–Você foi assaltado?!-Lucas exclamou, sem acreditar no que o ruivo então falava, no dia que se seguiu.

–Ah, sim, mas então eu... Consegui meu celular de volta.

–Como, cara?

–Ah, a polícia me ajudou. Eles pararam ele e entregaram meu celular.-Jean mentiu. Por que estava mentindo, não sabia, mas tinha quase que saído sem querer. Aliás, era mais fácil mentir do que dizer que o cara mais temido da escola tinha lhe ajudado.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

–A polícia?-Lucas ergueu uma sobrancelha.-Que estranho. Nunca vejo eles muito por aqui, mas tudo bem.-Deu de ombros então, relevando.-E esse roxo aí na sua cara.

–O ladrão me bateu. Me deu só um murro antes de pegar o celular.

–Caramba, mas você se deu foi bem. Ele podia era tá com uma três-oitão e meter bala, você se salvou eim!-Lucas riu, dando uns tapinhas nos ombros de Jean, que sorriu. Os demais colegas conversavam entre si.

A aula passou normalmente. Os professores ainda perguntavam de onde ele era e ainda lhe davam as boas vindas, e sinceramente, foi assim durante toda a semana que se seguiu.

Todos os dias, no refeitório apenas, ele via Leonidas, sentado sozinho. Por várias vezes quis se aproximar, mas Lucas ou não permitia – ele sempre fazia alguma coisa que impedia Jean – ou então Leonidas ia embora antes que ele o fizesse.

Descobriu que Leonidas fazia o terceiro ano ali, mas ninguém sabia o que ele queria na faculdade, nem qual instituição queria cursar. Aliás, tudo que sabiam sobre Leonidas era quase um mistério, suposições. A única coisa exata era: ele tinha um tio que o sustentava. Apenas isso.

Jean até quis perguntar sobre como ele, Leonidas, sabia onde o ruivo morava, mas novamente, não conseguia. Porém, todos os dias em que o via, ele dava um pequeno sorriso: a mão que enfaixara continuava coberta com as ataduras, cada vez mais sujas, mas estavam ali. Talvez fosse melhor trocá-las.

Fazia, portanto, uma semana desde que Jean tinha sido assaltado. A memória estava fresca em sua mente, porém, o mal-entendido havia sido resolvido – que se resumia ao fato do motorista não saber com precisão qual o nome do colégio do ruivo – e agora um civic preto vinha lhe buscar todos os dias.

Era fim de aula quando Jean se viu estático próximo a portaria do colégio, lotada de alunos que então iam para casa. Lucas tinha acabado de partir, assim como os demais “amigos” de Jean.

Um grupo de alunos tinha rodeado um rapaz gordinho ao conto. Um dos alunos segurava suas coisas e balançava a mochila como se a fosse jogar em algum lugar, ao mesmo tempo que o rapaz gordinho parecia que ia chorar a qualquer momento.

–Não sabe, não sabe, vai ter que aprender! Orelha de burro, cabeça de etê!-Vários repetiam enquanto o resto chamava o rapaz de gordo.

Eram mais novos do que Jean, provavelmente nono ano – o ruivo estava cursando o segundo do ensino médio – pelo detalhes no uniforme, e antes que percebesse, já tinha se metido no meio da algazarra e tirado a mochila que o rapaz balançava nas mãos, estregando-a ao rapaz mais gordos.

–Ei, parem com isso!-O ruivo exclamou. Aquilo era errado, bullying era errado e ele não iria permitir aquilo. Se postou entre o rapaz mais gordo e os demais então, cruzando os braços.

–O que é, mano?! Tá de sarro com a nossa cara?! Devolve aí a bolsa!

–Sai daí, judeu, nem daqui tu é!

–Um gordo e uma arara, que graça!

–Ora, vocês...!-Jean bufou, sem acreditar em todas aquelas ofensas. Mas que meninos...! Argh, aquele tipo de coisa o irritava tanto! Largou a própria bolsa no chão, se impondo diante deles, que continuaram a lhe xingar, mas as coisas só saíram de controle quando um deles jogou o que devia ser um caderno em Jean.

Então o inferno surgiu.

