Alexy sentiu sua cabeça pesar horrores quando acordou na manhã seguinte. É como se o campo magnético da Terra estivesse mais forte aquele dia, pois seu corpo, apesar de jogado no colchão, parecia que queria cair mais, com um peso de cem toneladas sobre ele. O som irritante do despertador parecia soar e algum canto do quarto, mas ele não estava preocupado com isso, ainda, a não ser por causa do zumbido terrível no seu ouvido direito. Quando abriu os olhos, sentiu uma ardência terrível nos cantos e na própria íris, de alguma forma os sentiu inchados e com a pálpebra lutando para se fechar novamente. Droga, ele parecia ter bebido uma garrafa inteira de remédio para gripe.

Tentou pescar em sua memória escassa momentos da noite anterior que levassem, de alguma forma, ao atual cenário. Eram flashes muito rápidos e que não faziam sentido juntos. Lembrava-se de seu irmão o deixando na porta do bar, então ele entrou, tomou algum assento no balcão e pediu a tequila mais forte que o barman tinha. Depois disso, tudo que ele tentava se lembrar virava um borrão insano e uma dor imensa no cérebro o fazia estremecer.

Ele deve ter bebido bastante, no mínimo, então Armin veio buscá-lo. Claro, isso era um cenário até bastante comum na sua época de universitário, o problema é que agora ele não é mais um jovem adulto irresponsável, mas estava se portando como um. Sabia que teria sérios problemas se alguém da escola lhe pegasse de ressaca.

Levantou-se cautelosamente lutando contra a força que seu pescoço fazia para baixo e também contra sua cabeça gritando por misericórdia. Seus olhos cansados rodearam o local familiar até concluir que estava em seu quarto. Não é tão ruim assim. Levantou os braços para se espreguiçar, porém sentiu que estavam mais pesados do que o costume e quando verificou, viu que estava vestindo um casaco azul petróleo bastante grosso.

Estranhou aquilo, pois não recordava de ter vestes assim e quando notou um corpo adormecido na poltrona do outro lado do quarto soltou um berro imenso, indo para trás instintivamente. O que não foi uma boa ideia, porque além da sua cabeça reclamar mais, também caiu no chão e se encolheu com o impacto.

Kentin também acordou bruscamente com o grito do outro e olhou para os lados, aflito, como se tivesse procurando alguma coisa ou alguém. Os olhos verdes pararam no jovem de cabelos azuis que estava encolhido em um canto ao lado da cama, tremendo de medo ou ansiedade, em seus olhos rosados tinham a pura confusão. Kentin foi até o amigo, preocupado e o segurou com cuidado.

— Está tudo bem. — Disse com uma voz mansa, era bastante parecida com a que usava quando falava com as vítimas, aquilo fez seu estômago revirar, por algum motivo. — Você está na sua casa, eu lhe trouxe em segurança. — Completou ajudando-o a se levantar, naquele momento só queria tirar Alexy do chão frio.

O outro se deixou levar pelas mãos aconchegantes de Kentin e sentou-se na cama ao lado dele, porém ainda se sentia assustado e aflito, com milhares de perguntas inundando a sua mente. Sentiu seu coração bater mais forte com o claro indício de que estava apenas com a sua cueca e um casaco de Kentin, sentiu sua bile subir pela garganta ao pensar na possibilidade. Sim, ele gostava de Kentin, mas se algum dia fosse passar a noite com ele, gostaria que pudesse se lembrar dos detalhes.

— M-Meu Deus... — Sussurrou suplicante, colocando a mão em seu peito. — E-Eu... N-Nós... — Mal conseguia completar a frase e rezou internamente para que Kentin entendesse o que ele quis dizer.

— Não, claro que não! — Alarmou Kentin quase que imediatamente e encostou sua mão no ombro do rapaz. — Eu não faria isso com você, Alexy, jamais te machucaria dessa forma. Eu... te encontrei assim. — Alexy percebeu que ele vacilou no final e teve vontade de se dar um tapa.

