Depois de uma meia hora que os não infectados da casa tinham almoçado, todos se reuniram no quintal. Alex e Helena ficaram na sombra enquanto Selênia e Sebastian treinavam golpes no gramado. Não estavam fazendo um combate, apenas treinando golpes de forma rigorosamente lenta. Tão lenta que chegava a ser muito mais difícil de praticar do que simplesmente lutar. Um antigo modo de treinar resistência e deixar os músculos mais fortes. Era bom para Selênia que não podia fazer movimentos muito bruscos com o braço suturado, mas não podia negligenciar suas práticas diárias. Afinal a prática leva a perfeição, não é esse o ditado? Mantinham um ritmo constante, inspirando e expirando juntos numa sincronia quase perfeita. Alex ficou impressionado. Era aquilo que ele deveria buscar ter com a Selênia para lutarem bem lado a lado. Até o momento só o que tinham feito foi testar as habilidades um do outro. Precisavam começar a se olhar mais como parceiros de combate e menos como rivais nas artes marciais. Culpa do que inconscientemente pensavam um do outro. De algum modo Alex via Selênia como alguém que poderia superá-lo e isso o chateava em algum cantinho escuro de seu subconsciente, enquanto ela o via como um meio de comparação com os Lich, achando que se o vencesse, não teria nenhum insolúvel que pudesse para-la. O trabalho em equipe estava em zero pontos. Ambos estavam esquecendo que ser forte sozinho não é suficiente para derrotar o tipo de inimigos que tinham. Por isso nenhuma missão do DCII é feita a solo, há sempre várias pessoas envolvidas.

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Quando o sol já tinha baixado a ponto de deixar uma longa sombra no quintal, Sebastian cedeu seu lugar para Alex, colocando bastões nas mãos dele e de Selênia. Treino com bastões era um dos preferidos de sua irmãzinha, e ele propositalmente deixou essa parte por último cedendo seu lugar. O treinamento de qualquer integrante do DCII segue uma base regular, portanto Alex recebeu o mesmo tipo de treino que eles. Porém, fazer algo simultaneamente com outra pessoa não significa sincronia, algo muito mais complexo. É um jogo de empurra e puxa, onde você tem que conhecer muito bem seu parceiro para saber a hora certa de dar um passo à frente ou recuar. Cada um tem seu ponto forte e fraco. A verdadeira sincronia acontece quando parceiros usam seu ponto forte para fortalecer o ponto fraco um do outro. Contudo, para que seja realmente eficaz tem que ser fluído, automático, sem pausa para pensar. Ao lutar junto com outra pessoa não se pode pensar individualmente. Tem que pensar em si como parte de um corpo. Por exemplo: digamos que você seja o braço direito com a espada, seu parceiro o braço esquerdo com o escudo. Se o braço direito não recuar e permitir que o escudo defenda um golpe que não pode ser desviado pela espada, o corpo sofre dano. Mesma coisa se o escudo não der espaço suficiente para a espada atacar o adversário no momento certo, permitindo que o inimigo tome vantagem e cause dano ao corpo.

O que Sebastian queria ver, deixando Alex seguir com o treino da Selênia, era se eles conseguiriam agir como um corpo ou se agiriam como indivíduos. Os pontos fortes de Alex são: ser paciente, experiente (em combate real) e estratégico. Os fracos são: ponderar em excesso e ter perdido muito de sua autoconfiança, deixando-o inseguro para fazer ataques ousados. Os pontos fortes de Selênia são a sua velocidade de resposta, e os ataques ousados. Os pontos fracos são: não ser experiente, ser ansiosa, e agir precipitadamente.

Percebe-se que seus pontos fracos e fortes são exatamente opostos, o que falta em um, tem no outro. Portanto, ao conseguir conciliar suas habilidades serão uma dupla incrível.