Socos surgiram, arranhões, puxadas de cabelo, mas a coisa era mesmo muito feia porque era apenas Jean contra uns 4 rapazes – o restante dele apenas aplaudia e ria alto, logo formando um círculo ao redor da confusão – então ficava em plena desvantagem.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Mas da mesma forma que Jean apanhava, ele batia também. Não importava se ele saísse todo quebrado, se ao menos pudesse ensinar aqueles moleques uma lição, estaria plenamente satisfeito.

Então alguém bateu em sua garganta. Uma confusão como aquela, com roupas e cabelos puxados, chutes e pontapés, além de socos a esmo – porque Jean ainda era maior e um tanto mais forte que eles – não pode ver quem lhe bateu na garganta, mas caiu, tossindo forte, subitamente sem respirar, e foi quando todos os outros partiram pra cima de si com tudo.

A coisa teria realmente saído do controle se alguém não tivesse intervido, afastando os moleques de uma forma não muito educada, a voz firme soando.

–Vão embora senão eu quebro o braço de todos vocês.

Jean continuava a tossir, respirando desesperadamente. Que situação horrível! A falta de oxigênio fazia seus olhos lacrimejarem, as mãos fechadas em punho, cheio de hematomas no corpo, mas aquilo era pior: não respirar. Ao menos, as poucos tal capacidade foi retornando, e quando ergueu os olhos, viu Leonidas, parado de pé, ao lado seu lado. O rapaz gordinho também estava ali, chorando, mas ele não parecia estar machucado.

Depois, chegaram os professores – parecia que eles estavam apenas esperando a confusão acabar antes de fazer alguma coisa... - e tanto Jean quanto Leonidas pegaram uma suspensão “leve” de três dias. Os outros rapazes também, mas Jean passou horas dizendo o quanto aquilo era injusto porque ele estava defendendo alguém, mas violência era violência, afinal de contas.

Estavam então, ele e Leonidas, parados do lado de fora do colégio. Nenhum dos dois de bom humor, mas Jean estava pior porque suas roupas, além de sujas de terra e poeira, estavam meio rasgadas. Além do mais, só poderiam voltar ao colégio com o comunicado assinado pelos pais, e isso não era bom.

–Caramba... Aqueles moleques batem bem.-O ruivo resmungou.

Leonidas não disse nada, continuando parado, escorado na parede da escola, parecendo esperar alguma coisa. Parecia irritante para qualquer um, mas Jean estava começando a se acostumar com o silêncio do maior e mais velho.

–Você é idiota por entrar numa briga com aqueles moleques.-Disse então o moreno, de repente, segundos depois.

–Eu não podia deixar eles fazerem chacota com aquele menino. É injusto e errado e...

–A vida é assim, pare de bancar o idealista.-Leonidas revirou o olhar, os braços cruzados. A mão enfaixada ainda parecia cuidadosa, como se ele temesse batê-la em algum lugar, algo que lhe causasse dor.

Jean suspirou.

–Então por que você se meteu? Nem pedi ajuda.

–Você teria parado no hospital se eu não tivesse me metido.

–Os professores teriam aparecido antes disso e...-Jean continuou, mas o olhar de Leonidas sobre si o fez se calar. Ele praticamente dizia “aqui não é a Europa”. Jean voltou a suspirar e desviou o olhar, sentado no meio-fio da calçada, esperando pelo motorista que deveria ter chegado, mas...-Hmpf.

Ficaram alguns instantes em silêncio então, pouco mais de cinco minutos, até Jean resolver quebrá-lo novamente. O ruivo não gostava muito do silêncio quando este não lhe favorecia. Era um ser bastante social, gostava de conversar, mesmo com Leonidas. Já o moreno, era adepto firme do “se você não tem o que falar, não fale nada”.

–Sua mão está melhor? Não infeccionou, não é? Devia me deixar olhar de novo e trocar as faixas. Aliás, você devia ter feito isso sozinho em casa, mas ao que parece, não fez...-Jean riu, levantando-se então, encarando a mão do menor, mas sem se aproximar demais nem tocar.-Pode vir até meu apartamento e eu posso olhar isso, se quiser.

