À beira mar

Combina com seus olhos


Quando acordei, eu me senti incrivelmente desorientada, mas descansada. Levantei-me com cuidado, um pouco tonta, e procurei meu celular. A tela me informava que eram 4h17 da tarde, e eu fui até a sala para verificar o relógio na parede, não acreditando na informação. Mas aqueles ponteiros antigos me diziam a mesma coisa e eu ri alto.

— Uma ótima promessa, devo admitir. – falei, pensando nos remédios mágicos que Sarah me dera.

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Verifiquei e respondi todas as mensagens em meu celular, contando brevemente para Carol como minha estadia estava sendo, fazendo questão de dizer que eu finalmente conseguira dormir e me sentia renovada como nunca me sentira antes. Tenho certeza de que isso a deixaria mais tranquila e talvez até feliz por mim. No final, vi uma mensagem de Sarah que dizia: “não me espere para o jantar”. Eu não estava disposta a cozinhar nada, então achei melhor comprar alguma coisa.

Troquei de roupa e coloquei minha echarpe novamente, intrigada com o quão natural isso me parecia agora. Eu não deveria me acostumar com este tipo de coisa, de modo algum. Arranquei a echarpe e procurei minha maleta de maquiagem, usando um pouco de base e corretivo para esconder as áreas em que os tons de roxo custavam a desaparecer. No geral, eu estava bem melhor, o que me animava. Talvez, dentro de alguns dias, eu já poderia queimar aquela maldita echarpe.

Tranquei a porta e fui até o meu carro, acendendo um cigarro e baixando o vidro. A noite estava agradável, quente como uma clássica noite de verão, mas amenizada pela brisa do mar. Eu dirigia em silêncio, sem música ou algum radialista aleatório lendo cartas românticas anônimas com a voz de quem preferia estar em um bar bebendo uma cerveja. A estrada se estendia à minha frente, quase vazia, e eu apreciei o trânsito do lugar. Então, rápido como um raio, uma memória me atingiu.

— Aquela echarpe foi um presente do Peter. – falei para mim mesma.

Eu ri, um riso forçado e cheio de raiva, imaginando-o escolhendo o presente em alguma loja qualquer que estivesse no caminhando. Uma maldita echarpe vermelha. Ele disse que combinava com os meus olhos castanhos, e eu lembro de ignorar aquela afirmação. Alguém que usava a camisa para dentro da bermuda em um almoço de domingo, com certeza não sabia combinar cores. Mas agora, com a fumaça do cigarro preenchendo meus pulmões e a cabeça quase tão vazia quanto a estrada, eu conseguia lembrar claramente do dia em que ele me bateu. Eu me lembrava da sensação de completo desespero ao sentir suas mãos em meu pescoço, apertando cada vez mais, impedindo-me de respirar. No dia seguinte, meus olhos estavam vermelhos, como se eu tivesse chorado a noite inteira, mesmo que eu tenha me proibido de derramar uma lágrima sequer.

O desgraçado tinha razão. Ela realmente combinava com os meus olhos.

Joguei o cigarro pela janela e, por instinto, olhei pelo retrovisor. Mas o que eu vi não foram carros ou uma estrada vazia, nada do que eu esperava ver. Ali, parcialmente escondido pela escuridão da noite, ocasionalmente iluminado pelos postes de luz na rua, estava Peter. Seus olhos fixos em mim, o mesmo tom de maldade que eu vi naquela noite e um sorriso debochado e sádico que ele exibia quando queria dizer “eu te avisei”.

Eu gritei, atrapalhando-me com volante e perdendo o controle do veículo. Ele rodou na pista, eu fui sacudida por não estar usando cinto de segurança e acabei batendo a cabeça em algum lugar. Quando o carro parou, eu ainda estava gritando, abrindo a porta o mais rápido que eu consegui, saindo do carro em completo desespero. Eu olhei para os dois lados, tentando decidir em alguns poucos segundos para onde correr. Um carro parou e um motorista assustado abriu a porta. Eu corri na direção dele.

— Você está bem, moça?

— Tem alguém no meu carro! – eu gritava, tentando fazer com que ele voltasse para dentro do carro e me levasse para longe dali. – Tem alguém lá! Vamos embora, por favor! Ele está lá dentro!

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— Calma, moça. Eu vou olhar. – ele disse, segurando meus braços, tentando me controlar. Eu não percebi que estava chorando este tempo todo. – Fique calma.

— Por favor, não vá... – eu continuava chorando enquanto ele se aproximava lentamente do carro, abrindo a porta traseira.

— Não tem ninguém aqui, moça. – ele falou, ainda olhando para dentro do carro e depois para mim. – O carro está vazio.

— Como assim? Não está! Ele estava aí dentro! – eu gritei, ainda sem coragem de me aproximar do carro.

— Não tem ninguém, estou te dizendo. Venha ver. – ele me encorajou, mas eu mantive meus pés firmes no chão. – Quem estava aqui?

Eu parei imediatamente, passei alguns segundos completamente imóvel, o ar quase não entrava em meus pulmões e as lágrimas pareciam suspensas como em uma cena congelada na tela de uma televisão defeituosa. Eu não era capaz de responder a pergunta dele, pois pela primeira vez eu pensei sobre o que estava prestes a dizer. Peter não podia estar em meu carro, surgindo do nada como uma brisa que se materializa no banco traseiro. ”Peter está morto, Jane”, pensei comigo mesma. E mesmo que eu não estivesse presente no seu enterro, sabia que ele não poderia estar ali.

