Zohar

Perdendo o sono.


Quando eu achava que nada mais poderia me fazer perder o sono, aquela notícia me mostrou o contrário.

Quase um mês tinha se passado desde que Zohar tinha reencontrado sua mãe. E às vezes, quando no dia-a-dia ela se lembrava de Taehyung, não conseguia entender como que sua mãe tinha sido tão compreensiva com aquele seu acesso de choro por não ter recebido nenhuma ligação dele durante todo aquele tempo. A teoria que Aisha tinha formulado parecia fazer sentido: Assim como a guerra tinha deixado os traumas, a gentileza dele tinha deixado a saudade.

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Era estranho ouvir isso de sua mãe, principalmente quando ela disse que aquilo não tinha problema. Mas com o tempo Zohar percebeu que a compreensão da parte dela tinha a ajudado a colocar as coisas no lugar. Parou de se sentir idiota e reprimir o que sentia e passou a apreciar aquilo como um sentimento bom. Afinal, ele tinha salvado a vida dela e era natural que ela tivesse alguma afeição por ele.

Conforme os dias foram passando, naturalmente ela foi se esquecendo de tudo aquilo e voltando a se concentrar nas cosias que tinha que fazer. Tinha muitas coisas para mostrar à mãe e ainda tinha que fazer suas peças de artesanato para vender. Como imaginou, sua mãe e Suzan se deram muito bem, e isso foi um grande alívio. Aisha ainda não tinha aberto totalmente o coração para Sarah, mas ter feito amizade com Suzan tinha sido um grande passo. Uma hora ou outra ela ia começar a gostar de Sarah. Zohar tinha certeza disso.

As outras mulheres da ong também tinham recebido Aisha muito bem. Depois de todo aquele tempo convivendo com elas, Zohar já as considerava como amigas, embora fossem mais velhas. Por isso quando elas começaram a fazer amizade com Aisha, Zohar não imaginou lugar melhor no mundo onde poderia estar.

Estava tudo tão perfeito que Zohar não conseguia imaginar mais nada que pudesse fazer seus dias serem ainda melhores. Só o fato de ter sua mãe por perto, vê-la sorrir e sentir seus braços envolvendo seu corpo em um abraço apertado era o suficiente. Não precisava de mais nada.

Mesmo Suzan falava com frequência que ela sorria mais e estava mais radiante com a presença da mãe por ali. Isso ela também tinha ouvido da psicóloga e de Sarah, e por vezes achava aquilo engraçado. Como poderia ser diferente?

A situação entre elas só começou a ficar estranha quando Zohar incentivou Aisha a também participar das sessões com a psicóloga. Nas primeiras vezes Aisha recusou, dizendo que aquilo era desnecessário, que sabia cuidar de si mesma e que não precisava falar dos seus problemas com uma desconhecida. Mas Zohar não desistiu. Ela melhor do que ninguém sabia como aquilo tinha feito uma diferença para ela. E não era porque sua mãe era mais vivida que uma ajuda profissional seria desnecessária. Só depois de Zohar muito insistir e ouvir que a psicóloga era muito querida e realmente queria ajudar que ela acabou cedendo e indo. E a mudança começou a aparecer depois de algumas sessões. Ela sempre voltava mais pensativa, e logo os comentários positivos sobre a psicóloga começaram a aparecer.

Era um final de tarde de domingo quando Aisha apareceu na cozinha e disse que queria conversar com Zohar. Elas já tinham terminado de tomar café da tarde e Suzan tinha decidido ir dar uma caminhada.

Zohar deu a volta na casa e se dirigiu até à árvore. Estava descalço e a grama ainda quentinha pinicava seus pés. E assim que se sentou no balanço Aisha se aproximou e se sentou na grama.

—Filha, eu conversei com a Suzan... e com a psicóloga também.- disse ela simplesmente, atraindo a atenção de Zohar e a deixando em alerta.

A primeira coisa que passou pela cabeça e que a deixou um tanto nervosa foi sobre Taehyung. Lembrava-se perfeitamente de Suzan prometendo que não diria nada a Aisha sobre ele ter dormido ali e tudo o mais. Pensou também que Lauren era muito profissional para falar qualquer coisa que tinha contado durante as sessões para sua mãe. Mas quando Aisha falou novamente, Zohar sentiu a tensão em seus músculos.

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–Você sabe que não vamos poder ficar aqui para sempre, certo?