–Não precisa.

–Ah, vamos, Leonidas. Faço o jantar para você. Quer dizer, se você quiser, mas se não quiser, tudo bem. Pense nisso como um bônus e...

–Ainda não gosto do seu sotaque.

–O que isso tem a ver?

–Você fala demais.-Leonidas revirou o olhar, saindo dali, caminhando, com Jean se apressando para segui-lo. Pelo caminho que tomavam, estavam indo em direção do apartamento do ruivo.

Leonidas tirou o celular da bolsa então, um modelo novo. Falou alguma coisa com alguém em francês e desligou. Jean não sabia muita coisa de francês, por mais que achasse uma língua muito bonita, então não perguntou nada.

Não demoraram até chegar ao apartamento do ruivo, novamente, aliás, constantemente vazio. Jean correu para pegar a caixa de primeiros-socorros antes de chamar Leonidas até a cozinha e ver o estado da sua mão, fazendo uma careta.

–...Não está ruim, pelo menos está fechado. Não tem pus, também, então acho que vai ficar bom logo.-O ruivo falou, jogando as ataduras velhas foras e procurando por novas na caixa. Leonidas encarava o chão, a expressão, como sempre, de poucos amigos.-Mas você devia ter cuidado disso, sabe.

–Não sei.

–Não sabe o quê? Cortar ataduras e enfaixá-las? Ah, Leonidas, por favor, não se faça de idiota.-Jean riu por alguns segundos, limpando o machucado, já realmente quase fechado mas ainda feio, erguendo o olhar quando o silêncio bateu. Pela expressão de Leonidas, ele estava mesmo falando sério quando disse que não sabia fazer aquilo.-Caramba, como é que você se vira quando se machuca?

–Os ferimentos sempre saram sozinhos.

–É, mas e se você quebrasse uma perna?

–Sararia sozinha.

–Você é muito teimoso.-Jean voltou a sorrir, terminando com a mão, sorrindo mais largo.-Pronto, acabei. Olha, eu não costumo comer em casa, mas tem... chocolate se quiser.-O rapaz disse, deixando os primeiros-socorros de lado e indo até a geladeira, observando seu interior.-Tem leite, pão, queijo e presunto.

–Não gosto de doces, e pão está bom.-O moreno disse, indo se sentar a mesa, a postura relaxada, meio deitada, na cadeira de madeira. Jean tirou as coisas da geladeira e pôs a mesa com alguns talheres, se sentando pouco depois, servindo-se de um copo de leite.

Leonidas se inclinou para pegar o pão, e no mesmo momento, a manga da camisa arregaçou um pouco, mostrando um pouco mais além do pulso, em direção ao antebraço. Tudo que Jean teve tempo de ver foi uma grossa cicatriz na vertical.

–Hm... Então, você vai ter provas ou...?-Tentou perguntar, puxar assunto. Leonidas assentiu com a cabeça, continuando a comer. Simplesmente o ruivo não entendia por que ele estava ali se não conversava, quer dizer, não era só pela comida.-Bem, eu vou...

–Você está bem? Deve estar acabado pelo tanto de chutes que os moleques deram em você no colégio.-Leonidas disse de repente. Jean piscou, de repente sorrindo e assentindo.

–Ah, sim, está doendo, mas só são alguns hematomas. Nada quebrado, vai passar logo. Nada que uns remédios para dor não resolvam.-Voltou a sorrir, bebericando do leite gelado. Preferia quente, mas não estava a fim de fervê-lo. Leonidas assentiu, continuando a comer.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Outro silêncio se instalou.

Deixando os olhos vagarem, percebeu que as mãos do moreno, grandes, eram cheias de veias saltando. Mãos bem usadas, provavelmente. Será que ele tocava alguma coisa? Violão, ou guitarra? Quem sabe violino? Nah, não tinha cara de quem sabia tocar violino, mas Jean sabia. O ruivo sabia tocar vários instrumentos, mas o seu preferido ainda piano, aliás...

–Ah! Já sei, você vai posar pra mim!-O ruivo disse de repente, fazendo o moreno erguer uma sobrancelha de forma indagatória.

