Parte dois.

— Nós realmente precisamos ir?

Claro, ele estava com o rosto virado na direção de um espaço vazio, mas ninguém invalidou o desespero de Will.

— Nico já explicou — Reyna respondeu. — Não façam isso mais difícil do que já é.

O mais velho dos dois assentiu com um movimento, e então as sombras que envolviam os pulsos de Annabeth contornaram também os de Will e juntaram-se em uma espécie de corda que partia da palma de sua mão. Nico precisaria guia-los no meio dos campos de trigo, e não podia se dar ao luxo de desviar o olhar.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Reyna — ele chamou. — Pronta?

A garota não hesitou.

— Quando vocês estiverem.

[...]

Annabeth chegou à conclusão de que não havia sensação pior. Ela sentia-se como um boi sendo irremediavelmente puxado para o abate. Seu coração martelava em seu peito, e cada célula de seu corpo lhe dizia que aquilo era a pior situação de sua vida.

As sombras que mantinham seus pulsos juntos eram grudentas, quase como fita adesiva. Caminhando ao seu lado, Will tremia como um cachorrinho deixado na sua chuva, e ela já estava mordendo a língua para evitar xingá-lo quando seus ombros batiam nos dela e a faziam tropeçar.

Eles haviam atravessado aquela parede.

O calafrio percorrera sua coluna há não muito tempo, mas ela justificara-a com a situação absurda na qual se encontrava. Não mais do que cinco minutos atrás, sua colega de faculdade a havia ameaçado com uma faca, e então um rapaz surgira do meio das sombras. Em seguida, ela havia sido — acorrentada? Deus, ela não sabia por onde começar.

De algum modo, transpassar uma parede não parecia tão fora de questão agora.

Os sons ao seu redor eram estranhos, difíceis de distinguir. Quase como se estivesse tentando ouvir uma música em um rádio fora de sintonia. Por ora, não ouvia nada além do crepitar do fogo nas tochas, mas o campo de trigo que se estendia até onde seus olhos alcançavam era inegável, por mais que o lado racional de Annabeth se recusasse a aceitar aquilo.

Trigo?

— As almas por aqui raramente falam alguma coisa — Nico confidenciou. — Eu só espero que hoje seja diferente.

Almas. Annabeth balançou a cabeça. Ela já havia conjecturado a possibilidade de contatar a polícia quando saísse dali — se saísse dali —, mas, agora, estava considerando ligar para um hospício.

— Não é muito esperançoso — Hazel comentou.

— Nunca é — Reyna respondeu. — Vamos, por ali.

Dos três, eram os mais velhos quem pareciam saber para onde estavam indo, embora Nico parecesse um tanto mais experiente.

— Nico — ela chamou. — Trago-os mais para perto. E não os deixem ir.

Annabeth não entendeu o que ela disse por um momento, mas então sentiu um puxão e cambaleou para frente, quase perdendo o equilíbrio, até ela e Will trombarem com alguém. Ela abriu a boca para dizer algo — provavelmente não muito educado — mas então o som de algo perigosamente afiado cortou o ar ao lado de sua orelha.

— Abaixem — Reyna instruiu. — As coisas vão ficar feias agora.

— Onde nós estamos? — Will suplicou.

— Calma, raio de sol — ela riu, mas Annabeth notou que não havia nenhum humor em sua voz, apenas escárnio. — Estamos onde todos os bravos guerreiros acabam depois da morte.

Annabeth ouviu passos, e alguma coisa pulou em alguém. Nico os puxou mais para perto, e ela se deixou ser envolvida pelos braços magros dela. Ouviu grunhidos — Reyna, definitivamente — e urros que não pareciam exatamente humanos. Ouve algum tipo de conflito, e então um urro gutural cortou o ar. Ela escutou uma lâmina transpassando o que parecia ser uma placa de metal — céus, quem infernos tinha força o suficiente para atravessar uma armadura? E que tipo de arma era aquela?

