Estávamos agora na sexta-feira, comecinho de noite. O menino estava deitado no sofá de três lugares e a menina no outro assistindo a um antigo seriado infantil na televisão.

O seriado era tão antigo, que seria quase da época em que ele viera.

O portão grande da entrada lateral à residência se abriu, uma motocicleta adentrou ao quintal, um jovem desligou-a, desembarcou, tirou seu capacete, mexeu com os cachorros que se aproximaram fazendo festa e depois, seguindo para a porta lateral que dava acesso à sala de computador, começou a chamar:

— Papai! Cadê meu lindo papaizinho?

Na sala, o menino se encolheu no sofá enquanto a menina rindo alegou:

— Chegou amolação pra você!

Ele só franziu o nariz:

O jovem dirigiu-se à sala de tevê chamando:

— Papaizinho, onde você se escondeu?

Ao vê-lo sobre o sofá, admirou-se por sua fisionomia tão diferente da que conhecia, mas…

— Então você está aí?! Levanta pra me dar um abraço!

Quem se surpreendeu ainda mais foi o próprio menino, ao se deparar com aquele estranho de mais de vinte anos de idade, com a barba por fazer a vários dias.

Continuou deitado encolhido com um sorriso desconfiado. George se aproximou, puxando-o, fazendo se levantar e o abraçando forte, segurando-o no colo, alegou:

— Poxa papai, estou com saudades de você! Não sentiu saudades de mim não?

— Não sou seu pai! — Negou o pequeno.

— Nem venha querer me abandonar, que vai ter que arcar com o dinheiro da pensão! — Protestou George, beijando-o.

— O loco, owh! — Reclamou ele limpando o beijo recebido. — Sou homem!

— Claro que é, senão eu não teria nascido! Mas eu posso beijar meu papai querido!

— É mais fácil você ser o meu pai, do que eu ser o seu! Sou criança!

— Ninguém mandou você encolher!

— Já pode me pôr no chão? — Pediu o menino, forçando-se para descer.

Jogou o menino no sofá e sentou-se ao seu lado.

— Não abraça sua irmã? — Cobrou-lhe o menino. — Só abraça macho?

— Ai, machinho! — Riu o rapaz.

Então olhou para a irmã que ria no outro sofá e cumprimentou-a:

— Oi Maysa, tudo bem?

— Tou! — Riu ela.

Na verdade, o irmão sempre foi muito carinhoso com ela, que inclusive sentia até um pouco de ciúmes dele ao fazer amizade com outros. Só que agora era uma amizade especial.

— Fala aí papai, como foi que você trocou de lugar com meu papai grandão?

Só os ombros souberam responder pelo menino. Ele mesmo nem sabia a resposta.

— Está gostando de seu mundo do futuro?

Novamente os ombros responderam.

George percebendo a televisão ligada insistiu:

— Gostou da televisão moderna?

Só os ombros responderam.

— Pô meu! Fale alguma coisa! Ou sua boca mudou pros ombros?!

— Não! — Riu o menino de jeito agradável.

— Lá onde você morava tinha uma dessas em três D?

— Nem televisão tem por lá! — Tornou a rir. — Quer dizer, só os ricos têm.

— Então vai ficar vivendo aqui conosco pra sempre?! Pra que eu possa retribuir os castigos de minha infância?!

— Todo mundo só quer me castigar! — Reclamou ele. — Eu grandão sou tão bravo assim?!

— Até… que não! — Corrigiu George gesticulando. — Mas tem uma que não esqueço. Teve uma vez que o Arthur…

George olhou para os lados e chamou:

— Arthur! Venha cá!

— Ele foi pra escola! — Riu Maysa.

— Pois é! Teve uma vez que ele reclamou que você só batia nele e que eu nunca tinha apanhado. De fato, por eu ser um santinho…

— Acredito… — interrompeu o menino, rindo.

— Claro que sou! Não era lá de apanhar muiiito! Já ele, peralta, apanhava quase todo dia…

— De eu!? — Exclamou o menino surpreso.

— Mais da mãe! Mas você também soltava alguns cascudos e chineladas na bundinha fofa dele.

O menino, fazendo gestos até engraçados com a boca, mostrando os dentes, com Maysa, que também achava engraçado, prestava atenção naquela narrativa que o rapaz, em jeito cômico representava.