–O quê?

–Vai posar pra mim. Meu pai trouxe da Europa minhas pinturas e a sala lá atrás virou meu estúdio, sabe, eu pinto e até já vendi algumas telas. Não sou o melhor do mundo, mas sou muito bom, e eu queria que você...

–Não.

–Ah, vamos, Leonidas, vai ser...

–Já disse que não.-O moreno voltou a enfatizar, terminando de comer, cruzando os braços na cadeira enquanto o sorriso de Jean aos poucos morria. O maior desviou o olhar então, por alguns motivo que Jean desconhecia, e assim o assunto quase morreu. Quase.

–Por favor? Eu queria muito pintar você. Não precisa tirar a roupa nem nada, é algo simples, pode ser do jeito que você está e... Não vou sequer tocar em você. Por favor?-Jean voltou a falar.

Leonidas estreitou o olhar, sem ainda encarar o menor. Parecia alguém que tentava não ser vencido pela insistência.

–O que eu ganharia com isso?-Perguntou então.

–Ah... Dinheiro? Eu poderia vender a tela, se ficasse boa o bastante. Você poderia ficar famoso, e eu também, e então... Bem, o que você quer, se não quer dinheiro?

O moreno suspirou, imóvel além disso. O que queria era algo que ninguém podia lhe dar: Liberdade. Mas Jean não entenderia. Ele parecia ser o pássaro que já nasceu na floresta, não aquele que nasceu na gaiola.

–Tenho que ir.-Leonidas se levantou de repente, passando a mão pelo rosto.-Falo com você depois.

–Que, mas, assim de repente?!

–Tenho que ir.-Ele repetiu, indo até a sala, pegando as coisas e saindo do apartamento. Antes que Jean pudesse fazer alguma coisa, Leonidas tinha ido embora, assim, sem mais nem menos.

–Mas que cara estranho...-O ruivo suspirou, indo recolher as louças, mas logo sorriu daquela forma quase divertida. Leonidas tinha olhos bonitos, que contrastavam com a cor da sua pele, com tudo, aliás.

– - - - - - - - - - - - - -

Por causa da suspensão, Jean só voltaria a ter aulas na semana seguinte. Ficou, portanto, grande parte do tempo em casa, pintando o que lhe vinha a cabeça e sujando-se todo de tinta, mas ele gostava de ficar ali, horas pincelando a tela, às vezes com os dedos, sentindo o cheiro de vasilina enquanto ouvia um violino suave no mp3 do celular.

Aliás, teria passado o final de semana inteiro fazendo a mesma coisa, pintando, se Lucas não tivesse batido a sua porta no sábado, lhe chamando para ir ao cinema com a turma. O loiro ainda não acreditava que Jean tinha sido suspenso, já que ele sempre parecia ser tão calmo.

Trocou de roupa e saiu rapidamente com eles para o shopping mais próximo. Comeram fast-food, compraram besteiras como doces e chocolates e salgadinhos e finalmente foram para o filme, um qualquer de comédia que às vezes Jean não entendia pelas figuras de linguagem.

Era noite quando cada um, aos poucos, foi indo embora do shopping. Do lado de fora chovia forte, e o barulho da água caindo, quase agonizante.

–Tchau, até segunda.-Ele disse, acenando para Lucas, o último a ir tirando si próprio. Jean tirou o celular do bolso então, procurando o número do motorista – que tinha sido trocado, porque o primeiro motorista tinha sido despedido – novo para que ele viesse buscá-lo. Normalmente voltaria andando para casa, mas a chuva caía pesada e estava sem nenhum guarda-chuva.

Deixou o shopping, de qualquer forma, protegido pela fachada da água, sem se molhar. As ruas estavam lotadas pelo horário. Ainda era meio cedo.

–Devia ter trago um agasalho...-Falou sozinho, apertando as roupas contra o corpo, soltando um brrr! baixo, olhando em volta por alguns momentos. Na calçada, mesmo com toda aquela chuva, as pessoas andavam apressadas, se protegendo da água e do frio, até que Jean viu uma pessoa um tanto alta demais.

