Renne

Quando se está submerso, o mundo parece outro, o tempo é medido pelas correntezas que guiam a direção da agua, você se sente parte daquele universo, mas sempre com uma ligeira impressão de que é um forasteiro e que a qualquer momento algo aconteceria e te levaria para as profundezas.

Olhei para cima, mesmo com a agitação da água pude ver uma pessoa me encarando de fora, sem muita alternativa resolvi subir.

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Quando coloquei a cabeça para fora da agua, senti a onda de ar inundar meus pulmões, o mais hilário de tudo, mesmo que um tanto quanto assustador, era que eu não parecia necessitar desse ar, pelo menos não dentro da agua, era certo que nela não havia ar, mas eu poderia viver submerso que isso jamais faria diferença.

— Você ainda vai se matar fazendo isso, Renne. – A voz de Eiri me despertou, eu sorri ao reparar que ele estava sentado na beira do rio, me esperando, o cabelo azul claro estava bagunçado e volta e meia era agitado pela brisa, seus olhos de um tom incrivelmente cinza estavam um pouco marejados, ele tinha dezessete anos, mas às vezes agia como uma criança de dez.

— O que houve? - Perguntei, me sentando ao seu lado e me enrolando em uma toalha que ele havia trazido, estávamos à beira de um rio, que se localizava atrás de um dos muros da vila ‘nobre’ em Jadis. — É o Mitch?

Ele assentiu e eu baixei os olhos, Mitch era o irmão mais novo dele, que havia sido escolhido para uma missão de rastreamento.

Eiri pôs a mão no rosto e se permitiu chorar. — Eles encontraram o corpo, Mitch está morto. - Eu o encarei, chocado e eu o abracei, deixando que ele chorasse o quanto quisesse. — Ás o matou, tenho certeza. Ele o matou.

Mitch era a única família que Eiri tinha, os pais foram mortos quando eles ainda eram bem pequenos, Mitch não devia ter mais que treze anos.

— Eu sei como se sente. – Murmurei, com sinceridade, afagando o cabelo dele. — O que temos que fazer agora é evitar que coisas assim ocorram com outros.

— Como?

— Mary está usando crianças porque pode manipula-los, por isso nós, que somos mais velhos, temos que tomar frente da situação.

Eiri se afastou, me encarando com duvidas.

— Você é mesmo um príncipe de copas? – Ele questionou, forçando um leve sorriso.

— Você é mesmo um soldado de copas? – Eu mostrei a língua e me levantei. — Não quero ver mais crianças morrerem, eles estão jogando meninos em campos de batalha contra oponentes bem mais poderosos, são meninos que poderiam estar estudando, se divertindo e vivendo em paz, não é justo com eles ter que abandonar suas famílias, não é justo com eles serem manipulados. Não quero mais casos como os de Mitch, seu irmão amava Ás, e morreu nas mãos dele, isso para mim é suficiente para provar que algo está muito errado.

— Mas Renne, isso significaria ir contra a constituição de sua mãe. – Ele suspirou quando eu virei à cara. — Eu sei que não se importa, mas as pessoas sim e todas estão do lado dos reis.

Eu sorri de lado, erguendo as sobrancelhas. — Nem todas as pessoas, meu caro amigo, nem todas. Venha. – Segurei a mão dele e comecei a puxa-lo para longe do rio. — Vamos fazer aliados.

~ ~ # ~ ~

O portal a minha frente reluzia enquanto girava. Eiri o abriu em uma arvore na floresta para que não fossemos descobertos, não é como se eu fosse ser punido ou coisa do tipo, mas eu não queria ninguém bisbilhotando minha vida.

Ajeitei o meu capuz e sorri para meu amigo, sem esperar mais, nós dois o atravessamos, eu não pude deixar de sorrir, adorava quando podia sentir-me livre.

Pouco depois lá estávamos, em uma vila pobre e delicada, as casas eram pequenas e a grande maioria era feita de madeira, as pessoas se vestiam de modo simples e seus semblantes estavam um pouco tensos, o que eu estranhei afinal a maioria sempre parecia ter um sorriso sonhador nos lábios.

