Um Dia Qualquer.

Passos perturbados.


Pov. Autora.

Clap. Clap. Clap.

Será que existia um abafador de ouvidos contra aquele tilintante e irritante ruído que tanto lhe enfadava os ouvidos? Ryan engoliu um resmungo profundo que subia-lhe pela garganta, bravio e imponente em seu traje escuro, o rosto escondido pelas sombras fúnebres do capuz que utilizava. Não podia se deixar descontrolar. Sua mãe dissera-lhe que era a grande chance de entrar em um Conselho que poderia mudar completamente a vida de todos. E ele poderia logo ser o Líder.

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As mãos decrépitas a sua frente empurraram uma porta rangedora, e a esquálida luz adentrou em seu campo de visão. O espaço da sala era gritante, telas gigantescas, máquinas intimidadoras, o chão reluzente e a brancura cega, guardas postados reverentes em cada canto, janelas que refletiam um espelho vibrante e bárbaro, o qual nada se deixava enxergar.

Ele seguiu-a até uma porta lateral, dois guardas com traços severos e imprudentes arreganharam os dentes para ele, e Ryan resistiu ao impulso de se encolher. Fechou os punhos e permaneceu calmo. Estava oculto. Ninguém poderia reconhecê-lo. Ou, bem, poderia. Mas não precisava se preocupar com sua feição. Não, ou esperava que não.

A porta cerrou-se atrás dele, e a sala iluminou-se parcamente. Uma enorme mesa encobria a sala quase por inteiro. Ryan apressou-se a acomodar-se em uma das cadeiras mais longínquas da extremidade, na escuridão anônima. Ao seu lado, os cabelos agora verdes mucosos pairaram no ar por um instante quando a dona sentou-se, confortada e excitada pela Reunião que se prosseguiria. Tess arregaçou as mangas, deixando à mostra as formas ínfimas de figuras que corriam pelo seu braço, figuras geométricas e pulsantes que traziam a sala uma luz mais hostil e invasivo aos olhos de Ryan, que sentia o peito prensado em uma parede; sentia-se como se fosse um garotinho, aquela criança que sua mãe mandara a Treinamentos, onde fora vítima de elementos e armas trucidantes, onde fora socado, arrematado, perpassado e picotado. Podia sentir-se aquele menininho, após um longo e exaustivo Treinamento intensivo, quando chegara em casa com o corpo sangrando, a respiração dura e a mente exaurida e tudo o que sua mãe fizera fora mandá-lo se lavar, os olhos secos e sem compaixão, mandando-o continuar a treinar o manejo com as facas em seu quarto.

A luz a qual a fonte principal emitia deixava a vista apenas um ser com a silhueta aparente. Tess sentia seu coração bater descompassadamente, e um sorriso alargou-se em seu rosto quando este transportou a sua voz para a sala, gutural e cinicamente:

–E o plano... está se iniciando. Logo iremos nos reerguer. Não se preocupem, meus aliados, vamos vencê-los. Eles não passam de pedras em nossos caminhos. Nada mais, nada menos. O tordo irá inflamar-se em suas próprias chamas, e teremos nossa vingança que tanto esperamos. Por longos, e longos anos. Iremos matá-los. Matá-los um por um. Não só matá-los, mas mostrar-lhes o que é de seu bem prazer. Mostrar-lhes nossa astúcia. Nós que iremos, dessa vez, começar as chamas.

Todos os membros abriram um ominoso sorriso de dentes pontiagudos, menos um, que Ryan notou ser o único quem mantinha a capa o mais abaixada possível, e quem traçava linhas em torno da mesa, as mãos omitidas. Em um lampejo de olhos, este estava de pé, e antes de poder ter a capacidade de prender a respiração, ela já se atirava para frente, gritando com uma adaga nas mãos, em direção ao Líder.

O Líder levantou-se. O homem com corpo robusto e largos ombros movendo-se levemente, como uma dança sombria. Seus traços mantinham-se plácidos, sem expressão, as costas eretas, os joelhos dobrados, em posição cautelosa. Tess apertou os dedos contra a superfície, ansiosa. Uma luta! Na primeira Reunião! Tinha algo de melhor para acontecer?