Aproximei-me com cuidado, olhei para os bancos, até embaixo deles, abri o porta-malas do carro e, em um segundo de completo desespero e medo, olhei até mesmo embaixo do carro. Não havia nada nem ninguém ali. Nem mesmo o menor sinal de Peter tenha estado no banco traseiro. Olhei para o campo aberto que se estendia ao lado da estrada, sabendo que, se ele tivesse saído do carro ao mesmo tempo que eu, seria possível vê-lo fugindo por ali.

— Você está bem, moça? – o homem perguntou, me trazendo de volta para a realidade.

— Acho que sim. – falei, ainda procurando discretamente por algum sinal. – Acho que só me assustei com alguma coisa.

— Você tem alguém para quem possa ligar? Alguém que possa buscá-la?

— Não é necessário.

— Tem certeza? Você quase capotou seu carro por causa de um susto. – ele parecia genuinamente preocupado.

— Está tudo bem. – eu finalmente olhei para ele. – Eu não tenho dormido muito ultimamente, deve ser isso.

— Talvez você devesse ir para o hospital. – ele disse, subitamente alarmado. – Você está sangrando.

Levei a mão esquerda para o ponto dolorido da minha cabeça, onde eu havia batido durante o caos, e vi o sangue em meus dedos. Não parecia grave, então nem mesmo considerei ir para o hospital.

— Não é nada demais. – falei.

— Pode ser grave, sim, moça. É melhor um médico dar uma olhada nisso.

— Eu tenho uma médica em casa, vou ficar bem. – respondi, enfática.

— Para onde você está indo? – ele desistiu de argumentar.

— Acho que vou voltar para casa.

— Eu vou segui-la até lá, tudo bem? Só para ter certeza de que você vai chegar bem. – ele falou, já seguindo para o seu carro.

— Tudo bem. Obrigada. Só... me dê um minuto. – ele assentiu e foi para o carro, buscando seu celular.

Eu fui até o carro, sentando-me no banco do motorista, mas deixando a porta aberta e meu pé esquerdo tocando o chão, minhas mãos tremendo mais do que eu pensei ser possível. Acender um cigarro foi uma tarefa milhares de vezes mais difícil do que de costume, mas eu consegui manter a chama firme por tempo suficiente. Concentrei-me na realidade, tentando captar sensações que me traria de volta ao normal. A fumaça do cigarro em meus pulmões, a nicotina correndo em minhas veias, o ar ameno da noite, o sangue em meus dedos e homem no carro atrás do meu, telefonando para sua esposa e avisando que provavelmente iria se atrasar para o jantar, pois uma mulher maluca quase capotou seu carro porque seu assustou com uma sombra, e ela está sangrando e não quer ir para o hospital, e ele é um homem bom demais para deixá-la sozinha e conviver consigo mesmo caso aconteça alguma coisa. Até mesmo tirei o sapato por um segundo, sentindo o asfalto em meu pé. “Isso é real”, eu pensei comigo mesma. Eu só precisava continuar repetindo isso até acreditar nestas palavras.

Fechei a porta do carro e voltei para casa, dirigindo rápido demais, tentando manter minha atenção na estrada, mas sempre olhando para os faróis brilhantes que me seguiam. Quando cheguei, sai do carro com uma pressa agoniada, acenando para o motorista que buzinou antes de continuar seu caminho. Demorei alguns segundos além do necessário para abrir a porta, um resquício do tremor ainda deixando meus dedos como bêbados. Lancei um último olhar para o meu carro e entrei em casa.

— Aí está você! – ouvi Sarah dizer da cozinha. – Tudo bem?

— Sim, tudo bem. – falei alto o suficiente para que ela me ouvisse, enquanto eu tirava meus sapatos . – Como foi o trabalho?

— Árduo, como sempre. Mas gratificante, como sempre. – ela dizia, os sons de taças e de uma garrafa chegando até mim. ­– Aceita uma taça de vinho?

— Sim, por favor.

— Espero que não tenha jantado ainda. – ela falou, de costas para mim, enquanto eu entrava na cozinha. – Eu trouxe comida.

— Ótimo. Eu não comi nada ainda. – sentei-me pesadamente na cadeira, suspirando.

— Jane, o que aconteceu com você? – ela gritou, alarmada, ao virar em minha direção e ver o sangue em meu rosto.

— Eu perdi o controle do carro e bati a cabeça. – peguei a taça da mão dela e bebi todo o conteúdo em um único gole. – Não foi nada.

— Deixe-me ver.

Sarah apressou em buscar sua maleta de primeiros socorros e começar a examinar minha cabeça. Eu sentei-me próxima da janela, respirando o ar noturno, a taça de vinho ao meu lado, fumando um cigarro enquanto ela fazia um curativo. As habilidades dela com a gaze não eram nem um pouco impressionantes, mas com certeza era bem melhores do que as minhas. Enquanto isso, eu tentava explicar o que tinha acontecido. Quando ela perguntou, eu pensei em dizer a verdade, mas eu sabia que isso me faria parecer louca, então disse que um cachorro atravessou meu caminho e eu tentei desviar. “Esses pessoas idiotas com seus malditos cachorros”, ela falou, irritada com este hábito da vizinhança deixá-los soltos.

— Você vai ficar bem. – Sarah disse, ao terminar o curativo.

— Obrigada, Sarah. – eu sorri para ela.

— Jantar?