Capítulo Dois

Aurora decidiu não ir à escola naquele dia. Ao invés disso, voltou para o Orfanato, usando um caminho alternativo, é claro. Não queria correr o mínimo risco de encontrar aquele homem novamente. O caderno estava jogado dentro de sua mochila, que agora parecia pesar uns cem quilos. Todos perguntaram a ela o que havia acontecido, mas ela apenas ignorou e se trancou em seu quarto. Tinha muito que pensar. E, mesmo não querendo, ela estava curiosa pra saber a bobagem que estava escrita ali, naquele caderno que nem de longe parecia inofensivo. Sentou em sua cama, com o caderno a sua frente, e abriu na primeira página.

Como havia percebido anteriormente, ele realmente estava bem velho (era feito com pergaminho, por mais estranho que parecesse ser) e ela tomou um cuidado excessivo para não tirar nenhuma página sem querer. O caderno também estava um tanto empoeirado, mas nada disso a fez desistir. Já estava ali mesmo, porque não ler? Assim dizia uma página:

Junius.

Pela primeira vez, pude senti-la dentro de mim, dando seus pequenos chutes. Uma sensação de felicidade que não tem tamanho. É tudo tão novo pra mim... Seu nome será Aurora. Com certeza será uma menina. Uma linda menina. Tenho sonhado tanto com ela... Desde o momento em que tivemos certeza, não aguento de vontade de segurá-la em meus braços... Como pode existir um amor tão grande assim? Acredito que nem com Robert tenho um amor tão puro e incondicional. Ah, Robert... Ele também está tão feliz! Está acontecendo tudo como eu pedi aos céus. Pelo menos em partes. Mas não quero me preocupar agora. Teremos anos para pensar nisso. Depois de tantas batalhas difíceis e tantas outras que virão... Finalmente encontramos paz nesse amor tão lindo.”

Lendo, sua raiva foi crescendo e a consumindo. Como alguém poderia ser tão cruel ao ponto de brincar com os sentimentos de uma pessoa órfã? Que nunca teve um abraço, um carinho ou um cuidado dos pais. Sem se controlar, ela pegou seu livro de cabeceira e o jogou contra a parede, em uma tentativa frustrada de descontar sua raiva. Jogar um livro não era o suficiente. Tudo que era queria era acabar com aquele homem. Algo nas palavras daquela passagem a chamaram atenção: “Pelo menos em partes. Mas não quero me preocupar agora. Teremos anos para pensar nisso.” Mesmo nesse misto de sensações, ela voltou sua atenção ao diário. Voltou algumas passagens, procurando uma resposta para a dúvida que surgia em sua mente e parou em outra página:

Januarius.

Hoje Akira nos chamou na sala de reuniões dos Guias. Parecia algo importante e sigiloso e quando descobrimos... Realmente era. Akira pediu um favor a mim e a Robert. Diante a guerra inacabável que temos assistido do Rei Dimitri com seu irmão Dominic, os Guias tiveram que pensar em algo para intervir. Muitas vidas estavam sendo perdidas, seja elas humanas ou criaturas mágicas, e logo aquilo iria começar a afetar Íria de uma forma incalculável. Por sermos o único casal com todas as habilidades que eles chamam de extraordinárias, querem que geremos um filho. Um filho que será abençoado (e amaldiçoado ao mesmo tempo, a meu ver) para que seja o mensageiro da paz a Íria. Em outras palavras: que seja o salvador. Dissemos que iríamos pensar, afinal, seria nosso primogênito. Robert quer aceitar imediatamente. Para ele, seria uma honra ter nosso filho como salvador. Mas como posso gerar uma vida sabendo que essa mesma vida estará em perigo a todo o momento?

Akira nos disse que irá treiná-lo para que seja apto ao dever. Que ele poderá ser um dos homens mais poderosos entre nós. Nada disso me parece bom, nada disso me parece valer a pena. Vejo-me em um túnel sem saída. Temo não ter escapatória.”