–E-Ei, ei, Leonidas!-Ele acenou, correndo até o moreno e por isso, se molhando uns bucados antes de encontrar abrigo debaixo do guarda-chuva do menor.-Achei você!

–Mas que diabos... Que está fazendo aqui?-Leonidas franziu o cenho, todo agasalhado, encarando Jean como se ele fosse alguma súbita assombração.

–Vim sair com uns amigos e acabei de achar você. E você?

–Você se molhou inteiro...-Leonidas suspirou, revirando o olhar e empurrando o ruivo até a proteção da fachada do shopping novamente, fechando o guarda-chuva.-Dando uma volta, sair pra beber.

–Beber? Você bebe?

–Tenho 21 anos, é claro que bebo.

–Posso ir?

–Claro que não.-Leonidas revirou o olhar, deixando as coisas de lado por alguns momentos – ele carregava uma mochila além do guarda-chuva – para despir o casaco pesado que vestia, entregando ao menor.-Veste. Está tremendo, vai pegar uma pneumonia desse jeito.

–Mas é claro que eu...-Antes de terminar a frase, Jean espirrou, e depois disso teve que aceitar o casaco, grande demais em si, mas incrivelmente quente. Leonidas deveria ser muito quente...-Então, não posso ir?

–Você é menor de idade.

–Não vou beber também, só quero ir com você.

–Por quê?

–Porque vou ficar sem nada pra fazer se eu for pra casa.

Leonidas revirou o olhar, fazendo uma careta. As mãos, escondidas no bolso da calça. Ele vestia uma regata e uma camisa de manga longa por cima, agora, ambos de cores claras. Além disso, calça jeans e all-stars pretos, já meio encharcados.

–Anda, vem comigo.-O moreno revirou o olhar, voltando a por a mochila nas costas e pegando o guarda-chuva. Tiveram que dividir durante o percurso para um barzinho não muito longe dali, felizmente aconchegante e quente, onde Jean deu graças e se sentou esfregou as mãos que ainda tremiam pelo frio.

Agora que se dava conta...

–Você mora perto daqui?-Pendeu a cabeça para o lado levemente.

–Um pouco.

–Ah... É porque vivo vendo você por aqui, então.-Deu de ombros, olhando em volta. O barzinho era simples, agradável, não estava lotado e um blus agradável tocava ao fundo. Leonidas deixou a bolsa sobre o chão, ao seu lado, e tirou a camisa de manga longa, ficando apenas com a regata.

Era a primeira vez que Jean via seus braços. Ambos tinham grossas cicatrizes no antebraço, outras entre o cotovelo e outro. Pareciam muito cicatrizes de cirurgia, mas Jean não tinha certeza.

–Uma dose de cana pra mim e uma coca-cola pra ele.-Falou o moreno quando um garçom, um homem com seus sessenta anos, se aproximou, anotando o pedido e logo se afastando.

Jean ainda examinava os braços do outro quando Leonidas franziu o cenho.

–Pare de olhar pra mim

–Você é cheio de cicatrizes...

–É a vida, agora pare de olhar pra mim.

–Uhm, desculpe. Então, você tem 21 anos e ainda faz o terceiro?

–Repeti alguns anos no ensino fundamental por causa dos problemas com meu pai.

–Como assim?

Leonidas encarou o outro com um ar descrente, como se não acreditasse que Jean não soubesse.

–Meu pai é ex-presidiário, matou três caras e vendeu sei lá quantos quilos de cocaína e crack antes de ser preso e antes da minha mãe acabar morta por acerto de contas. Achei que todo o colégio soubesse disso.

–Bem, a maioria das coisas parece tão inventada que eu não acreditei.-Jean fez uma leve careta.-Sinto muito pela sua mãe.

–Que seja.

Os pedidos chegaram logo depois. Jean bebericou a coca-cola enquanto via Leonidas virar a dose de cachaça, fazendo uma careta. Não entendia como gostar de álcool se o gosto era tão ruim, e o cheiro, então, terrível.

Até quis perguntar mais. Saber mais sobre Leonidas, saber sobre sua história, sobre seus pais, o que ele fazia no tempo livre, se ele praticava algum esporte, mas ao mesmo tempo sabia que ele não lhe diria se pressionasse. Ele parecia o tipo de cara que diria apenas quando quisesse.