Curvou suas costas quase inteiramente pra frente ao ponto de seus cotovelos tocarem os joelhos e tampou o rosto com as mãos, passando os dedos pelos fios de cabelos embaraçados. Não podia medir o tamanho da vergonha que sentia naquele momento, tinha vontade de sumir para um lugar bem distante. Kentin lhe pegou chapado e seminu. O que mais poderia dar errado?

Ele sequer sabia o que levou a esse cenário na noite passada, pois sua memória não ajudava. Não se lembra de ter bebido tanto assim e a única vez que experimentou drogas foi na faculdade, onde vez ou outra fumava um cigarro de maconha com seu grupo de amigos, mas nunca levou aquilo ao extremo e nunca viciou nessas coisas. Quando começou a trabalhar, nunca mais levou um cigarro sequer a boca e também nunca mais ficou bêbado. Então, como?

O que o Kentin pensaria dele agora? Isso é terrível. Sentia a culpa crescendo e misturando com a vergonha que se tornava uma massa de sentimentos ruins que transbordaram pelos olhos.

Kentin percebeu o corpo do amigo tremendo, logo em seguida escutou soluços baixinhos e se preocupou com o garoto, passando a mão pelas suas costas para tentar confortá-lo. Não tinha muito como ajudar, ele próprio estava consumido pela tristeza pelo que viu na noite passada.

— Eu estava fora de mim... — Sussurrou Alexy baixinho, ainda com as mãos nos olhos. — Eu nunca fiquei fora de mim antes... Como isso pôde acontecer? — Lamentava-se cada vez mais.

O policial olhou para o amigo com piedade e segurou em suas mãos calmamente tirando-as do seu rosto. Alexy levantou o olhar vermelho e olhou diretamente para os verdes do outro, sentia-se péssimo, envergonhado e culpado. Entenderia se Kentin jamais olhasse em seus olhos novamente. Porém, o moreno apenas pousou as mãos nas laterais do seu rosto e limpou suas lágrimas com o dedo polegar.

— Não foi a sua culpa, você foi... — Kentin hesitou naquele momento, respirando fundo e engolindo sua raiva e tristeza. — Foi propositalmente drogado para fins... sexuais. — Viu os olhos rosados se arregalarem, mas não havia maneira fácil de dizer aquilo, nem mesmo para ele. — E mesmo se fosse algo do seu juízo, eu não lhe julgaria. Então não fique se martirizando por causa disso.

— Você está dizendo... Que me drogaram para poderem fazer sexo comigo? — Alexy perguntou incrédulo, sentindo sua vontade de se esconder aumentar. — Argh! Como pude dar uma mancada dessas? Devem ter colocado na minha bebida. Eu sou um idiota. — Bradava o jovem de cabelos azuis batendo na sua própria cabeça para poder se punir.

Apenas parou quando sentiu um par de braços quentes o rodearem e por algum motivo, se aconchegou neles calmamente, encostando a cabeça em seu ombro a fim de esconder seus olhos. Ele sempre imaginou essas coisas com jovens, mas ele, em seu auge dos vinte e quatro anos, nunca pensou que cairia em um truque desses.

— Você não é idiota. Isso é mais comum do que pensa, Lexy, infelizmente. — Consolou Kentin com tristeza carregada em sua voz. — Não sei como isso exatamente aconteceu, mas em nenhum dos casos você deve levar a culpa por isso.

— Eu sinto muito... — Murmurou o professor com a voz quebrada.

— Não sinta. Eu só estou aliviado de ver que pude chegar a tempo. Não sei o que faria se eles tivessem feito alguma coisa para você.

As palavras do amigo o fizeram se sentir um pouco melhor, embora ainda sentisse vergonha. Tentou até sorrir minimamente, mas tudo que conseguiu foi fazer seus lábios tremerem. Quando checou o relógio no criado-mudo quase teve um susto ao concluir que já estava muito atrasado para o trabalho.

