Utopia

Capítulo 23


Um arrepio cobriu toda a minha pele.

-Sou eu... Camila.

Ela afastou-se para se levantar, no entanto, perdeu novamente o equilíbrio. Ainda com uma das mãos na cabeça, murmurou baixinho consigo mesma:

-Ai minha cabeça.

-Com licença, garota - um senhor aproximou-se de mim e ficou diante de dona Vera.

Era o mesmo homem que eu vira uns dias antes na entrada da loja. Ele a ajudou a se levantar e os dois foram para o fundo da confeitaria. Eu fiquei ali imóvel e sem entender nada do que tinha acabado de acontecer.

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-Camila...? - uma voz conhecida disse perto de mim.

Levantei os olhos e vi Karen, uma das mais antigas funcionárias.

-Você tá bem? - ela ofereceu a mão para me ajudar a levantar.

Já de pé, caminhamos para um canto sossegado perto da entrada.

-Você não sabia, né?

-Sobre o quê?

Karen soltou um suspiro longo e prosseguiu:

-Dona Vera não gosta que todos saibam disso, mas depois do que acabou de acontecer, não dá mais para ficar escondendo de você.

Ela parou um instante, como se buscasse as palavras certas.

-Ela já te falou sobre as pessoas terem asas?

-Já - respondi no automático.

-Então. Dona Vera começou com essa história a alguns meses e quando a levaram no hospital, descobriram que ela está doente.

Arregalei os olhos, confusa.

-Ela tem o quê?!

-Alucinose orgânica. E um dos sintomas são essas alucinações. Mesmo não passando de peças que a mente prega nela, dona Vera acredita fielmente que aquilo é um dom.

A voz de Karen se tornou irônica no final. Então quer dizer que tudo não passou de uma mentira?! Toda aquela história sobre asas, sobre as minhas asas, que uma parte de mim realmente acreditou, não significava nada? Abaixei os olhos para o chão para esconder a decepção que sentia.

-E por que ela não se lembrava de mim?

-Perda de memória é outro dos sintomas.

Cerrei os punhos e encarei a porta dos fundos.

Vendo para onde meu olhar se dirigia, Karen falou:

-Ela está muito mal, Camila - parou um momento para consultar as horas no relógio de pulso e continuou - acho que logo, logo vão fechar a loja. É melhor você ir. Eu só vou ver como estão as coisas e vou embora também.

-Mas...

-Não se preocupe - ela me interrompeu - Vá esfriar a cabeça que até amanhã tudo deve se resolver.

Vi que não adiantava discutir e acabei concordando. Peguei minha bolsa ao lado do caixa e me despedi de Karen. Enquanto andava pela rua, não parava de pensar em tudo que ocorrera. Sem nem perceber direito para onde ia, só parei de andar quando cheguei a uma praça e me sentei encolhida à sombra de uma árvore. Lembrei-me do sorriso gentil e daquele olhar hipnotizante de dona Vera. Ela parecia tão mal e frágil quando dissera que não me conhecia que senti um aperto na garganta assim só de lembrar.

Esqueci do tempo, das pessoas e de qualquer som ao meu redor. Nada disso importava agora. Assim, foi em pensamentos como este que fiquei ali, desvaneando.

Num certo momento, levei um susto quando um poste de luz se acendeu perto de mim. Olhei para o céu e vi que já havia anoitecido. Sem conseguir conter uma exclamação, levantei às pressas e fui o mais rápido que consegui para casa. Tinha me esquecido completamente do Hiago! Depois do que aconteceu ontem, torci para que o encontrasse bem.

Parei um instante na porta da frente e esperei minha respiração voltar ao normal. Eu sabia que tinha corrido demais, só que não podia deixar que o cansaço e aquela dor no peito me vencessem. Assim que entrei na sala, uma onda de alívio me atingiu quando vi uma das luzes perto dos quartos acesa e escutei um barulho de água jorrando. Ele tinha voltado! Avancei calmamente pelo corredor e segui até o banheiro. Eu estava tão despreocupada que nem falei nada enquanto ia ao encontro dele. Assim que parei em frente à porta, todo o meu corpo congelou. Hiago estava em frente a pia limpando um ferimento que cobria seu ombro e, quando se virou para me encarar, vi sangue escorrendo pelo canto de sua boca. Eu tinha certeza que minha cara devia ter passado do branco para o cinza e podia imaginar a expressão de pavor que ocupava meu rosto. Mas aquele olhar petrificado dele que, por mais que eu tentasse, não conseguia desviar, era o que iria me assombrar para sempre.

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