Começaram o treino com os movimentos mais básicos. Nenhum problema por enquanto. Moviam-se em conjunto perfeitamente bem, mas até o momento não havia tido nenhuma necessidade de alguém tomar a iniciativa. Quando os primeiros movimentos de nível médio se aproximavam, Sebastian ficou atento. Muitos golpes precisam de mais do que força e velocidade. Exigem controle e paciência. Por um instante pareceu que Selênia se adiantaria, aumentando a velocidade de um golpe. Mas num breve segundo seu olhar encontrou o de Alex e ouve algum tipo de acordo. Ela segurou o ímpeto e seguiu o movimento dele. Se não tivesse feito isso o golpe teria saído errado, o que em um combate real poderia machucá-la ou abrir uma brecha na sua defesa. Prosseguiram o treino desta forma, trocando olhares antes dos golpes particularmente complexos. Nos golpes que exigiam mais velocidade Alex deixava Selênia dar o ritmo e a seguia. Para um primeiro treino desse tipo entre eles, até que foi muito bom. Apesar de tudo, aqueles dois só se conhecem a não mais que uns três dias. Ainda estranham a presença um do outro como gatos domesticados que repentinamente se vêem tendo que dividir o mesmo território. Mas de modo geral estavam trabalhando bem em conjunto. São guerreiros muito excepcionais, e sabem perfeitamente bem que a sobrevivência depende do trabalho em equipe, por mais que não quisessem admitir isso a si mesmos.

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Ao acabar o treino com bastões, Sebastian falou para Selênia descansar um pouco enquanto ele treinava com Alex. Fizeram treino de combate já que nenhum dos dois tinha uma sutura para preservar. Adivinha quem levou a melhor? Alex é claro, ele era especializado em combate corpo a corpo, além de ser um insolúvel. Já Sebastian era especializado em armas de fogo de longo alcance. De qualquer modo foi uma bela luta. Selênia e a mãe aplaudiram e levaram água para eles que estavam arfando e suando em cântaros. Sebastian bem mais que Alex por ter treinado por um bom tempo antes com Selênia.

Enfim dentro da casa novamente, os três que tinham andado se exercitando, tomaram banho e foram relaxar na sala. Não queriam assistir o que estava passando na TV, era alguma novela que Helena estava acompanhando, então decidiram jogar um jogo de tabuleiro. Sebastian subiu para pegar o jogo que estava guardado numa caixa com outros jogos em cima do armário dele. Aproveitando que ele não estava por perto Selênia se virou para Alex e perguntou:

— Por que ele não ganhou peteleco também? — tinha ficado meio inconformada com isso. Quando ela perdia, mas tinha lutado bem, levava peteleco na testa, mas Sebastian não? Era injusto.

— Porque o Sebastian não precisa que lhe digam que ele lutou bem. Ele sabe as extensões de suas próprias habilidades. Se eu desse um peteleco nele seria como um insulto — Alex explicou calma e pacientemente para Selênia. — Já você, precisa amadurecer mais — prosseguiu e deu um peteleco na testa dela, como que para enfatizar o que falava. Rapidamente ela levou as duas mãos ao local e ficou olhando-o com cara emburrada por baixo das mãos. Se afastou dele no sofá, cruzou os braços e virou o rosto para o outro lado. Após um tempo, descruzou parcialmente os braços e levou uma mão à testa, alisando o local do peteleco. As bochechas infladas em seu aborrecimento.

Alex ficou sorrindo com a cena. Era exatamente disso que ele estava falando. Ela estava agindo como criança. Calmamente se aproximou tirando um band-aid do bolso. Pegou-a pelos ombros girando-a em sua direção. Ela virou, mas não o olhou, desviava a vista para qualquer outra coisa na sala que não aquelas íris castanhas com o brilho condescendente de quem passa remédio no machucado de uma criança teimosa que ralou o joelho após ter sido avisada para não correr porquê aquilo iria acontecer. Ele estava certo, e ela sabia que estava sendo imatura, mas não queria dar o braço a torcer. Tranquilamente Alex abriu o band-aid, e afastando a franja dela colocou-o alí onde a tinha atingido. Na mesma hora a irritação de Selênia se evaporou, como uma bola cheia de ar sendo esvaziada. Os ombros, antes tensos, relaxaram instantaneamente. Ela levou uma mão à testa suspirando, admitindo silenciosamente a derrota e corando. Mais uma vez se afastou dele, porém não tanto quanto antes. Tornando a sorrir, ele voltou a sentar onde estava quando deu o peteleco nela. Estava achando-a muito fofa. "Será que é assim ter uma irmã?" Perguntava-se. Não saberia dizer, já que nunca tinha tido uma. Mas achava que o sentimento que começou a lhe preencher o peito desde a noite anterior era o amor fraternal. Isso o fazia querer protegê-la, cuidar dela, fazê-la rir, ou provocá-la. Isso era novo e muito interessante para ele, já que nunca tinha sentido algo assim por outra pessoa. Aquecia seu peito de forma cálida e doce. Estava gostando muito dessa sensação, o que o deixava feliz de um jeito que só esteve algumas vezes antes de ter sido apunhalado por seu ex-parceiro, aquele estrupício.