Aurora não sabia o que pensar. Aquele diário apresentava tantas informações conflituosas. Lendo a garota não conseguia parar de pensar que, seja aquela história verdade ou não, aquela mulher precisava de ajuda. O tal de Akira não parecia ser um homem bom ao olhar de Aurora. Por um segundo ela olhou para o horizonte e balançou a cabeça em negativa. Nada era real. Estava pensando demais e aquilo era ruim.

Decidiu parar de ler. Folheou rapidamente antes de fechá-lo, porém, sua curiosidade a atiçou. Mais uma vez.

Augustus.

Tempos ruins novamente. Lá fora só há medo, desespero, pavor. Todo o povo estava em alerta para o que estava por vir. Talvez mais guerras, talvez divisões territoriais, talvez exclusões... Ninguém sabe. O único fato que sabemos é que Dimitri e Dominic estão se desentendendo mais uma vez. A história irá se repetir... E o povo entrará em crise novamente. Não consigo imaginar isso. Como poderemos criar Aurora nessas condições? O medo vem me consumindo há dias... Robert tenta esconder de mim, mas sei que está com os mesmos pensamentos.

A Aliança tenta nos dizer que tudo irá ficar bem, que logo nossa pequena irá nos ajudar. Mas não sei se consigo crer nessas palavras. Callum está cada vez mais perto de descobrir nosso esconderijo, e se isso acontecer, nunca mais estaremos seguros. Tento ficar calma, mas não consigo nem dormir em paz, sem ter sonhos horríveis. Preciso me tranquilizar por Aurora, mas... Talvez devesse visitar Olga.”

Uma história sem pé, nem cabeça; informações que não se completam, pensamentos inacabados. Bernardo só poderia ser mesmo um babaca por ter escrito tudo aquilo. Ainda havia várias páginas a ver, mas a paciência da garota já havia acabado. Deitou-se na cama, suspirando e tentando esquecer-se de tudo. Era difícil. Bernardo havia mexido com algo que há muito tempo ela não pensava, e o problema de pensar é que não conseguia mais parar. Durante anos ela tentava entender porque seus pais a abandonaram, porque sua família toda a abandonou, o que os havia levado a fazer algo tão cruel... Aurora não acreditava mais na família. Aliás, pensava em nunca formar uma. Perdida em seus pensamentos, sua respiração foi ficando mais suave, mais leve, conforme o sono ia chegando de mansinho, a dominando. Ela estava agora entrando em outro mundo, o mundo dos sonhos. O único lugar em que realmente respirava tranquila.

Aurora. – uma voz a chamou ao longe. Aurora olhou em volta e se viu rodeada de árvores, folhas e plantas. Era uma bela floresta. Tudo era bem verde e ao longe se podia ouvir o leve som de água, provavelmente vindo de uma cachoeira. Ela tentava captar todos os detalhes. Os galhos das árvores, a maciez da grama, as pétalas das flores. O ar também era melhor de se respirar. – Aurora.

A voz novamente. Aurora começou a caminhar, procurando o ponto do qual vinha a voz. Era uma voz feminina, calma, angelical. E até um pouco familiar. O som da floresta era magnífico. Pássaros cantando, corujas, o som do vento balançando as folhas... Ela poderia ficar por aqui horas e horas, principalmente com um bom livro pra ler. Todos aqueles pensamentos e sonhos a distraíram do foco, e a voz chamou novamente. Por fim, Aurora encontrou uma clareira. Não era uma clareira comum; no seu centro havia um circulo de pedra, obra do homem, e lá estava a dona da voz que a chamava. A garota se aproximou, com passos lentos e desconfiados.

– Olá. – Aurora disse, sem saber o que mais poderia dizer.

– Olá, Aurora. Estive aguardando muito tempo por esse momento, se me permite dizer. – a mulher permanecia com uma voz calma, serena. Ela era alta, muito magra e extremamente branca. Seus cabelos longos até a cintura eram negros, assim como seus olhos. Vestia um belo vestido longo, de um tom forte de azul. Ela era linda. Seus olhos e seu sorriso transmitiam a mais gostosa tranquilidade.

