tentar salvá-los.

- Clarisse, espere - um garoto loiro intrometeu-se, abrindo caminho para chegar até onde Rachel estava.

A menina musculosa pareceu irritar-se.

- Já não disse para fazerem silêncio?!

- Falarei no volume que preferir, se me deixar que fale, Clarisse - o menino rebateu. Clarisse ficou sem o que dizer por um ou dois segundos, e então resmungou e permitiu ao menino que desse um passo à frente.

O garoto lembrava vagamente Annabeth, e tinha os mesmos olhos cinzas e a mesma língua afiada. Rachel concluiu que eram, logicamente, irmãos.

- Você é Rachel Dare - o garoto disse, e Rachel afirmou com um movimento de cabeça. - Annabeth nos falou de você. Ajudou-a muito; disse-nos que você é confiável. Por favor, diga-me que Annabeth nos disse a verdade.

Rachel observou os rostos estranhos dos jovens, pensando nas execuções que já havia presenciado. Tentava compreender a desconfiança daqueles semideuses, e, dizendo a si mesma que estava fazendo a coisa certa, assentiu.

- Conheci Annabeth sem saber que ela era uma meio-sangue, e a tive como amiga - contou. - Quero ajudá-la até o fim, pois sei que merece. Não sou uma semideusa, mas isso não me faz mais cruel ou menos corajosa. Espero que confiem em mim, assim como aprendi a confiar em vocês.

A tensão no ar passou a dar lugar a uma sensação de conforto e amizade. O grupo olhou para Clarisse, esperando sua reação. A menina encarou Rachel, quase tentando arrancar sua cabeça apenas com o olhar, mas deixou os ombros caírem. Contrariada, disse:

- Você não seria tão dissimulada assim, para nos dizer mentiras. E Richard não teria tanta coragem de me enfrentar se soubesse que você não era confiável. Então... mordeu o lábio, como se fosse dizer algo difícil - ...é melhor que não saia da linha, ruiva.

- Não irei confirmou Rachel, começando a sorrir outra vez. Então, algo lhe ocorreu: - É por isso que preciso encontrar Annabeth. Sei que vocês ainda acreditam mais nela do que em mim. Ela vai me ajudar a planejar a fuça que precisamos. Onde ela está?

O grupo calou-se. Rachel arqueou uma sobrancelha.

- Por que ela não está aqui? O que aconteceu com Annabeth?

- Fritz a levou - respondeu Clarisse, grossa. A menina de cabelos escuros parecia sentir-se impotente, com as correntes nos pulsos.

- Fritz?! Rachel deixou escapar. Um soldado ouviu, e ficou instantaneamente intrigado. Percebendo que ele se aproximava, Rachel automaticamente levou as mãos ao capuz, quase vestindo-o de novo.

- Eu vou atrás dela - anunciou. - Alguém imagina onde ela esteja?

- Cássia saberia - uma jovem disse, depois de muito tempo calada, atrás de outros semideuses. - Cássia escapou daqui duas vezes, conseguiria escapar uma terceira.

- Quem é Cássia? - perguntou Rachel, não conseguindo enxergar sua interlocutora.

- Uma filha de Hefesto um tanto curiosa - a jovem continuou. - Era muito feia, mas muito sagaz. Infelizmente, ela não resistiu dessa vez. Os soldados a abandonaram no meio do caminho entre o Acampamento e o Reino. Ela desmaiou no trajeto, e ninguém voltou para buscá-la.

- E você sabe de tudo isso - disse Rachel, e não era uma pergunta.

A jovem acenou com a cabeça.

- Ela costumava gabar-se com isso sempre que brigávamos. Era uma estúpida, mas não nego que faz falta agora.

- E ninguém mais pode ir no lugar dela comigo?

Nenhum meio-sangue se dispôs. Rachel observou o grupo tristemente, mas, ao enxergar o guarda reunido com outros e se preparando para vir checar os prisioneiros, ela balançou a cabeça, determinada.

- Então eu vou - disse, como uma despedida.

- Espere! - a jovem gritou. Rachel virou-se em sua direção, e agora podia vê-la com clareza. Era uma moça muito bela.

- Sim? - Rachel pediu, com pressa visível.

- Eu vou com você - a menina disse, e, quando sorriu timidamente, seus olhos puxados quase se fecharam.