Os movimentos foram rápidos, fluidos e ligeiros. A adaga refletiu a luz da chama que iluminava a sala, um brilho ofuscante amaciando o tecido do véu transparente do ar, cortando o vazio onde segundos antes havia o homem, o qual esquivara-se e encontrava-se a seu lado, com um riso divertido nos lábios, o capuz cobrindo-lhe os olhos. A desconhecida não perdeu o compasso, nem a segurança, logo entornou-se e girou até ele, curvando os punhos e arrebatando a adaga para sua lateral, para sua frente, para cima, tentando atingi-lo, em vão. Todos os frustrantes golpes eram repelidos pela própria lâmina do outro, que surgira aparentemente do nada, e flutuava com a mesma velocidade fugaz da desconhecida. Em perfeita harmonia.

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Após mais uma série de golpes de adagas não eficazes, a desconhecida finalmente abaixou o braço e mandou-lhe uma estocada no quadril e um golpe consecutivo no braço com a lâmina do homem, a lâmina voando para longe do alcance dele pela pancada. O homem agarrou-lhe o braço e ela recorreu ao punhal, enterrando-o nos braços que a apertavam; a mão logo soltou-a e lançou-a para o longe, o punhal ensanguentado perdendo-se em meio a seu movimento coerente ao pular para o lado de modo a salvaguardá-la, caindo ao chão. O homem rugiu, irritadiço, mas não demonstrou dor quando esticou o mesmo braço, os músculos retesando-se e transparecendo pela pele, atirando-se para onde ela repousava, o peito da desconhecida subindo e descendo depressa, o ar faltando-lhe nos pulmões. Ela levantou-se rapidamente e correu em sua direção, como ele fazia, encontrando-se com ele a meio caminho. Uma troca rápida de golpes de mãos e pés surgiu e por fim ela atingiu-o no flanco com seu joelho antes de ser repelida para longe pelo punho que agarrara-se em seu estômago, tirando-lhe o pouco fôlego que ainda lhe restara. Ela recuou, engolindo arfadas de ar, mas não deu um espaço de tempo muito grande antes de deslizar pelo solo lateralmente e lançar o punho para seu rosto, o soco não chegando ao queixo do homem um milésimo antes de seu punho ser agarrado e ela puxada para o lado pelo braço atingido e banhado em sangue do homem, a desconhecida saltou, presa pelos pulsos, e impulsionou as pernas para o peito do homem antes de ele ter a oportunidade de levantar o braço livre, fazendo ambos pararem no chão, e rolarem para longe. Ou a desconhecida tentou, pois o homem ainda segurava seu punho e, achando uma brecha, agarrou-a, enquanto ainda tinha tempo, com o outro braço, jogou-a para o chão, mantendo-a presa com o peso de seu próprio corpo, o rosto da desconhecida pressionado no solo duro. O homem torceu-lhe os braços nas suas costas. Um estalo inclemente ressoou na sala, e a desconhecida rangeu os dentes. O homem sorriu amargamente, o doce som da quebra de ossos. Ele analisou o braço que caucionava e parou o olhar no contorno branco e tingido projetando-se para fora da pele. O sorriso do homem alargou-se. A mandíbula da desconhecida tencionou-se, firme.