–O gosto é bom?

–De quê?

–Dessa... Cachaça.-Jean apontou, já tendo tomado metade da latinha de coca. O frio já tinha quase todo passado, e só vestia o casaco do moreno porque... Gostava.

–Não é bom, não. Mas eu gosto.-Deu de ombros.-O resto das bebidas, não gosto, ou são caras demais.

–Sei... Hm, posso provar?

–Já disse que você não pode beber.

–Eu ia tomar só um gole.

Jean encarou o outro. Leonidas reribuiu o olhar, mas desviou logo depois com um logo suspiro, pedindo mais duas doses de cachaça, que chegaram logo depois.

–Geralmente as pessoas tomam com limão, mas eu gosto pura.-Disse, virando a segunda dose, estendendo a outra ao menor.-Prove. Devagar, não tudo de uma vez.

Jean assentiu, mas virou tudo da mesma forma. Bebera poucas vezes em sua vida, mas, qual é, aquilo não podia ser tão forte assim. Fez uma forte careta então, engolindo tudo. O gosto era realmente horrível.

–Ergh!-Exclamou, colocando a língua para fora. Leonidas então repuxou o lábio: um pequeno, bem pequeno, sorriso.

Passaram quase duas horas naquele barzinho. Leonidas, bebendo num ritmo mais lento, mas tão logo que ele começou a apresentar sinais que estava vivo, desenrolou a língua e passou a conversar normalmente. Não a coisa calada de sempre, mas falava abertamente e até ria. Jean aproveitou e pediu umas doses a mais, o que era muito para ele, que não tinha costume de beber, Quando finalmente deixaram o lugar – Leonidas que pagou tudo – ambos estavam trôpegos, mas era Jean quem mais pareceria alterado.

Ainda chovia lá fora, e era um verdadeiro teste de equilíbrio, ambos ébrios, dividir o mesmo guarda-chuva.

–Para onde vamos...?-Jean perguntou em algum momento, a voz arrastada.

–Estou indo deixar você em casa...

–Que horas são e... Caramba, são mais de onze da noite, meu pai vai chegar e... Ele não pode me ver assim, eu sou menor de idade e... estou bêbado e!

–E daí?

–E sua casa?

–O que tem?

–Eu podia ficar lá até melhorar e...

–Não é boa ideia.-Leonidas respondeu, agarrando Jean pela cintura quando ele quase tropeçou, quase levando o moreno junto. As palmas do maior eram tão quentes. Continuaram a andar na chuva então, a visão cômica de passos trôpegos tentando não se encharcar.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Tiveram que parar num sinal para pedestres e foi só então que Leonidas encarou o rapaz ao seu lado, erguendo uma sobrancelha.

–Por que está me olhando assim?

–Você é bonito.-Jean sorriu, bêbado, e Leonidas deu um pequeno sorriso e murmurou um “tolo” antes de continuar a andar.

A casa do moreno não ficava tão longe assim do colégio, mas era exatamente na direção oposta ao apartamento do menor. Nem grande nem pequena, bem cuidada e de muro alto, a casa não parecia ter nada de mais, aliás, dentro realmente ela tinha apenas o necessário, completamente impessoal. Nada de fotos, nada de nada que caracterizasse os donos da casa, porque até as paredes, quando não erma brancas, eram amareladas.

–Você mora só?-Jean perguntou, parado ao lado da entrada, tirando os sapatos encharcados enquanto Leonidas fazia o mesmo.

–Moro. Meu tio vem me visitar duas vezes por mês. Tira as roupas que tiverem molhadas, vou buscar algumas pra você.-O moreno disse, sumindo num corredor e voltando logo depois com uma calça e camisa, entregando ao outro.

Jean era magro. Tinha alguns músculos pelos esportes que fizera quando mais novo, mas tirando isso, era bem magro, diferente de Leonidas, que parecia trabalhar pesado todos os dias.

