O aniversário de dezessete anos de Rori era uma das lembranças mais felizes de Anne-Marie.

Claro, não era uma comparação justa; quando Rori completara dezessete anos, sua irmã mais velha ainda estava viva, e tudo estava bem, e a vida dele não havia ido pelos ares ainda. Anne-Marie imaginava que esse contraste tivesse manchado a memória para a amiga, mas ela ainda se lembrava daquela noite com carinho.

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Fora a própria Rori quem organizara a festa, e havia um número bem maior de convidados; antes de começar a descer ao fundo do poço, Rori era a própria definição de “a alma da festa”, e todos no único colégio do Vilarejo a adoravam. Ela sempre fora intensa, mas, durante a maior parte de sua adolescência, isso se traduzira em uma atitude apaixonada, ao invés de cruel, e seu magnetismo era inegável. O pai de Anne-Marie, que era linguista, dizia que a personalidade de Rori combinava bem com seu nome, que significava “brilhante” em irlandês.

O magnetismo natural de Rori não atraía só amigos, mas também pretendentes, e foi sobre isso que elas conversaram naquela noite, quando Anne-Marie chegou mais cedo, como de costume, e subiu ao quarto da amiga para esperá-la terminar de se arrumar.

— Eu pensei em não convidar ele, mas sei lá – Rori estava dizendo, enquanto finalizava o delineador. A roupa para aquela festa era muito mais a cara dela: uma camiseta preta decotada, shorts e meia-arrastão. Ela ainda usava o cabelo longo, caindo sobre os ombros em uma cascata escura e pesada, apesar de ter a mesma franja irregular. Afinal, dezessete anos não era uma ocasião tão importante quanto dezoito. – Achei que ele fosse vir perguntar por quê, aí eu ia ter que inventar uma desculpa, e, bem, mesmo se eu der o fora nele, ele ainda pode se divertir, né?

Anne-Marie não disse nada. Mesmo naquela época, ela já havia notado que ouvir sobre a possibilidade de Rori se envolver com outras pessoas fazia com que seu coração apertasse de um jeito esquisito. Ela já repensara a questão várias vezes, mas sempre chegava à conclusão de que não podia falar sobre isso com a amiga. O que elas tinham era bom demais para arriscar por uma coisa que ela ainda não sabia muito bem o que era.

— Além disso, não é como se ele não fosse gente boa – continuou Rori, guardando o delineador e analisando o próprio reflexo no espelho. – Ele até é. Essa não é a questão.

— Por que você não fica com ele, então? – perguntou Anne-Marie, em voz baixa. Ela desviou o olhar quando Rori olhou para seu rosto através do espelho. Sabia que não dava para esconder muita coisa de sua melhor amiga.

Por fim, Rori deu de ombros e voltou a atenção para a própria face, finalizando a maquiagem com um batom roxo escuro. Como sempre, ela e Anne-Marie faziam um contraste e tanto; a maioria das pessoas na escola não conseguia entender como elas haviam se tornado tão próximas. A verdade era que fazia tempo demais para que a própria Anne-Marie lembrasse.

— Ele nem me conhece – disse Rori. – Parece idiota, mas eu não gosto da ideia de ficar com alguém que não me conhece. Quer dizer, a gente saiu algumas vezes e conversa na escola e tal tal tal, mas não é a mesma coisa, sabe? Ele não me vê de verdade.

O ele em questão era um rapaz um ano mais velho que elas, com quem Rori estivera conversando nas últimas semanas. Ele era um cara legal, e Anne-Marie o odiava por isso; se ele fosse uma má pessoa, ela teria uma boa justificativa para sentir seu estômago queimar de raiva sempre que ele se aproximava de Rori.

— Acho que é pra isso que as pessoas ficam umas com as outras – disse Anne-Marie, cuja única experiência romântica fora um beijo com uma garota comum dois anos atrás. – Pra se conhecer melhor.

Rori suspirou dramaticamente.

— Eu preciso que ele conheça minha personalidade, Annie, não minha boca – Ela se deixou cair na cama, ao lado da amiga. – E, até agora, a única pessoa que me conhece de verdade é você.

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Anne-Marie não soube como responder àquela declaração. Aquilo fez com que seu peito parecesse muito cheio – se era de sentimentos fraternais, sentimentos românticos, ou só de coisas que ela queria dizer, ela não saberia. Felizmente, Rori não parecia estar esperando uma resposta; ela ficou em silêncio por um instante, então se levantou e estendeu uma mão para a amiga.

— Vem, o pessoal já deve estar chegando.

Elas deixaram o quarto e desceram as escadas de mãos dadas.

Durante o resto da noite, Anne-Marie não teve tempo para analisar demais aquela conversa, porque estava muito ocupada se divertindo. Rori não deu a menor bola para o tal garoto de quem havia falado; ela passou a noite inteira com as amigas, dançando, cantando a plenos pulmões e – muito embora Anne-Marie soubesse que aquele nunca fora o objetivo dela – sendo o centro das atenções com seu charme quase hipnótico.

Ela nunca parecera tão jovem, livre e despreocupada, uma garota com a vida toda pela frente e o mundo inteiro na palma das mãos, e aquilo refletia no humor de todos à sua volta, inclusive Anne-Marie. Ela não tinha como saber que, poucos meses mais tarde, sua melhor amiga se transformaria em alguém com manchas escuras sob os olhos, o peso do céu sobre os ombros e um desejo de morte mal escondido.

Ninguém poderia ter adivinhado o quanto Rori envelheceria no ano seguinte, mas isso nunca impediria nem Anne-Marie nem a própria Rori de se sentirem culpadas. Anne-Marie sabia que a amiga se perguntava como poderia ter salvado sua família; ela, por sua vez, não conseguia parar de pensar em como poderia ter salvado Rori.