Ela notou, como de súbito, que embora sua visão não estivesse obstruída, nada fazia muito sentido ali. Ela podia ver os ramos de trigo, e os vultos que desapareciam pela colheita, todos envoltos em mantos escuros, mas era difícil distinguir qualquer coisa. Ora, via o que parecia ser alguém os espreitando, mas, quando virava a cabeça para olhar, não havia nada ali.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Talvez a venda não houvesse sido uma sugestão tão ruim, afinal.

— Esse não serve. — Reyna respirou fundo. Não havia cansaço em sua voz, mas ela também não parecia agradada.

— Precisamos de alguém que não tente nos assassinar assim que voltarmos para o mundo mortal — Nico concluiu, afrouxando um pouco o abraço. Annabeth respirou com alívio.

— Pode ser um pouco difícil encontrar esse tipo de cara legal por aqui — veio a resposta.

Annabeth tornou a olhar para Reyna, e, pela primeira vez, conseguiu enxergar com clareza o que a garota havia feito. Sob o seu pé direito, jazia um homem alto e musculoso como um touro, coberto de armadura e com metade do rosto queimado, a barba ruiva chamuscada nas laterais. Ele não se movia, e havia um sabre enfiado em seu corpo.

Nenhum sinal de sangue.

Ela lembrou-se daquilo que os três estavam repetindo desde que haviam começado a descer as escadas. Submundo.

Balançando a cabeça, ela tentou livrar-se de tais pensamentos. Eles não podiam estar... não podiam realmente estar no mundo dos mortos.

Não é?

Mas então, que outra explicação havia para a ausência de sangue no cadáver que Reyna mantinha sob um dos pés? Ou para o fato de que o homem parecia usar o uma armadura medieval extremamente realista, como se houvesse acabado de sair de um conflito?

Mais importante: era possível matar alguém que já estava morto?

Eles andaram mais um pouco. Annabeth dessa vez caminhava com muito mais cautela. De algum modo, os outros três continuaram evitando os ataques — que, por algum motivo, aconteciam com ridícula frequência. Ela pensou ouvir Reyna gritar de dor em um algum momento, e Nico definitivamente xingou mais do que Annabeth já o ouvira falar naquele ano todo, mas, até agora, estavam todos vivos.

Ou, ao menos, o mais próximo disso.

— Pelo lado bom — Reyna suspirou. — Se morrermos aqui, não precisamos pagar o Caronte, certo?

Annabeth entendeu a piada, mas não achou muita graça. Hazel, por algum motivo, abaixou a cabeça.

Submundo, campos de trigo e agora Caronte. Annabeth conhecia mitologia. Conseguia ligar os pontos, mas mesmo assim, não fazia sentido. Na mitologia grega, os Campos Asfodélos eram para aqueles sem grandes feitos em suas vidas. E, até onde sabia, as almas que o habitavam não possuíam realmente consciência. Os homens e mulheres espectrais que os atacavam pareciam saber exatamente o que estavam fazendo.

Aconteceu mais rápido do que ela conseguiu escutar. Em um momento, estava sendo guiada pelos campos de fosse-lá-o-que-fosse, ouvindo Reyna, Nico e Hazel batalhando com seres que ela não gostava de imaginar, e no outro, havia recebido um golpe tão potente nas costas que caíra certeira no chão, levando Will consigo.

Ouviu uma respiração pesada, quase inumana, no pé do ouvido, e uma voz masculina grunhiu. Will debateu-se, mas Annabeth estava presa sob o corpo de seu atacante.

Ao menos, seus três companheiros paranormais agiram rápido. Reyna lançou-se sobre o... ser, distraindo-o, enquanto Nico e Hazel trabalhavam para tirá-la dali.

— Precisamos voltar! — Hazel decretou.

— É, eu percebi!

Nico a puxou com tanta força que Annabeth saiu rolando pelo chão. Estava sendo arrastada pelos pulsos, arranhando a pele no solo áspero. Mas estava se afastando do conflito, e era isso que importava. Nico avançou rapidamente, e ela sentiu o calafrio percorrendo seu corpo mais uma vez.

