Adam Thompson & Luar Thompson

“A batalha da vida só tem duas faces: ou vencer ou fugir, porque para os vencidos não há piedade.” Albino Forjaz de Sampaio

NXZero - Hoje O Céu Abriu

Luar conseguiu alcançar os sapatos no alto da prateleira. Eram brancos e com fivelas, solado duro, mas muito bons. Adam tinha dado de presente, embora Luar duvidasse que fosse algo comprado. Sentiu os dedos longos de Adam buscando seus cabelos e a puxando delicadamente de volta para a cama. Se sentou, permitindo que ele continuasse. Era nove horas da noite e eles tinham de dormir. Todas as noites Adam trançava seu cabelo louro em duas trancinhas nas laterais da cabeça, deixava-as penduradas nos ombros e buscava um pijama quente para ela. O banheiro ainda estava cheio de calor, a lenha estalava no subsolo, a banheira ainda fervia. Era assim que se tomavam banhos quentes no Distrito 12, diferentemente de outros como 2 e 1 que tinham chuveiros elétricos. Raramente havia eletricidade no Distrito e por isso eles se viravam como podiam, fogões a lenha, sal para conservar alimentos, tudo que podiam eles faziam.

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– Amanhã é sua primeira Colheita. Irão retirar um pouco de sangue seu para identificar quem é, você vai ficar com as outras garotas de doze anos, então não tenha medo. Compramos poucas tésseras, não? Menos de dez, eu aposto, seu nome não está lá muitas vezes.

– Eu sei. – tentou soar confiante, mas não estava totalmente. Sabia que Adam não queria que seu nome fosse sorteado, e ele não seria, Lucy faria de tudo para que não fosse. Embora impossível impedir.

Luar conseguiu virar a cabeça o suficiente para olhar a Lua. Aquela grande e brilhante bolinha no fundo do céu negro, as estrelas brilhavam com fugaz intensidade. Adam estava ainda enrolando seus cabelos, enquanto tentava decifrar qual seria o real tamanho daquela lua tão pequena. Com certeza eram maior de perto, só queria saber o quanto. Ela, por fim, parou de divagar entre as constelações e escutou quando Adam começou a espirrar e fungar. Ele sempre fazia isto quando ia colocar a coberta de lã sobre a cama, era extremamente alérgico. Levantou-se e pulou sobre as cobertas, levantando mais pó e lã, o irmão torceu o nariz e espirrou vezes seguidas. Por fim, quando tudo se assentou, enfiou-se dentro dos cobertores. Estava frio lá fora, mas a cama era quente. Dormiam juntos, pelas condições que tinham, não podiam se dar ao luxo de terem quartos ou camas particulares.

Normalmente não eram muito agradáveis as noites de frio, mas agora eram. O calor da cama era confortável e Luar conseguia sentir os pelos do cobertor por entre os dedos. Queria dormir, os olhos pesavam, as pálpebras escorregavam e, quando notou, já estava num cochilo, já sem pensamentos na mente, mas ainda lá, ainda acordada. Era véspera de Colheita e normalmente Adam passava as noites em casa, mas dessa vez era diferente: Sua primeira Colheita, ele com certeza ficaria lá. Podia ouvi-lo no banheiro, tomando banho, e sentia com a ponta do nariz a umidade quente no ar.

Seu irmão logo sairia do banho, e gostava quando ele deixava o calor do banheiro sair junto. Lucy olhou novamente para a janela, agora fechada. Lá fora o céu estava escuro e frio, mas sentia que se estivesse lá fora o calor seria maior. Quando Adam saiu do banheiro, nu, ela ainda encarava a janela. Cresceu sendo criada pelo irmão e não sentia vergonha, era ele quem lhe dava banho, quem a vestia... O único pai que conheceu foi Adam. E o amava muito por tudo o que já tinha feito por ela, mas jamais poderia recompensá-lo. Adam se vestiu com agasalho e pulou para dentro das cobertas, assoprou a vela da cabeceira e puxou as cobertas. O calor que Luar já fazia ali dentro se uniu com seu calor e assim a cama se aqueceu mais.

Gentilmente, Luar se aproximou, tentando evitar que Adam notasse. Se conseguisse chegar até perto dele, quem sabe segurar sua mão... Talvez fosse mais difícil para ele fugir assim, e não sairia de casa. Mas quando notou, Adam a afastou com um gesto, pedindo espaço, e se virou, dando as costas. Fracasso. Lucy queria que o irmão ficasse com ela, pelo menos agora, pelo menos hoje. Sentia que o dia que viria seria um dos mais difíceis até ali.

O silencio era mortal, e morreu quando a respiração de Adam vacilou e subiu rapidamente. Ele se inclinou para fora da cama e escorregou pelos cobertores, calçando as botas e cobrindo o corpo de sua pequena irmã, ela de olhos fechados fingia dormir um sono leve. E acordou quando Adam saiu pela porta. Luar coçou os olhos, espantando o sono deles, e também saiu da cama, não se dando ao trabalho de calçar algo. Desceu em disparada pela porta, as escadas e o quintal. O barracão estava muito caloroso em comparação a noite. Lucy praguejou leve por não ter vestido um pijama mais pesado. Sua pele se arrepiava com as rajadas do vento, mas sua visão não se preocupava com elas, apenas com o vulto de Adam. Sabia por onde ele normalmente ia, e deu a volta na casa, passando pela lateral que dividia o barracão e o vizinho. Lá encontrou ainda uma figura terminando de atravessar o beco. Seguiu-o. normalmente parava a perseguição por ali, não tinha coragem de sair de perto de casa, podia se perder, mas mesmo assim ela não queria ficar longe de Adam hoje. Não hoje. Não agora.