– Bom... Não sei exatamente o que eu poderia dizer... Você não é a primeira pessoa que vem dizer que aguardou tanto tempo para me ver ou que me conhece há tantos anos. – Aurora tentou não ser rude, mas pensou que talvez não tivesse obtido sucesso. Mas, para a sua surpresa, a mulher riu, não de um modo sarcástico, mas de um modo sincero e divertido.

– Perdoe-nos por isso. É difícil nos aproximarmos e explicarmos de maneira racional pra você, ou de maneira que você não fuja. Mas não a culpo. Aliás, teremos tempo ainda para que você entenda tudo.

– Quem é você? Porque está aqui?

– Meu nome é Faith. Venho do reino distante e preciso te pedir um grande favor, Aurora. – a garota não mostrou reação nenhuma e tampouco falou algo. Então, Faith prosseguiu: – Antes de qualquer coisa, tudo isso é um sonho. Você não está aqui realmente comigo. Mas o que irei lhe dizer é muito real. Hoje você recebeu uma visita, digamos assim, de alguém muito importante. Creio que ele deve ter se apresentado.

– Não sei do que está falando. – tudo que Aurora queria era esquecer aquele homem, e, agora, esse sonho maluco. Aliás, rezava mentalmente para que acordasse. Mas ela parecia estar em um mundo tão real... E era extremamente estranho que alguém lhe dissesse que estava sonhando. Normalmente coisas assim não aconteciam. Mas, o que na sua vida estava normal nas últimas horas?!

– Você sabe do que estou falando. Bernardo te encontrou. E te entregou o diário de Annabeth. – Faith deu uma pausa, e Aurora não sabia se estava nervosa ou se era apenas para causar uma situação dramática. – Esse diário é muito importante, Aurora. Ele pertencia à sua mãe e tem informações confidenciais que você deve saber. Informações sobre nossa história; sua história. Você precisa acreditar em nós, Aurora. Você é nossa esperança.

A garota estava mais confusa do que nunca. Cada vez mais parecia que a situação saía do controle, escapava por entre seus dedos. Sentia que tudo não se passava de uma brincadeira de mau gosto que sua própria mente tinha criado. Talvez estivesse ficando louca. Não poderia ser possível que tudo que sabia da sua vida eram, na verdade, mentiras.

– Se isso é um sonho... Eu quero acordar.

– Este sonho está enfeitiçado, Aurora. Na verdade, o diário estava com um encantamento para que você dormisse e eu pudesse passar meu recado a você. Novamente, acredite em nós. Dê uma chance a nós e a você mesma. Você merece conhecer sua história.

– Eu já conheço a minha história, ela não é nada bonita. Mas não quero mudá-la. Cresci sabendo exatamente quem eu sou: uma órfã. Nada pode mudar isso. Hoje, me tornei uma pessoa forte por todos meus erros, tropeços e por essa minha história. Não vou tornar a ver nenhum de vocês novamente. Agora, entrando na brincadeira de vocês, me tire dessa porcaria de encantamento!

– Sinto muito por tudo, Aurora. Mas você irá entender. Lembre-se... Aquele diário contém informações importantes. Leia. Nem que seja por diversão. Deixarei você ir agora... Mas te darei uma prova de que tudo isso é verdade. Na hora em que acordar, verá uma rosa ao seu lado. Uma rosa azul como essa. – Faith disse ao materializar uma rosa linda, do mais belo tom de azul, em uma de suas mãos. – Tenha fé.

Aurora se sentou bruscamente na cama. Estava sem fôlego, com a testa molhada de suor e muito confusa. Havia caído no sono após ler algumas passagens do caderno. Respirou fundo e relaxou, lembrando a si mesma de que tudo não passava de um sonho, um terrível pesadelo, na verdade. Nada daquilo era real. Iria esquecer e seguir sua vida, afinal, logo na semana seguinte já estaria indo embora do orfanato. A garota virou-se para sair da cama, mas foi impedida ao sentir algo embaixo de sua perna. Desviou e pegou o objeto que sentiu. Uma flor. Na realidade... Uma rosa azul.