Respirando fundo, Lucille colocou álcool em uma vasilha e mergulhou as agulhas lá dentro. Julian acompanhava a movimentação de sua ex-professora com olhos atentos. Todos os seus sentidos estavam alertas desde que ele sentiu o toque dela em seus braços e em seu peito, passando a atadura molhada com álcool para desinfetar os arranhados. Uma tensão quase palpável espalhou-se no ar. A jovem tentava fazer os curativos da melhor maneira possível, correndo os olhos em um tratado de enfermagem uma vez ou outra. Os fios de seu cabelo escapavam do coque frouxo, emoldurando o rosto sério.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Quando ela deu o último ponto no ferimento do braço dele, suspirou aliviada.

– Pronto, terminei. Vai ficar uma cicatriz, mas dizem que as garotas gostam de rapazes marcados. – ela sorriu.

– Obrigado, senhorita Grangier. Salvou minha vida.

– Que nada, Julian. Seus ferimentos não eram tão graves. Mas quem sabe? Posso me inscrever no grupamento de enfermeiras.

Para sua surpresa, Julian ficou serio.

– Não pense nisso, senhorita. A guerra não é algo bonito para ser ver. Não quero pensar em seus belos olhos vendo algo tão terrivel.

– A vida já me deu coisas mais terríveis para ver, Julian. – ela respondeu em voz baixa.

– Bem, eu já aborreci demais. Devo ir embora.

– Ir embora?! Nem pensar. Você deve mudar essas roupas. Temos que cortar esse cabelo e fazer essa barba. Se quiser ir embora, será pela manhã. E você irá certeiro ao Orfanato ver sua irmã e Padre Honoré.

Por alguns segundos ele se sentiu como se tivesse quatorze anos novamente e a senhorita Grangier estivesse lhe repreendendo por alguma travessura.

Sem esperar a resposta dele, Lucille começou a juntar as ataduras e os remédios.

– Devo ter alguma roupa do Gerard guardada. Não se preocupe por que estão todas limpas e ele não morreu de nada contagioso. Espere que eu vou buscar uma toalha pra você.

– Lucille, Lucille, espere. – ele a pegou subindo as escadas.

Ela procurou não olhar para o peito nu dele. Fixou o olhar no rosto. Julian subiu as escadas, ficando ligeiramente no nível dela.

– Eu não vou usar as roupas do seu ex-marido. – declarou ele. A voz ligeiramente alterada.

Lucille olhou surpresa para ele. Julian parecia tomado por uma irritação sem limites.

– Por quê? É como eu disse. Você não precisa se preocupar. Ele não teve nenhuma doença.

– Não é por isso. Na verdade... – ele pareceu estar as palavras certas. – Eu o detesto. De verdade. Sempre detestei.

A cor saiu do rosto dela.

– Mas... Eu não entendo.

– Eu já te explico. – Julian subiu mais um degrau, virando de frente para Lucille, prendendo-a contra a parede. Ela ficou nervosa com a proximidade dos dois.

– Eu a amo, Lucille. Sempre amei. Desde minha juventude quando, para mim, você era como um anjo salvador. Sua paciência ao ensinar a mim e a Nanette, seu cuidado comigo quando eu me envolvia em alguma confusão. Tudo isso eu guardei em meu peito, esperando que, quando eu fosse mais velho, poderia me declarar a você e nós ficaríamos juntos.

Lucille o fitava assombrada. Nunca passou pela sua cabeça que Julian a amasse.

– Mas, quando eu fiquei mais velho, aquele professor imbecil apareceu em sua vida e tudo se acabou. Para não cometer uma loucura, eu pedi a padre Honoré me mandar para a fazenda dos padres. Eu já tinha idade suficiente para sofrer sabendo o que aconteceria entre vocês dois depois do casamento. E agora, sabendo que ele não está mais aqui... – ele se aproximou ainda mais.

– Julian... O que está fazendo?

– Vivendo um sonho. – lentamente ele se inclinou na direção dela.

A moça arregalou os olhos de surpresa quando os lábios de Julian tocaram os seus. As mãos dele circundaram a cintura dela trazendo-a mais para perto. A única coisa que evitava um contato mais íntimo era a caixinha de primeiros socorros que ela mantinha junto ao corpo como se a mesma fosse um escudo.

Julian ergueu a mão para o rosto dela, acariciando-lhe o pescoço com a ponta dos dedos. Por um momento, Lucille sucumbiu a caricia, amolecendo-se junto ao corpo forte do rapaz. Com um gemido ele aprofundou o beijo movendo os lábios sobre o queixo da jovem descendo pela linha do pescoço.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Somente quando as mãos dele insinuavam-se sobre os seios, Lucille pareceu despertar.

– Não. – ela o empurrou. – Não posso... Isso não pode acontecer...

Ela subiu as escadas rapidamente. Ele permaneceu parado, sentindo o calor do corpo dela esvair-se lentamente do seu.