— Ele reclamou que só ele apanhava e que eu era o protegido. Como ele era pequeno, tinha aí uns três anos e eu oito, então você, pra mostrar a ele que não era bem assim, pegou uma cinta e brincando me chamou de lado, dizendo que iria me surrar…

Regis e Maysa prestavam atenção na conversa, com alguns sorrisos e intervalos de gestos sérios.

—… levantou o cinto e mandou nas minhas perninhas magras. Só que não foi de brincadeira! Acho que você esqueceu que não era só desse seu tamainho e bateu de verdade, forte…

O menino ria extravagante.

—… e doeu de verdade pra caramba! Ficou marca e eu chorei!

A risada continuava extravagante.

— E você tá achando engraçado! Pois eu vou pegar uma cinta agora e vou descontar!

— Não vai não! — Riu o menino.

— Vou sim senhor!

— Você não pode bater em mim! Sou seu pai!

— Mas vou bater de brincadeirinha! Mesmo que doer será de brincadeira!

— E eu vou te deixar uma semana de castigo sem computador!

— Tá bom! — Concordou o rapaz puxando um aparelho que o menino ainda não conhecia do bolso. — Você me deixa de segunda até sexta feira sem computador…

George começou a mexer naquele aparelho com tela de sete polegadas, acessando sites de web, fazendo com que o pequeno admirado permanecesse grudado a ele.

— É um computador pequeno? — Especulou encantado.

— É muito mais do que um computador! Vai me deixar de castigo? — Riu irônico. — Pode deixar!

— Tomo também este! Sou seu pai! Posso tomar!

— Você é… é safado! Quer tomar pra você usar! Pensa que nasci ontem!

Calou-se e permaneceu até abraçado ao rapaz, observando atento o que ele fazia enviando mensagens de texto para amigos e…

— Ele é bom pra mandar mensagem para as garotas! — Afirmou George. — Lá no seu mundo você tinha muitas paqueras?

— Eu não! — Negou o pequeno balançando os ombros.

— O quê?! Não tinha garotas em seu mundo?!

— Garotas tinham! Não eu! Não gosto!

— Eh, papai! — Olhou sério para o menino. — Estou te estranhando! Não gosta de garotas!?

— Eu não!

— E como casou com a minha mãe?

— Não casei! Sou pequeno!

— Mãããe…

Luciana apareceu na sala.

— O pai disse que não quer você!

— Mentira! — Protestou ele assustado. — Eu gosto de sua mãe! Não como ma…rido! Como a…miga!

— Quer fugir do compromisso de criar três filhos — ironizou George. — Não?!

— Sua mãe disse que nem pode me namorar. Não foi mesmo Luciana? Ela disse que é pernofobia!

— O quê!? — Estranhou o rapaz.

— Pedofilia! — Corrigiu Luciana, rindo.

— Pernofobia deve ser… — pensou George. — Medo de pernas. Tem lógica na sua idade!

George levantou-se anunciando:

— Quero tomar banho. Dê um banho em mim, papai!

— Eu hem! — Protestou o menino gesticulando bravo. — Sai de mim, meu!

Entregou-lhe o aparelho de celular moderno e disse:

— Quer brincar um pouco?

O menino se encantou.

— Sabe usar?

Ele franziu os lábios.

— De onde você veio tem desses?

— Só se eu fizer com caixa de fósforos! — Riu o pequeno, já imaginando seus próximos brinquedos, criados por sua criatividade infantil.

— Pede pra Maysa que ela te ensina.

Claro que ele queria! Ficou perplexo. Apanhou o aparelho e correu a sentar-se com a menina, onde os dois permaneceram desfrutando daquela modernidade.

Regis não sabia nada de tecnologia avançada, mas ele era criança. Não sabia nada por cerca de… dois minutos.

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Com um dia cheio de atividades infantil, depois de horas de insistência pela “esposa”, devolveu o celular de George e se dirigiu ao banho na suíte de casal. Nem se importou em estar nu quando Luciana fora levar uma toalha e roupas e só desligou o chuveiro quase meia hora depois, sendo cobrado inclusive por George, que talvez agora fosse o “homem da casa”.

— A conta da água e luz vai vir um absurdo assim! — Protestou o rapaz.

Apesar de que a água de sua residência em chácara vinha de poço artesiano e a temperatura aquecida de moderno sistema de aquecimento solar. Contudo, a energia elétrica consumida no banho do menino, viria apenas no sistema de ligar a bomba para encher a caixa de água fria e a lâmpada acessa no banheiro. Portanto um consumo irrisório. Mesmo assim, é preciso salientar que economia de água, mesmo sendo de poço artesiano é fundamental para cuidarmos de nosso sofrível lençol freático.