Sebastian retornou com a caixa do jogo nas mãos e colocou-a sobre a mesinha de centro abrindo-a e arrumando o jogo ali. Reparou com a visão periférica que sua irmã estava esfregando a testa embaixo da franja constantemente, sentada longe de Alex, onde não estava antes quando ele subiu. Ficou imaginando se teria acontecido algo entre eles enquanto não estava ali. Alex não dava indicação nenhuma de que tinha, mas Selênia era muito transparente. "O que será que rolou? Eu deveria perguntar a ela depois? Não deve ter sido grande coisa porque minha mãe não estaria mais tão concentrada na novela..." pensava arrumando as peças do jogo sobre a mesinha de centro. Por fim separou as cartas, e deu a cada um o tanto de dinheiro correto. Estavam jogando "O jogo da vida". Ele tinha decidido por este pelo simples motivo de não ser um jogo de estratégia, o que queria dizer que para ganhar dependia-se mais de sorte que de inteligência. Se fossem jogar um jogo de estratégia ele e sua irmã ficariam em desvantagem perto de Alex. Selênia mais que ele. Portanto, não seria justo.

Giraram a roleta para ver quem sairia primeiro, Selênia ganhou e a partida seguiu em sentido horário. Jogaram por mais de duas horas. Umas quatro partidas ao todo. O placar ficou dois para Selênia, um para ele, e um para Alex. No momento que decidiam jogar mais uma, Helena chamou seus filhos para ajudá-la a preparar o jantar. Eles se levantaram deixando Alex guardar as peças do jogo na caixa. Ele guardou tudo certinho e deixou a caixa fechada sobre a mesinha de centro. Sentando no sofá ficou trocando de canal sem nada para fazer. Pensou se deveria ajudar eles na cozinha, mas achou melhor não. Como não precisava comer essas coisas, nunca tinha aprendido a cozinhar. Não sabia nem fritar um ovo, ou cortar uma cebola, seria mais que inútil. Acabaria atrapalhando. Mesmo assim, sentado ali à toa, enquanto todo mundo fazia alguma coisa era algo que o estava deixando inquieto. Começou a tamborilar os dedos nas coxas. Mexeu no celular. Resolveu dar uma volta na rua. Levantou e saiu avisando que ia dar um rolê e já voltava.

Do lado de fora tirou os fones bluetooth do bolso da calça e colocou nos ouvidos. Procurou por um tempo no celular até achar a música que queria. Uma música de piano que o tranquilizava, Clair de lune de Claude Debussy. Roger costumava tocá-la no piano eletrônico do canto da sala de estar, quando não conseguia dormir. Muitas vezes Alex acordava com o som e ficava escutando escondido enquanto Roger tocava, totalmente absorto. Sentiu a música acalmando seus nervos inquietos assim que ouviu as primeiras notas. Suspirou levantando o rosto para o céu, a brisa fria de inverno refrescando sua pele quente de insolúvel. A refrescância era como a da pasta de dente. Abriu os olhos satisfeito, mas mal começou a andar recebeu uma mensagem no celular.

: Boa noite A! Você parece muito bem, como sempre.

O remetente era desconhecido (número privado), mas Alex sabia perfeitamente bem quem era. Só tinha uma pessoa que o chamava desse jeito e poderia estar vigiando-o de algum modo. Grilo. Ele sorriu. Pelo visto Grilo já tinha ativado seu programa de vigilância contra ameaças, que hackeava as câmeras da vizinhança que queria monitorar. Deveria estar vendo Alex por uma delas.