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Correu com os pés descalços. Sentia a terra fria, sentia o sereno da madrugada, e agora não temia se perder, apenas temia não encontrar Adam. Mas o vulto ainda estava por perto, andava em direção ao Prego, onde ninguém costumava ir aquela hora, afinal não havia nada para se fazer lá. A não ser... Será que Adam estava viciado em alguma droga? Morfina? Ou então ele queria visitar alguma prostituta barata? Não, seu irmão não tinha dinheiro nem para comprar um novo par de sapatos para si mesmo, imagine uma prostituta. Então ele só poderia estar viciado. Ou bebendo em algum bar clandestino. Ou então... O quê? Luar continuou, e em cada passo sentia como se a Lua a observasse por sobre o ombro, e obrigou-a a manter silêncio, queria ver Adam e o que ele fazia todas as noites muito mais do que qualquer outra coisa. A curiosidade corroía sua paciência e já não corria com cuidado devido, tropeçando em algumas latas vazias e até quase trombando com um gato vagabundo.

Quando finalmente voltou a ver o vulto, ele se movia com muito mais agilidade, saltando por sobre telhados e correndo como se fosse fácil. E era. Para Adam aquilo era muito fácil. Seu irmão sempre foi um ótimo morador da floresta, nasceu para aquilo, e parecia tão feliz em meio a liberdade... Lucy queria poder vê-lo sempre assim, mas sua presença não tinha o mesmo efeito que a floresta. Sentia inveja. Sentia ciúmes. Adam era seu, e só seu. E ela não o seduzia como a liberdade. Adam tinha um espírito livre que queria correr, ele não conseguia se prender, nem mesmo numa noite como aquela. Era seu jeito de manter a sanidade.

Luar tratou de escalar uma parede irregular, por sorte era uma boa escaladora, e na floresta conseguia se virar entre as árvores. Quando chegou no telhado, notou o quanto a falta de um bom agasalho fazia numa noite fria. Tremia, sentindo cada osso bater contra o outro, os lábios se esfregavam e a ponta do nariz não era mais sensível. Até mesmo a umidade em seus olhos tinha ficado fria. Luar jogou as tranças louras para trás dos ombros e arregaçou as calças e as mangas da camiseta. Ela não era muito boa em manter o equilíbrio, ainda mais naquela altura e com o vento soprando violentamente contra ela, mas tinha de segui-lo. Começou, hesitante, um passo após o outro. E Adam sumia a cada segundo. Não conseguiria se continuasse naquele ritmo, então começou a correr. Seus pés agiam rapidamente, mas ela nem sabia se estava voando ou pisando, não sentia as canelas, o frio cortara toda sensibilidade. Um pé na frente do outro, nem um milímetro para a direita, nem um para a esquerda. Tinha de ter coordenação motora. E se era do sangue de Adam, então tinha de ser fácil.

Seu pé pisou em falso uma vez e ela quase escorregou, deslizando o outro pé por algumas telhas. Abriu um espacato perfeito no telhado e a boca de seu estômago deu uma volta inteira, antes de o frio voltar a assombrar. Voltou a posição inicial. Um pé depois do outro. E agora corria com toda a força que podia, sentindo as telhas deslizando toda vez que pisava. Não podia parar, se parasse cairia, ela tinha de ir até o final. Adam mudou de telhado e deu saltos desafiadores para as pequenas pernas de Lucy, mas ela o fez, e quase caiu novamente. Continuou. Não saberia voltar para casa agora. Tinha de terminar.

– Adam... – sua voz saiu fraca, intercalando com a respiração ofegante. Toda vez que sugava o ar, a garganta congelava e o pulmão estremecia. – Adam!

Não tinha como ele ouvir, e só pôde continuar a correr. Adam saltou mais um telhado e por um segundo ela pensou que tivesse caído, mas logo viu o vulto alto correr nas ruas estreitas. Desceu do telhado com mais cuidado do que subira e isso deu a Adam um bom intervalo entre eles. Tinha de voltar a correr, mas agora já não havia forças. As pernas doíam, o frio a fazia encolher, a respiração estava descompassada e a adrenalina fervia o sangue, mantendo o peito quente.

Lucy, por fim, viu que já tinha perdido Adam. Não adiantaria prosseguir sua busca, ele já estava longe demais. Agora era oficial: seu pesadelo se tornava realidade. Olhou para os lados, receosa. O vento assoviava pelas persianas das casas ao lado e ela sentia como o sono tinha sumido. Queria voltar para casa, queria ir para a cama, esperar Adam debaixo das cobertas. Se abaixou, abraçando os joelhos, e ali, onde estava, começou a chorar.

Luar Catt 'Lucy'