Não deu muitas explicações quando pulou da cama e correu até o banheiro. Isso deu certo até a metade do caminho, até sua cabeça piar novamente, então ele desequilibrou e quase caiu. Apenas não sentiu o chão novamente, porque um braço o segurou.

— Você está bem? — Perguntou Kentin preocupado.

— Estou muito atrasado. Quero tomar ao menos um banho para amenizar essa sensação horrível da ressaca. — Explicou com um tom de pressa na voz.

O policial apenas assentiu com a cabeça quando o soltou em segurança e Alexy não quis arriscar novamente, dessa vez andando até o banheiro. Tirou o resto das roupas que ainda vestia e entrou debaixo do chuveiro, abrindo-o no mais frio que conseguia. Os músculos de seu corpo protestaram com a água congelada que desceu, mas sua cabeça agradeceu. Por um momento, até sentiu o som de água caindo em uma chapa quente.

Quando se sentiu ao menos um pouco melhor, saiu do chuveiro enrolado em uma toalha. Kentin já não estava mais no quarto, o que lhe deu mais liberdade para se vestir. Não estava com a mente acesa o suficiente para escolher um traje trabalhado, então colocou o básico que era um par de calças jeans e uma camisa, além de um casaco para se proteger do frio e tênis.

Saiu do quarto para poder procurar pelo seu amado e o encontrou na cozinha conversando com Armin. Pelo jeito, parecia que o gamer recebeu a notícia nesse exato momento, pois fazia uma feição incrédula e de desgosto, como se tivesse prestes a vomitar, até mesmo largou o pão que comia. Quando seus olhos caíram sobre seu irmão, se levantou no mesmo instante e correu até ele.

— Você está bem? Pelo amor de Kratos, não me mata desse jeito. — Os braços que o rodearam o fizeram vacilar, mas ele não fez nada por gostar daquele carinho.

— Eu sinto muito, Armin... — Alexy sentiu que iria desmontar a qualquer momento. — Eu não sabia...

— Shh... — Armin o atalhou, levantou a cabeça para encostar sua testa na do outro. — Não quero saber de desculpas, você está bem, está aqui, isso que importa. — Terminou dando um beijo na bochecha do irmão.

Alexy balançou a cabeça sem vontade alguma, apenas tentando se forçar a acreditar naquilo e sentou-se em uma cadeira qualquer, por não aguentar ficar mais um minuto em pé. Teve que puxar uma grande massa de ar pelas narinas, pois sentia o ar rarefeito. Por algum motivo, não sentiu vontade de comer nada, pois temia que o comesse, voltaria instantes depois. Apenas se mantinha sentado, lutando contra as pálpebras pesadas.

— Então, você quer vir comigo registrar um boletim de ocorrência? — Kentin foi o primeiro a quebrar o gelo.

— O quê?! — Perguntou o azulado, incrédulo. — Por quê?!

— Podemos pegar os caras que fizeram isso com você. Eu quase os peguei ontem, mas pensei que seria melhor com você. — Explicou o outro se encolhendo. Alexy fez uma careta de desgosto.

— Eu não vou fazer isso, vão rir da minha cara. Eu sequer lembro do que aconteceu... — Murmurou o professor vacilante.

— Ninguém vai rir de você. — Alexy sentiu Kentin tocar a sua mão e seu primeiro instinto foi recuar com o toque, mas quando se deu conta que era um calor bom, manteve-a ali. — Eu vou te ajudar, eu juro. Podemos...

— Eu não quero isso! — Exclamou Alexy exaltado quando se levantou e foi para a sala, ficar na cozinha tinha se tornado sufocante de repente.

Kentin e Armin trocaram olhares preocupados, sem saber o que fazer, então não fizeram nada. O policial se ofereceu para levar o jovem de cabelos azuis para a escola, uma vez que ele teria que levar sua filha também e o rapaz acabou aceitando.

O caminho do prédio dele até o prédio de Kentin havia sido dolorosamente longo, uma vez que ambos estavam bastante quietos. Mais por parte de Alexy, porque sempre que Kentin tentava puxar algum assunto, o jovem não conseguia mantê-lo por muito tempo. A situação mudou assim que Louise pisou naquele carro, ela ficou extremamente alegre de ver seu querido professor ali. Alexy não conseguiu evitar um sorriso quando a viu, o primeiro do dia.