Antes que pudesse de fato retornar para o cômodo, no entanto, foi puxada de volta pelos tornozelos. Nico tentou mantê-la segura onde estava, mas foi atacado por outro ser que Annabeth não foi capaz de distinguir. Ao longe, ouviu Will soltando um gemido de dor. Viu, pelo canto dos olhos, que Reyna tinha uma espécie de garra atravessada no abdome, mas continuou avançando afim de ajudar o loiro.

É, nunca se sabe. Até aqueles três lunáticos pareciam ter bons corações, afinal.

Mas Annabeth não tinha realmente cabeça para pensar naquilo agora. Foi arrastada pelo solo e então virada, de forma a encarar o que a atacara. Conseguiu distinguir um corpo descomunal e uma boca cheia de dentes, mas suas têmporas doíam sempre que tentava focalizar o olhar.

Desviou de um soco que certamente teria massacrado seu crânio em três, sem saber muito bem como fez aquilo.

O monstro — ou criatura, ou fosse lá o quê — então congelou. Annabeth conseguiu, mesmo com a visão turva, ver as írises dele rolando nos globos oculares, e então ele desabou. Teria caído sobre ela e a transformado em massinha, se no momento seguinte dois braços firmes não a houvessem envolvido com mais rapidez do que ela achava possível e a levado para longe.

O calafrio quase não a incomodou daquela vez.

Mas ela estava tonta, e nauseada, e quase não conseguia distinguir seus arredores, embora estivesse de fato de volta ao mundo mortal. Reyna retornou, carregando Will nas costas, e Nico ajudou Hazel — que mancava sofrivelmente — a atravessar a pintura e a apoiou enquanto ela fechava a passagem.

O silêncio que se seguiu foi mórbido e arrepiante. Nico não ousou olhá-la nos olhos, e Reyna tomou cuidado ao deitar Will, inconsciente, no chão. Annabeth estava prestes a desmaiar, conseguia sentir isso, mas não queria parecer fraca. Hazel respirou com dificuldade uma, duas vezes, e cada suspiro sôfrego que escapava de sua boca fazia uma das tochas da escadaria se apagarem.

Foi só quando ela abriu os olhos dourados e encarou Annabeth, que ela tornou a si:

— Annabeth... quem é esse?

Com um movimento rápido — rápido demais, ela concluiu, quando seu almoço se revirou em seu estômago — Annabeth virou-se para a direção que o olhar de Hazel apontava.

E ela viu, também.

Um rapaz, aparentemente adormecido, deitado de costas no chão ao lado dela. Ela não precisou debater muito consigo mesma para saber que havia sido ele quem a salvara poucos minutos atrás. Ele tinha pele parda, cabelo preto bagunçado, e muitas cicatrizes espalhadas na parte exposta de sua pele, o restante coberto por uma túnica branca simples, adornada com um cinto dourado. Um de seus pés estava descalço, e o outro coberto por uma sandália de couro.

Ela inclinou-se, e tocou-lhe levemente o rosto.

Não parecia, de modo algum, estar respirando.

— Ei — chamou. — Ei, você está bem?

Ele franziu o rosto, e ela soltou uma respiração aliviada. Ele parecia estar acordando aos poucos.

— O impacto entre o nosso mundo e o dele deve ter sido demais — Nico concluiu — talvez precise de um tempo para despertar.

Ele dobrou os braços, levantando um tanto o torso. Engoliu em seco. Annabeth levou uma mão até o pescoço dele, para checar a pressão sanguínea.

E logo tinha duas mãos fortes e firmes como concreto lhe rodeando o próprio pescoço e a privando de ar. O rapaz abriu os olhos verde-mar, escuros e gélidos. Enquanto Annabeth sentia o que restava de sua consciência escapando, pontos escuros surgindo em sua visão, ele murmurou, em uma voz tão profunda que fez as paredes da mansão tremerem:

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Tira as tuas mãos imundas de mim, neta de Ζεύς.