Grilo é um dos agentes de apoio interno. Um prodígio da computação que o governo descobriu através dos vários codecs que lançam constantemente na internet para ver quem consegue decifrar. Infelizmente quando isso aconteceu outras pessoas já estavam de olho no rapaz. Uma organização criminosa que queria usar as habilidades dele para atividades ilícitas. Grilo foi sequestrado e foi preciso um grande esforço do governo para achá-lo e tirá-lo das mãos dos bandidos. Acabaram pedindo apoio do DCII. Os superiores deram o caso para Roger que estava mais apto a resolver esse tipo de problema, devido a sua habilidade de planejamento que havia salvado outras vidas no passado. Alex acabou sendo escolhido para ser enviado na missão com as instruções de Roger. Na época ele tinha entrado para o DCII a pouco tempo e não tinha muita experiência prática, mas como os veteranos capazes de realizar a tarefa estavam todos em outras missões Roger decidiu deixar o trabalho para o único novato em quem tinha plena confiança de suas habilidades e que sabia que seguiria a risca suas ordens, já que ele próprio não podia se dar o luxo de sair do QG sendo o coronel. Foi assim que Alex se envolveu no resgate de Grilo. Ele teve bastante apoio de agentes especiais que não tinham relação com o DCI quando invadiu o local onde mantinham o jovem magricela, mas como foi a primeira pessoa que o rapaz viu, automaticamente foi implicado como seu salvador. Alex cansou de tentar convencê-lo que o crédito pelo resgate na verdade era do governo, já que se tal não tivesse se empenhado tanto naquilo, ele nem teria ido àquela missão. Grilo nunca deu ouvidos quando Alex dizia isso. Talvez porque quando foi libertado de seu cativeiro por ele, viu-o lutar e matar vários criminosos para proteger o gênio adolescente que foi resgatar. Isso foi por volta de cinco anos atrás quando Alex tinha 22 anos, mas a aparência de um garoto em torno dos 16 anos. Grilo tinha 16, e a visão de outro rapaz que parecia ter sua idade fazendo todas aquelas coisas o deixou mais que impressionado. Naquele tempo fazia menos de um ano que Alex tinha entrado pro DCII. Devido a sua aparência jovem precisou convencer os agentes que foram trabalhar com ele no resgate, de sua capacidade, já que eles não sabiam nada sobre o VMHV e seus infectados. Derrotou-os numa breve luta. Os seis ao mesmo tempo, apesar de ter tomado uns belos golpes no processo. O que os deixou se perguntando quem era aquele garoto.

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Quando a missão de resgate acabou, por dois anos Alex não soube nada do Grilo, até que foi informado que ele estava sendo transferido para o DCII daquela região. Soube por Roger então, que desde a última vez que o tinha visto o garoto prodígio esteve trabalhando para o governo com espionagem e segurança nacional. Querendo retribuir de alguma forma o agente que o tinha salvo, Grilo procurou incansavelmente por Alex e por acidente esbarrou no maior segredo da sociedade atual. O VMHV. Quando o governo descobriu já era tarde. Ele tinha reunido um dossiê, e ameaçou espalhar a verdade para toda a humanidade se não o transferissem para o departamento onde Alex trabalhava. Decidindo que era um preço barato para manter a ordem pública, o governo atendeu seu pedido, mas ainda mantém um olho aberto com ele.

Ignorando a mensagem Alex foi lentamente até o fim da rua ouvindo a música. Como esperava, quando se virou para fazer o caminho de volta recebeu outra mensagem.

: Qual foi A? Sabe que não gosto quando me ignoram.

: O povo daqui mal fala comigo com medo de me ofender e eu descobrir seus podres e espalhar internet afora.

Grilo o chama de A não apenas como uma abreviação extremamente curta do nome de Alex. É que enquanto procurava por ele descobriu as notas dos exames dele para entrar no DCII, todas eram de A à acima. No início Grilo o tinha apelidado como "o cara do A", depois passou a chamá-lo simplesmente de A.

Será que é porque foi exatamente o que você fez com aquele cara do cabelo engraçado que também era do apoio interno? :

Alex digitou em resposta, sorrindo ao se lembrar.

: Ei! Aquele cara mereceu!

: Ele quase estragou uma missão importante tentando me boicotar só porque não ia com a minha cara.

Eu sei, mas isso não muda o fato de que você expôs os podres dele pela internet inteira. :

: Ok.

: Você está certo.

: Mudando de assunto, como está indo com a nova parceira?

Essas últimas mensagens vieram depois de um tempo considerável.

Muito bem, pra falar a verdade. :

: Ela parece bem competente pela ficha.

: Além de bonita.

: Fala bem de mim pra ela, ok?

Ok. :

Pode deixar. :

Digitou Alex dando uma risadinha consigo mesmo. Depois prosseguiu escrevendo.

Você não tem nada melhor pra fazer além de me vigiar, não? :

: Não.

Foi a resposta, rápida e concisa.

Pois eu tenho. :

Então fique aí com suas câmeras que eu vou entrar. :

Boa noite, Grilo! :

Terminando de digitar, Alex entrou. Tinha passado uns poucos minutos na rua. Ao voltar encontrou Selênia e Sebastian já na sala esperando o jantar ficar pronto. Sentou com eles e ficaram assistindo TV enquanto Helena andava de um lado a outro na cozinha atarefada. Não muito tempo depois ouviram a porta da frente abrindo e se viraram para ver quem entrava, embora já soubessem quem era.