Zohar confirmou com um leve aceno de cabeça. Ela sabia melhor do que ninguém que não poderia ficar ali para sempre, mas sabia também que era extremamente ansiosa quanto ao futuro e que raras vezes conseguia pensar sobre aquilo com tranquilidade.

—Pois bem.- Aisha continuou. -Nós somos adultas e saudáveis demais para ficamos tanto tempo aqui com a Suzan e recebendo ajuda da ong. Essa nossa estadia está sendo muito boa e importante pra mim e principalmente para você, mas acho que deveríamos voltar para Londres, filha.- ela concluiu.

E ao ouvir aquilo Zohar sentiu uma vertigem que a fez calçar os pés no chão e parar de balançar.

—A capital é onde podemos encontrar as melhores oportunidades.- Aisha emendou imediatamente, tomando cuidado com as palavras, ao ver a reação da filha. -Você sabe disso. Ainda mais na nossa situação de refugiadas...

—Sim, eu sei.— Zohar falou secamente. –Mas eu não vou voltar pra lá.- disse com toda a firmeza, olhando seriamente nos olhos da mãe.

Aisha a observou por alguns segundos, decidindo se insistia naquilo ou se tocava no assunto mais tarde, e preferiu a segunda opção. O assunto tinha sido exposto e isso no momento era o que Aisha julgava ser importante. Tinha que dar tempo para Zohar pensar e remoer sobre aquilo antes de voltar a tocar no assunto, e dando o assunto por encerrado, se levantou para voltar para dentro de casa.

—Por que você não veio falar comigo sobre isso antes?- Zohar perguntou, sentindo o ressentimento crescer dentro do peito.

Aisha se virou e olhou para ela.

—Você sempre quer decidir as coisas por mim. Eu não vou voltar pra Londres.

—Filha, eu não tomei nenhuma decisão.- ela se aproximou de Zohar. -Eu só fiz uma proposta, nada mais que isso.

—Mas por que logo Londres?!

—Eu sei que Londres não trás boas lembranças. Eu sei disso. Mas a gente já teria trabalho e um lugar para morar.- Aisha respondeu com toda a calma. –A irmã da Lauren trabalha na embaixada americana em Londres e precisa de alguém para tomar conta da casa e da filha. E você poderia fazer a faculdade que você queria... Tudo é mais fácil e perto lá...

Zohar observou o rosto da mãe por alguns segundos e em seguida olhou para o chão. Sabia que sua mãe odiava ficar parada, sem ter um trabalho de verdade, sabia que lá se encontravam as melhores faculdades, mas não conseguia engolir a ideia de voltar para lá.

—Como eu disse, foi só uma sugestão.

Zohar permaneceu no balanço quando Aisha saiu. Ficou se embalando, indo e vindo o mais alto que conseguia, sentindo o vento no rosto. Sua atenção concentrava-se nas nuvens do céu, em tons de laranja e rosa que o pôr-do-sol proporcionava, e nas palavras que tinha ouvido de sua mãe. Voltar para Londres era como voltar para um dos pontos de parada do pesadelo que viveu desde que saiu da Síria. Não conseguia entender como sua mãe não achava aquilo absurdo. E se, e se apenas se, ela se encontrasse casualmente com Khalil? Como ele reagiria ao vê-la? Como ela reagiria?

—Não.- ela balançou a cabeça para os dois lados várias vezes, negando-se a concordar com aquilo. –Eu não vou voltar pra lá. Eu não consigo...

Queria simplesmente se esquecer de tudo o que tinha acontecido e tocar a vida em frente, mas não conseguia. Era como se uma corrente invisível a prendesse no chão, impedindo-a de seguir em frente. Odiava-se por isso. E nesse momento ela deu-se conta que precisava falar com Sarah o mais rápido possível.

Depois de um tempo refletindo naquilo Zohar saiu do balanço e voltou para dentro de casa. O sol já tinha se posto e estava começando a ficar escuro na rua. Ela entrou e foi direto para o telefone, discando o número tão conhecido de Sarah. Tinha que conversar com alguém sobre aquilo e sabia que, naquelas circunstâncias, Sarah seria a melhor pessoa para ouvir suas reclamações. Falaria também com Lauren, mas antes queria ter sua amiga por perto.