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— O que será que houve? – Perguntei a Eiri, que deu de ombros, igualmente confuso.

Comecei a me aproximar de um aglomerado de pessoas, todos sentados em frente a uma das casas, eles não demoraram a notar minha presença e me encararam, com feições difíceis de definir, um homem mais velho se levantou, abrindo o portão da casa e apontando para que eu entrasse e ainda um pouco hesitante eu o fiz, Eiri me seguiu, fitando tudo a nossa volta com preocupação.

— Alguma coisa aconteceu. – Ele murmurou. — Essa não é a casa do líder dessa vila?

Eu apenas assenti em silencio, preocupado com as possibilidades, o homem abriu a porta da casa, nós entramos, passando pela cozinha simples e entrando em um corredor pequeno que levava ao quarto principal.

— Alteza? – Uma menininha me chamou e eu a encarei com um sorriso doce, retirando o meu capuz, a menina tinha curtos cabelos ruivos e usava um vestido simples e rosa, os pés estavam descalços e ela parecia um pouco magra de mais. Ela estava sentada em uma cadeira e parecia encantada com a minha presença.

— Olá pequenina. – Murmurei, voltando meu olhar à cama no meio do quarto, um homem estava deitado, com faixas por varias partes do corpo e ao seu lado uma mulher estava sentada, visivelmente aflita. —Por Deus, o que houve?

A mulher me encarou, sem tentar esconder as lagrimas. — Uns homens do exercito, vieram e o atacaram. – Ela voltou a encara-lo. — Não houve motivos, eles apenas... Fizeram isso.

— Precisam medica-lo, antes que seja tarde. – Eiri comentou, já se adiantando até o ferido.

— Como? Mal temos o que comer, imagine ter remédios. – A mulher conseguiu dizer, puxando a pequena menina para seu colo. — Tem nos ajudado muito, nobre príncipe, mas somos esquecidos, nem mesmo seu irmão pode intervir por nós.

Eu baixei os olhos e me aproximei, o homem agonizava e sua respiração parecia dificultosa, a mulher se levantou tirando a menina do quarto.

— A... Alteza? – O homem me encarou quando ajoelhei ao lado da cama e segurei sua mão. — Não sabe... Como me... Deixa feliz... Vê-lo.

— Não se esforce, por favor. – Pedi com delicadeza e ele sorriu. — Posso ajuda-lo, apenas feche os olhos.

— Tem certeza disso Renne? – Eiri se ajoelhou ao meu lado e eu assenti confiante, o homem fechou os olhos como eu havia pedido e me concentrei em seu coração, senti o peso do meu corpo diminuir e fechei os olhos, uma brisa parecia rodear meu corpo e tocar-me com delicadeza vez ou outra, eu podia ouvir as batidas do coração dele, podia ouvi-las se estabilizando, era como uma valsa, eu poderia dançar eternamente ao som da vida. Respirei fundo, sentindo minha energia diminuir e meu corpo pender para o lado, nem sequer tentei abrir os olhos, apenas me deixei perder a consciência.

~ ~ # ~ ~

Tudo parecia um pouco vago, mas eu ainda podia ouvir o som do violino, uma musica animada soava do salão, e lá estava eu, vendo todos dançarem, eu era pequeno demais para ter coragem de me aventurar pelo desconhecido, por isso permaneci onde estava mordendo meu próprio dedo e encarando todo mundo que dançava.

De repente senti alguém me pegar no colo e sorri ao sentir o perfume de Vanessa, minha mãe de criação, ela me abraçou sorridente e me encheu de beijinhos na bochecha.

Paulo vinha atrás, balançando Clary de um lado a outro, ele sorria para ela com doçura e sinceridade.

— Olá bebezinho. – Ele me puxou e me apertou fortemente, Vanessa comentou alguma coisa abstrata e saiu com minha irmã, provavelmente para dançar na festa.