Lucille entrou em seu quarto e trancou a porta. Sentou-se na banqueta de penteadeira olhando seu reflexo no espelho. Não havia como negar que seus lábios pareciam mais cheios e seus olhos mais brilhantes. Mas seu coração estava pesado. Somente a Gerard entregara seus lábios. Ele fora o primeiro a possuir seus beijos e seu corpo. Nos braços dele descobrira a mulher sensual que habitava dentro de si.

Mas dois anos já se passaram desde a morte dele. Dois anos em que ela se trancara para os homens. E agora, esse homem que ela cuidara quando rapazinho, simplesmente a pressionara contra a parede e devastara suas reservas trazendo à tona a mulher que agora a fitava através do reflexo.

Viva! Era assim que ela se sentia. Nem as canções que ela cantava na noite parisiense a deixavam assim. Por que, seus lábios cantavam doces promessas, mas seu coração estava fechado para qualquer sensação que os homens que a assistiam pudessem lhe proporcionar.

Lucille tirou os grampos que prendiam seus cabelos deixando-os correr pelas suas costas. Por um momento ela olhou-se. Depois os prendeu novamente, assumindo novamente sua característica seriedade.

Ela levantou e alisou seu vestido. Estava refeita. Abriu a porta e saiu do quarto.

Julian estava sentado no sofá quando ouviu os passos dela nas escadas.

– Lucille, eu... – ele começou a dizer.

Ela lhe entrou toalhas, roupas e um sabonete.

– Aqui está. O banheiro é a segunda porta a direita. – ela agia como se nada tivesse acontecido. – Anda rapaz! Vá, vá.

Novamente ele se sentiu como se tivesse catorze anos novamente. Talvez ela quisesse que fosse assim. Murmurando um obrigado, ele rumou para o banheiro.

Olhando o relógio, ela viu que já eram meia noite. Um pouco tarde para um jantar, mas fazer o que?

Lucille foi para a cozinha ver o que ainda podia preparar. Havia pedaços de carne assada que ela fizera. Ela abriu a geladeira e retirou uma tigela de salada, e uma tabua de queijos. Ela estava fazendo o molho para a carne e a salada quando Julian apareceu no limiar da porta.

– Pronto. Estou civilizado novamente. – declarou.

Ela ergueu a cabeça e deu um sorriso.

– Ótimo. Agora, sente-se e eu prepararei um prato para você.

Lucille virou-se para os lados como se estivesse procurando algo. Súbito ela parou e foi em direção à geladeira.

– Aqui está! – pegou uma garrafa de dentro da geladeira. – O que um bom francês não fica sem. Um bom vinho. – ela passou a garrafa para ele tirar a rolha.

Julian olhou meio de lado pra ela enquanto tirava a rolha.

– E uma bela mulher...

Ela enrubesceu perante o olhar dele. Começou a servir os pratos enquanto ele colocava o vinho nas taças.

Os dois sentaram-se para jantar e antes ela ergueu a taça num brinde.

– Ao bom francês...

Julian ergueu a sua.

– A uma bela mulher. – olhou-a profundamente.

Lucille sentiu novamente seu estomago contorcer. Ela tomou um pouco do vinho.

Então eles começaram a jantar em silencio. Entre um bocado e outro, Lucille pediu:

– Conte-me como era sua vida num acampamento partisan.

– Basicamente todos faziam tudo. Era um sistema corporativo. Então, nos treinávamos, nos alimentávamos, convivíamos. Éramos uma família...

Os dois continuaram conversando, não vendo o tempo passar. Quando a garrafa de vinho já estava pela metade, Lucille viu a hora.

– Nossa! Já é muito tarde. – E ela se levantou da mesa.

Julian teve a mesma ideia nesse momento e os dois ficaram frente a frente. A tensão novamente instalou-se entre os dois. A respiração ficou mais profunda e o tempo parece parar.

Julian engoliu em seco e se afastou quebrando o clima entre eles.

– Eu sou muito grato pelo que você fez por mim, mas acho que devo ir embora. – e começou a se encaminhar para a porta.

Lucille foi atrás dele e segurou-lhe o braço.

– Está errado! Como você pensa em sair depois do toque de recolher e sem nenhum documento. Se uma patrulha encontra você, terá tudo sido em vão.

Ela não havia soltado ainda a mão dele. Pelo contrário, havia entrelaçado seus dedos nos dele. Respirou fundo e declarou

– E eu também não quero ficar mais sozinha...

Julian não esperou por mais nenhum motivo. Volteando o corpo de frente para ela, abraçou-a fortemente. Colou seus lábios aos dela com todo o ímpeto de sua juventude.

Lucille não teve medo da voracidade dele. O vinho ingerido dera-lhe a coragem para mergulhar inteiramente nessa paixão. Não se lembrou do passado nem pensou no futuro. O que lhe interessava era o que a madrugada traria.