Zohar colocou o telefone no ouvido, ansiosa para que Sarah atendesse logo o celular. Mas depois de cinco toques Zohar soube que Sarah não estava com o celular por perto. Estava a ponto de desligar quando viu Aisha aparecer no topo da escada.

—Acho que tem um celular tocando no quarto da Sarah.

—Ah! Não acredito que ela não levou o celular!- Zohar colocou o telefone no ganho e correu escada acima até o quarto da amiga.

Ela abriu a porta e viu que o celular estava sobre a cama. Ela fechou os olhos e suspirou, sentindo-se frustrada.

—Ela não foi pra Londres? Vai ficar a semana inteira em sem o celular?

—Não sei.- Zohar respondeu, passando por Aisha e indo em direção ao quarto. –Ela foi na casa da Anna assistir uma premiação de não sei o que e depois ia direto pra faculdade. Não sei se vai voltar aqui só pra buscar o celular.

Zohar abriu a porta do guarda-roupa e pegou uma muda de roupa, decidida a tomar um banho de água fria para ver se assim conseguia pensar direito. Precisava colocar as coisas em ordem na sua cabeça para conseguir tomar uma decisão. Não conseguia aceitar a ideia de voltar para Londres, mas pensar em se limitar tanto por causa do que tinha acontecido parecia tão absurdo. Tinha que arrumar um jeito de se livrar daquilo.

Horas mais tarde Zohar estava dormindo profundamente quando de repente seus olhos se abriram na escuridão. Londres foi a primeira coisa que veio à mente. De um lado estava a faculdade que queria fazer e as oportunidades que poderiam se abrir a sua frente. Mas então a ideia de ver Khalil a aterrorizou. Automaticamente lembrou-se do dia do casamento, quando ele tentou beijá-la. E recordar aquilo fez Zohar se levantar da cama, odiando-se por ter lembrado daquilo. Ela olhou em volta, não fazendo ideia de que horas eram, e percebeu que o celular de Sarah começou a tocar no quarto ao lado.

Ela se levantou e abriu a porta com cuidado para não acordar a mãe e foi até lá, esperando que fosse Sarah ligando do celular de um conhecido para saber onde seu celular estava. Ela acendeu a luz do abajur que ficava logo ao lado da porta e foi até a cama pegar o celular. Anna Hudges aparecia escrito na tela, e Zohar achou estranho que Sarah salvasse o contato de sua amiga com tanta formalidade.

—Alô?- ela atendeu, esperando ouvir a voz de Anna.

—Sou eu.- Sarah respondeu do outro lado.

—Você esqueceu o celular em casa.

—É, eu percebi.- Sarah riu. –Escuta. Aquele seu príncipe encantado canta em um grupo chamado BTS?

—O que?- Zohar perguntou, não entendendo o que era aquilo e imaginando por um momento que ainda estava dormindo.

—Aquele carinha que fugiu com você do casamento. É que a Anna tá’ aqui do meu lado dizendo que é ele que tá’ aparecendo aqui na premiação da Billboard. Te falei da Billboard, né? Eu acho tudo igual. Você sabe que eu sou péssima pra essas coisas. Tem sete caras ali no palco e pra mim não tem diferença nenhuma.- ela riu mais uma vez, e Zohar pode ouvir Anna falando um sonoro “é ele sim!” ao fundo. –A Anna diz que é ele. Eu não faço ideia, por isso tô’ te ligando.

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Zohar processou todas aquelas informações malucas que Sarah estava falando.

—Não... Não sei...- respondeu. E por um momento seu coração bateu mais rápido, ao entender o que Sarah estava falando de Taehyung.

—Você tava dormindo, né? Foi mal. Eu vou filmar a TV aqui e te envio pra você ver. Pode voltar a dormir. Tchau.

A última coisa que Zohar ouviu foi a risada de Sarah do outro lado, falando alguma coisa com Anna. Ela afastou o celular do ouvido e olhou para ele por um momento.

—Aconteceu alguma coisa?

Zohar se virou e viu sua mãe parada na porta do quarto, parecendo preocupada. Zohar negou com a cabeça, colocando o celular da amiga sobre a cômoda ao lado da cama, mas então olhou para Aisha.

—A Sarah disse que viu Taehyung na TV.

E ao ouvir sua própria voz dizendo aquilo ela sentiu-se completamente acordada. Olhou para o celular da amiga e o pegou, já que ela tinha dito que enviaria um vídeo dele aparecendo na TV.

Um vídeo dele...