O ruivo trocou só a camisa, enorme em seu corpo. A calça que vestia não estava tão molhada assim, então preferiu ficar com ela. Sentou-se no sofá então, sonolento, lento, com uma sensação engraçada no corpo e uma coragem para fazer tudo ao mesmo tempo. Seria aquilo efeito do álcool?

Leonidas sumiu e voltou não muito depois com uma calça e uma regata, secas, passando a mão pelos cabelos meio molhados. Parecia estar da mesma forma que o ruivo, apenas um tanto mais... estável.

–Tem problema se... Eu dormir aqui?-Jean perguntou.

–Não, mas seu pai não vai se preocupar?

–Acho que não.-Deu de ombros, rindo baixo, enquanto o moreno ligava a televisão e colocava num canal de desenhos animados. Olhando mais de perto, Jean conseguia ver as cicatrizes grossas e chamativas na pele do outro. Antebraço, pulso e...

–As ataduras, você tirou?

–Sim. Não precisa mais, está quase curado, e elas me atrapalhavam.

–Hm... Por que você é cheio de cicatrizes?

–Porque vivo me metendo em brigas.

–Mas e essas... nos seus braços? Parecem... cicatrizes de cirurgias. Tipo quando você quebra uma perna e precisa operar para...-Mas então Jean parou de falar. Estava bêbado, não burro, aliás, sentia estar com o raciocínio bastante avançado até.-...Quantas vezes você quebrou os braços, Leonidas...?

–Não faça essa pergunta, não vou responder.-O moreno disse então, levantando-se.-Tem água na cozinha, vou pegar uns cobertores. Pode dormir no sofá se quiser.

O moreno se afastou, voltando logo depois com os tais cobertores, entregando-os ao menor.

–Não durma tarde. Tem um banheiro ali, última porta do corredor. Boa noite.-E dizendo isso, Leonidas foi para o próprio quarto e ali se trancou. Jean mordeu o lábio. A história das cicatrizes, por que Leonidas não falava sobre elas, agora fervilhava em sua mente, mas claro que ele não lhe contaria. Se ao menos... Suspirou, agarrando os cobertores contra o peito, batendo um frio de repente, encarando a televisão.

Se ao menos Leonidas confiasse em si... Jean não sabia por que mas Leonidas sempre lhe parecera digno de toda sua confiança, mesmo que às vezes assustasse e que não fosse a pessoa mais gentil do mundo, mas ele era justo e fazia as coisas certas... Se ao menos fosse recíproca, a confiança que Jean sentia para com o outro...

Por mais que sentisse sono e o torpor do álcool, não conseguia dormir. Sentia frio, provavelmente estava com pressão baixa, hipoglicemia talvez, as mãos tremiam e as unhas estava azuladas.

Depois de quase três horas naquilo, em plena madrugada, desistiu de dormir. A televisão já tinha sido desligada havia tempos. Levantou-se e, ainda agarrando os cobertores, foi sem fazer barulho até o quarto que devia ser o do maior.

Sobre a cama, uma silhueta dormia, respirando devagar. Jean encostou a porta atrás de si e caminhou até a cama, levado apartentemente pelo álcool, até a fonte de calor mais próxima, deitando-se na cama de casal e colando-se ao corpo do moreno. Quente. Tão quente. Não queria nada senão o calor, e assim, fechou os olhos, finalmente deixando o sono chegar não mais do que meros segundos depois.

Mas Leonidas não dormia. Estava, sim, plenamente acordado, sentindo a pele fria do menor contra a sua nas áreas que as roupas não cobriam, o roçar da pele macia do ruivo contra a sua, tão cheia de marcas e cicatrizes.

Lembrou-se da conversa do quadro então, sobre Leonidas posar para o menor. Pensara que Jean não poderia lhe dar o que queria, mas e se... E se ele pudesse? Engoliu em seco. Não. Não daria certo, nunca dava.

Encolheu-se ali, sentindo o menor contra suas costas, virando-se um pouco apenas para cobri-lo com lençóis mais pesados antes de fechar os olhos e dormir também.

O pensamento de expulsar Jean do quarto no momento em que ele deitou em sua cama nunca passou pela cabeça de Leonidas, mesmo que o moreno não gostasse de toques estranhos, mesmo que afeição não fosse seu forte.