O plano deu errado. É, devia imaginar que daria errado. Quem delatou? Não sei. E não importa. Há homens mortos por todos os lados, a cidade está pegando fogo. O louco que criou aquela ameaça estava falando a verdade, Estherburg está em chamas e centenas já estão mortos.

Maldita Lady Arthúria. Ela sempre soube de tudo. Não somente por Houser, mas por todos, até mesmo por Pharvra.

Sua guarda pessoa tomou o quartel de dentro para fora. Os homens ratos, apenas trazidos aqui por feitiçaria nefasta estavam nas catacumbas esperando Andal e sua tropa. Não sabia até aquele momento o que tinha acontecido com ela, e com os demais.

Muitos desapareceram, simplesmente saindo de seus postos, deixando-os vazios. Debandaram movidos por medo, foram atingidos pela mesma força que derrubou dezenas de nós ou, pior, foram tomados pela feitiçaria da tal 'coisa' que comandava junto da donzela traiçoeira que tentou me controlar a algum tempo.

Estava sozinho em um beco. Havia caído da muralha externa da cidade quando uma das criaturas me derrubou. É difícil pensar com a cabeça girando, quando tudo está dando errado e não há em quem confiar. Queria Pharvra comigo, mas a essa altura eu já não sabia onde ela estava.

Mas faria tudo para que ela deixasse de estar sobre a influência daquele monstro.

"Ora garoto, está tendo um dia difícil?"— A voz era conhecida, mas naquele momento não sabia exatamente de quem era. Perligan surgiu de baixo de escombros. Bateu em suas roupinhas e com um sorriso um pouco desanimado me perguntou se estava tudo em ordem. Claro, eu disse que sim.

Ergui-me com sua ajuda, enquanto ele falava que veio o mais rápido que podia. As notícias chegaram rápido até seu povo e ele soube que precisaríamos de ajuda.

"Você sabe o que tá acontecendo?"— Perguntei e a resposta fez meu corpo tremer. "Sei" ele falou, olhando com cuidado, escondido por sua altura. Ele falou seu nome "Ellunarum" e eu soube, naquele momento, como tudo fazia sentido.

Nunca foi Arthúria, ou Sor Hurtan. Os homens rato, os Trusgo do norte, nada daquilo aconteceu por acaso. Nada. Sempre foi ela, aquela bruxa maldita, com sua feitiçaria de Eras atrás.

O chefe Trusgo me provocava raiva, os inimigos mais temíveis me provocavam raiva. Mas nunca, até aquele momento, tinha sentido ódio. Vingar-me da bruxa tomava cada centímetro de meu corpo ao passar dos segundos.

Chama Crua se acendeu como se eu a ordenasse, o fogo queimou a bainha, minha túnica e, quando finalmente notei meu corpo começava a ser queimado. Meu ódio abastecia o fogo que queimava minha armadura, mas não a mim.

Perligan me olhou intrigado e sai de meu transe. Não havia fogo, mas minha mão agarrava fervorosamente o cabo da espada. Perguntou se eu estava bem e na mesma hora disse que sim.

Nunca havia me sentido daquela forma. Era a sensação mais deliciosa que existia.

"Dancan, eu vou procurar seus amigos e tentar ajuda-los, salve quantos você conseguir, certo?"— O pequeno falou com sua vozinha, enquanto se esgueirava por entre os escombros logo sumindo da minha vista. Ouvi suas palavras, mas não era salvar que meu coração dizia que eu devia fazer.

Era me vingar.

Felizmente, para aquele momento, Estherburg estava sendo invadida por servos da bruxa e não tardou para que os encontrasse. Chama Crua saboreou golpe a golpe e, eu me deliciava junto.

Meu povo, no norte, dizia que os guerreiros embebidos pela batalha atingiam um estado de transe onde se tornavam animais furiosos; lobos, ursos, dragões. O estado fora de si, conhecido como fúria, era uma benção do deus da guerra de meu povo, os Hviit. Uma benção rara dada apenas àqueles que se entregavam de corpo e alma para a luta, para o derramamento de sangue indiscriminado.

Pois bem, estava eu, limpando as ruas até o palácio dos Esthers com um tom vermelho característico dos mamíferos de sangue quente. Não havia mais lados, eram todos meus inimigos. A espada ardia a cada golpe, com labaredas fumegando a cada golpe.

Com a entonação natural, Jhon Lander perguntou o que eu fazia que não distinguia amigo de inimigo. Havia anos que eu queria parti-lo em dois. Caminhei lentamente arrastando a espada no chão, soltando faíscas, queimando o solo.

"Sabe de uma coisa Lander.."— Falei fora de mim. "Você é um babaca.. e não vale porra da merda que caga" — Disse, ultrapassando o comandante e a barricada de soldados. Entrei no palácio. A nobreza estava lá. Lady Arthúria estava lá.

Jhon Lander se virou e gritou para mim coisas que não me recordo. Ele queria que eu parasse. Ordenou que não agisse contra os Esthers. Movi Chama Crua, queimando o corredor ao ponto dele desabar.

Silêncio. O palácio estava em silêncio.

"Vamos Arthúria, aparece, você me queria não queria?"— Gritei com toda a força.

"Eu estou aqui, sou teu"— Falei batendo com a espada no chão. Em alguns momentos me sentia um espectador enquanto via meu corpo agir sem mim, em outros sentia que eu tinha total controle de tudo aquilo.

A guarda pessoal da donzela pouco a pouco surgiu no salão. Em três das quatro passagens, havia soldados com os mantos cor de vinho. "Estou aqui Dancan..White" — Ela falou e o som doce de sua voz invadiu meus ouvidos.

A espada se acendeu como no transe. Chama Crua ansiava por aquela morte, eu podia sentir dentro de mim, como se a espada fosse eu e, eu fosse a espada.

"Seus amigos vão ficar felizes em convencê-lo do contrário" — Arhtúria disse, revelando-se na passagem central. Não compreendi sobre o que ela fazia. A maldita vestia aquilo que ela e seus seguidores loucos haviam exigido semanas atrás: a Rosa Escarlate.

E não pergunte como eu sabia, eu apenas.. sentia.

Mas, não há nada que estava ruim, que não possa ficar pior, não é? Ou como dizia Pharvra, a merda não tira folga.

"Ei Dancan, largue a espada" — O coro das três vozes juntas me pegou desprevenido. Houser, Andal e Pharvra. O primeiro surgia entre a guarda de vinho do lado esquerdo da minha posição, a segunda, avançava pelo lado direito enquanto, por de trás de Lady Arthúria, vinha Pharvra, vestindo a armadura negra do pai da donzela maldita.

"Junte-se a nós, não lute, aqui é melhor" — Ela falou, com sua voz que por tanto tempo acalentou meus ouvidos. "Não lute comigo Dancan"— Ela falou e Arthúria completou, "Não lute com ela, Dancan".

Seu sorriso sarcástico fez o ódio tomar meu corpo como fogo. E o fogo o tomou por completo.

A armadura, a túnica, o sangue. Eu mesmo estava em chamas. Chama Crua pedia à vingança que meu coração, em suas profundezas, ansiava há mais tempo e com mais força do que eu sequer podia acreditar.