Após o demorado jantar com muita conversa, principalmente irônica do jovem George, foi desfrutar de um dos computadores, enquanto o rapaz se apoderava do outro.

— Sabe mesmo usar este bicho? — Especulou-o George.

— Claro que sei! Maysa já me ensinou!

— Quantos meses de aula de informática ela lhe deu?

— Hãm?

Quase meia noite, o rapaz decidiu ir dormir e o menino o imitou.

Ambos foram para o mesmo quarto.

— Você vai dormir aqui neste quarto? — Especulou-o George.

— Sim! É onde durmo todos os dias!

— Você tem que dormir com minha mãe, meu! Sua esposa!

— Ela não é minha esposa! Já disse!

— Ah já sei! Pernofobia!

O menino achava engraçado o jeito do rapaz agir. Deitou-se, cobrindo com uma manta leve.

— Boa noite, papai!

— Se eu for o seu pai você tem que dizer, benção papai!

O rapaz mandou um beijo demorado no rosto do pequeno e irônico repetiu:

— Benção papai! Durma com Deus e não vai roncar a noite toda!

Regis riu extravagante.

— E nem ficar peidando igual lambreta desafinada!

Aí é que ele riu mesmo.

Alguns segundos em silêncio e George resolveu:

— Agora é que vou descobrir se meu pai grandão mente de verdade.

— Por quê?

— Vou lhe aturrinhar de fazer perguntas.

— Que perguntas?

— É verdade que no sítio você nadava peladão?

— É!

— Junto com as meninas?

— Oh owh!

— Oh owh, não é resposta! Nadava ou não?

— Sim!

— Pervertido!

— O que é… percetido?

— Liga não! É brincadeira! Não tinha vergonha em nadar pelado?

— Não! Acho que não!

— É verdade que uma vez você matou um porco? Com uma faca maior do que o seu braço?

— Não! Nunca fiz isso! Não sou louco!

— Você grandão disse que sim.

— Nunca fiz isso! — Protestou triste. — Uma vez meu pai mandou eu fazer. Até me entregou a faca e levantou as patas do porco explicando como fazer. Você acha que eu teria coragem?

— Como eu conheço bem você quando grandão, duvido! — Pensou um pouco e continuou. — Você gosta mais de sua vida lá no passado, ou de sua vida aqui?

— No passado — respondeu sem hesitar.

— Por quê?

— Estou com saudades de minha família — respondeu choroso.

— Nós somos a sua família! Você é especial pra nós.

— Eu sei! Até fico feliz. Mas… e minha mãe que está velhinha?

— Ótimo! Você pode curtir ela agora e ela será feliz em rever você tão meigo.

— E meu pai que já morreu!? Meu irmão Lucas! Minha irmã!

— É! E em questão de mundo? Não de pessoas ou família. Onde você acha melhor, aqui ou lá?

— Lá!

— Por quê?

— Lá é mais legal! A gente pode brincar na rua com os amigos…

— Aqui também você pode brincar na rua com os amigos!

— Quais?!

— Você arranja. A Maysa. As demais crianças dos vizinhos! E você ainda tem a sorte de morar em um final de rua, onde sequer tem movimento, simulando o lugar de onde você veio.

— Não sei. E depois… se eu ficar aqui, o seu pai grandão, onde ele está?

— Taí uma coisa que eu não pensei ainda! Se você veio do passado ao presente e ele não pode ficar aqui por isso, será que ele estaria lá no futuro, deslumbrando dos carros que voam, das comidas sem sabor em cápsulas microscópicas, que alimentam por uma semana e das fantásticas garotas virtuais, visitando a mim velhinho; ou será que ele foi ao passado em seu lugar, tendo feita uma troca?

Um minuto de silêncio e George especulou:

— Outra pergunta, você é inteligente igual um adulto ou igual uma criança?

— Sou inteligente!

— Então me diga… quanto é… a raiz quadrada de cem?

— O quê!? — Espantou-se o menino.

— Quanto é dois mais dois?

— Quatro!

— Tudo bem! — Riu George. — Você é inteligente igual uma criança.

Calaram-se por outro minuto e então o rapaz decidiu:

— Chega de pressioná-lo. Vamos dormir agora.

— Boa noite!