— Papai eu quero nadar. – Pedi, inocentemente, e o semblante dele ficou um pouco sério.

— Sabe que não pode, você vai acabar ficando tempo demais na água e as pessoas vão estranhar.

— Ah! Poxa. – Resmunguei, mas ouvi um som alto que fez todos os sons da sala pararem. — O que foi isso papai? – questionei e ele me abraçou com mais força, me levando até Vanessa.

— Paulo tome cuidado, por favor. – Ela pediu antes dele correr com mais alguns homens para fora.

Todos correram para se esconder, eu me misturei na multidão, fugindo de Vanessa e dos outros, muitos gritos soavam lá fora e entre eles estava o de Paulo, eu não pensei em nada, apenas corri até ele, ouvi vozes me chamarem, mas não dei atenção.

Corri até o lado de fora, me esquivando dos homens que pareciam procurar alguém, no meio das sombras confusas das pessoas, finalmente o encontrei, perto da piscina encarando algo do outro lado.

— Papai! – Gritei, correndo ainda mais rápido, ele me encarou surpreso e, quando cheguei bem perto, me puxou para seus braços.

— Eu te amo. – Ele murmurou beijando minha testa olhou para trás e seu rosto demonstrou o medo que sentia, ele me encarou uma ultima vez e, antes que eu pudesse impedir, me jogou na agua. Só vi quando um homem ruivo o apunhalou pelas costas, me senti submergir e me deixei levar até o fundo. Logo Paulo também caiu, manchando a agua de um vermelho tenebroso, nadei até ele e o abracei, tentei de todo modo, mas nada fazia com que ele acordasse então apenas me permiti o desespero e a dor e afundei junto ao corpo dele.

~ ~ # ~ ~

Acordei com um pulo, suando frio e tremendo, a minha visão estava um pouco turva no inicio e os acontecimentos um pouco confusos na minha cabeça.

Eiri surgiu no meu campo de visão e parecia aliviado.

— Oque? Céus... – De repente um sorriso iluminou o rosto dele. — Que cara é essa Eiri?

— Você conseguiu Renne, você finalmente conseguiu. – Ele comemorou, me ajudando a sentar, eu estava em um sofá, no quarto principal. — Veja por si mesmo. – Ele apontou para a cama e eu quase desmaiei de novo ao ver o líder da vila sentado, sem machucado algum e com um largo sorriso.

— Alteza, eu não sei como começar a agradecer. – Ele murmurou e eu me levantei com dificuldade, sendo apoiado por Eiri.

— Não precisa agradecer, eu só... – Comecei, emocionado. — Fiz o que achava correto.

Ele veio até mim e me abraçou com força, um abraço quente e aconchegante, de um modo incrivelmente protetor.

— Você me curou, isso é um dom divino. Dou graças por estar nas mãos de alguém tão puro quanto você.

— O... Obrigado. – Murmurei um pouco envergonhado e sorri para ele.

— Venham, vamos comemorar. – Ele puxou a mim e a Eiri, nos arrastando para fora da casa, animado e incrivelmente vivo, eu não podia acreditar que havia finalmente conseguido curar alguém depois de tantos anos. Depois da morte de Paulo eu me bloqueei esse dom dentro de mim e a única vez que eu havia conseguido usa-lo novamente foi com Eiri e ainda assim havia sido incompleto.

Quando saímos, as pessoas se animaram no mesmo instante e começaram a nos abraçar e a rir, algumas crianças se aproximaram de mim e logo de Eiri, admirados por ele está vestido de soldado, meu amigo sorriu de modo sincero e começou a dar atenção a elas, de algum modo senti que ele precisava disso.

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— Nobre príncipe, nós não sabemos como lhe agradecer. – Algumas pessoas diziam, me deixando ainda mais envergonhado.

— Tudo bem, sem problemas.

— Mas o que veio fazer aqui? – O líder me perguntou, sorridente. — Tinha algo em mente.