Então ambos foram conversando todo o caminho da escola sobre suas aulas, pianos e música, o assunto favorito deles. O professor sentiu como aquela menina mudou radicalmente o seu humor, fazendo sua mente aquietar das suas angústias, mesmo que por alguns momentos. Não foi o único a notar aquela mudança. Kentin também percebeu e sentiu-se mais aliviado de ver seu amigo melhor, além de uma estranha satisfação em ver sua filha se dar bem com Alexy.

Quando chegaram à escola, Louise deu um beijo na bochecha do seu pai e outro na bochecha de Alexy, uma vez que não haveria aulas com ele hoje e desceu do carro a tempo de alcançar um amiguinho que entrava na escola.

— Obrigado pela carona. — Murmurou Alexy abrindo a porta do carro para sair, mas foi impedido por uma mão no seu pulso. Sentiu seu coração bater mais rápido e um medo anormal o fez soltar daquele aperto bruscamente. Não havia explicação pelo fato de estar se sentindo assim, ele sempre gostou de contato físico. Ignorou aquilo.

— Eu só queria dizer... Desculpe-me por agir daquela forma com você no café da manhã. Eu não queria te pressionar nem nada. — Desculpou-se Kentin encolhendo de ombros.

— Não foi nada. — Amoleceu-se. — Eu quem sinto muito por ter explodido daquela forma, eu não sei o que deu em mim.

Kentin lhe deu um sorriso torto antes de abrir o porta-luvas e tirou dali um cartão, com o nome de uma clínica, o endereço e um número de telefone, estendeu o cartão timidamente para o jovem. Alexy pegou aquilo, sem saber ao certo como reagir e olhou para o policial esperando explicações.

— Quando se trabalha com isso, muitos centros de apoio me pedem para distribuir isso, para ajudar as vítimas. — Kentin disse parecendo que estava prestes a desmoronar. — Eu acho que isso pode lhe ajudar. — Completou engolindo em seco.

— Eu não entendi. — Respondeu Alexy desconfiado, olhando para o cartão. — O que exatamente é isso?

— É um centro de apoio às vítimas de estupro.

O jovem de cabelos azuis sentiu sua respiração alterar e acelerar, quando ele amassou o papel em suas mãos e jogou em Kentin com força.

— Eu não sou uma vítima! — Exclamou antes de sair do carro e bater a porta com força, marchando em passos pesados para dentro da escola.

Era um absurdo sem tamanho, ele pensava. Só porque uns caras o enfraqueceram para se aproveitar dele, não significava que ele havia sido vítima de estupro, ele não se sentia como tal, nada aconteceu porque o Kentin chegou bem na hora. Ele nunca sofreu estupro, então. Como ele pode ser uma vítima? Era um absurdo.

Não se lembrava do caminho até a sala dos professores ser tão longo assim, mas quando chegou lá, estava arfando de cansaço e se jogou na primeira cadeira que achou, tentando permanecer acordado, o que era difícil. Pegou a maior caneca no centro da mesa e encheu até a borda com café. Sem leite, açúcar, nada. Apenas o café puro, quem sabe assim lhe dava energia. Não sabia o que passar de lição nas suas aulas hoje, pois não fez um planejamento, nunca se sentiu tão perdido assim.

Enquanto bebia o café, ficou esperando dar o sinal, agradecendo por não ter aula no primeiro horário aquele dia, então seu atraso não teria tanto peso. Parou o olhar em um nome novo nos armários dos professores, concluindo que aquele devia ser do professor novo. Levantou-se se aproximou para enxergar o nome: Jean Valjean. Aquele nome não lhe dizia nada além do nome do protagonista do livro Les Misérables. Era engraçado ver alguém com nome de personagem.

Riu para si mesmo antes de recolher seus materiais e ir para sua sala de aula.