Suspirei e logo arrumei a postura. — Na verdade, queria que vocês me apoiassem em algo. Eu posso não saber exatamente oque estão sentindo nesse momento, mas eu sei que a vida que as pessoas comuns de Copas levam é injusta, toda riqueza é dada aos nobres e os impostos são descaradamente cobrados de vocês, eu quero que isso acabe e para isso quero aderir as causas rebeldes.

As pessoas me encaravam confusas, preocupadas e até um pouco amedrontadas.

— Eu sei que parece loucura, mas é o jeito de conseguirmos paz. As uniões rebeldes estão em perigos e queria saber se vocês os abrigariam? Eu garanto a quitação de todas as despesas, eles podem montar acampamento e se manter, mas tem que se em um lugar seguro.

—Eu o apoio. – O líder comunicou, pondo a mão em meu ombro. Logos todos começaram a comentar animados sobre a ideia, aprovando-a.

Sorri para ele e o agradeci, tudo que ele fez foi me abraçar de novo e sair alegre até a filha, que o esperava ansiosamente.

— Ei! – Ouvi uma voz infantil me chamar, era uma das crianças que conversava com Eiri, mas a menina parecia um pouco distante do grupo e apontava para algo atrás da cerca. Eu corri até lá e me surpreendi ao ver que se tratava de um menino que não deveria ter mais que cinco anos, ele tinha cabelos loiros e a pele um pouco pálida.

— Parece ferido. – Eiri comentou, brotando do meu lado e se ajoelhando. — Tão pequenino. – Ele pegou o menino e o aconchegou em seu colo.

— É um de vocês? - Perguntei as crianças, que imediatamente negaram. Os adultos nos encaravam de longe e nenhum parecia conhecê-lo. — Isso é mal. – Me voltei a Eiri, que havia se apoiado a certa e acariciava a bochecha do menino, com uma delicadeza absurda. — Eiri? – O chamei e ele me encarou com um leve sorriso. — Acho que podemos leva-lo, quem sabe... Cuidar dele e descobrir de onde veio. – Propus, surpreendendo-o. — Se você conseguiu cuidar do Mitch, céus consegue cuidar de qualquer um.

— Obrigado Renne. – Ele murmurou, ajeitando melhor o menino em seu colo. Com duas ou três palavras outro portal surgiu, eu lancei um ultimo olhar para as pessoas e acenei em despedida, logo partindo pelo portal.

~ ~ # ~ ~

Saímos em meu quarto, graças a Deus, assim que vi minha cama, corri até ela e me joguei, Eiri apenas riu e voltou seus olhos ao menino.

Jeremie entrou alvoroçado e com raiva, e eu já previa a falação, lancei um olhar cumplice a Eiri, que riu novamente e saiu do quarto, me deixando a sós com o meu mordomo.

— Onde o senhor esteve o dia todo? – Ele começou o interrogatório e eu comecei a me embolar no cobertor, já me esticando para o interruptor. — Não me ignore Renne. O que pensa que está fazendo? - Bufei, e tapei a cara com o travesseiro. — Essa sua imaturidade ainda será um problema.

— EU SÓ QUERO DORMIR. – Gritei, cruzando os braços, ele pegou o travesseiro e, sem ao menos avisar, o jogou na minha cara.

— Olha essa malcriação menino. – Ele emburrou a cara e eu sorri. — Pirralho teimoso.

— Também te amo Jeremie, mas realmente estou com sono.

— Ta que seja. – Ele murmurou me dando um peteleco na cabeça e apagando a luz. — Eu só quero o melhor para você, Renne, desde que chegou aqui tudo o que todos tem feito é te tratar como inferior, eu quero que mostre a eles quem você é e que é capaz de liderar esse lugar. Um príncipe que se recusa a usar a magia é moralmente diminuído e você sabe disso.

— Eu não preciso da magia deles, sinto que se eu a usasse perderia meus dons e não quero isso, e vou provar que estão errados sobre mim. – Jeremie já começava a caminhar para fora do quarto e eu sorri, já começando a fechar os olhos.