Por mais que o peso do homem fosse prepotente, a desconhecida conseguiu livrar-se dele, enroscando as pernas em seu tronco, puxando-o para o lado e enrodilhando os corpos e combatendo com seu braço e pernas usáveis para sua liberdade. A desconhecida liberou-se dos dedos rudes do homem e moveu-se para o lado, velozmente, tecidos negros que formavam sombras na visão de Ryan. Ela ergueu-se e dobrou-se sobre si mesma, o braço torcido pendendo ao lado. Ela saltou, agarrando o punhal com a mão livre e arremeteu-se em direção a seu alvo, mirando-o diretamente. Porém o Líder estava pronto, uma nova lâmina em seu posto. O homem estancou, parando-a no ar. Ambos fitaram-se por um longo momento, as adagas atritando-se com uma absoluta força brutal, o espaço entre eles mínimo. Então, o homem riu, a gargalhada proliferando pelo espaço vorazmente, e lançou com fúria seu outro braço para frente, prontificando-se, usando a força dos dois membros superiores para arremessar a desconhecida pelo ar, onde um moribundo e rastejante estampido surdo ecoou pela sala quando a desconhecida colidiu contra a borda da mesa, as costas curvando-se para trás com o impacto e um berro descomunal erguendo-se para todo o aposento. A cabeça da pessoa impeliu-se para trás, e o capuz escorregou para suas costas, revelando sua face que Ryan não foi capaz de captar. Ela escorregou pela mesa e caiu com um baque no chão, desamparada. Ela tentou levantar-se, mas os movimentos foram lentos demais, e logo o braço que antes ainda estava saudável foi esmagado pelo peso alucinante do braço impetuoso do homem, enquanto suas pernas eram sobrepostas ao peso atordoante dos joelhos dele, o homem mantendo-a restringida, ela refreou um grito, mordendo o lábio inferior e mandando-lhe um olhar instigante e inacessível, demonstrando sua frieza que fez os cabelos da nuca do homem se eriçarem, porém, ele não perdeu a compostura, e sorriu-lhe quase afavelmente.

–Ora, ora. Quem encontramos aqui. Que surpresa vê-la, Johanna. Foi uma experiência... inspiradora lutar com você. Mande lembranças a Katniss por mim. Ou, espere... –a voz cortante e inexorável abaixou-se, até não passar de um murmúrio, um murmúrio alto o bastante para todos da sala ouvir. –Você não vai poder vê-la, infelizmente. Coitadinha... morrerá sem antes poder degustar de minha nova Panem, tsk tsk. –estalou a língua, rindo desdenhoso.

Afinal, não era um ele, Ryan descobrira, era um ela. Um sorriso sarcástico e azedo entortou sua face quando viu Johanna, uma das que havia participado da revolta à Capital, uma das vitoriosas, nas garras de seu Mestre. Menos uma para se afligir. Johanna, a lutadora invencível que todos admiravam, agora, vencida. Ninguém sabia de sua localização, Ryan conhecia os boatos que se espalhavam por Panem sobre suposições de onde ela poderia estar: era um assunto discutível, algo favorável para a posição deles. Ryan sentiu um gosto almiscarado tomar conta de seu paladar, e ficou com a profunda vontade de rir como um maníaco. Mas compeliu-se a manter-se imóvel em seu lugar.

Johanna abriu a boca para retrucar, e até começou a frase (“seus minúsculos cérebros estão começando a atingir vocês, vermes. Não sabem que isso era tudo o que queríamos?! Vocês estão entrando em uma guerra sem procedentes...”) mas antes de terminá-lo, o Líder inclinou-se e sussurrou palavras em seu ouvido. Palavras que fizeram-na arregalar os olhos. Palavras que fizeram Johanna estremecer. E então... tudo acabou-se.

Ninguém havia se movido naquele curto período de tempo. Ninguém alterou as expressões mansas e calmas. Ninguém se preocupou. Nenhum movimento para retê-lo, e antes que Ryan se desse conta, o corpo imóvel e frio de Johanna Mason, quem tentara cometê-los em ruínas, estava no chão desprovida de vida, uma poça de sangue pintando-lhe as vestes e ao rosto com olhos embaçados. A faca de seu Mestre sobrepujando-se diretamente na área de seu coração, a causa da cascata de sangue que saía do corpo decadente.

Ele levantou-se, arrumando o traje que vestia, sentando-se novamente na cadeira, soltando um suspiro. O corpo ao lado não mais que um incomodante sujeito irrisório, para ele. Não mais que um tormento resolvido.

–O que eu estava falando? –sua voz projetou-se novamente, e ele levantou uma das mãos, tocando os lábios com um dos dedos cobertos do sangue escuro da não mais vivente vitoriosa. –Ah, sim. Que os jogos comecem.

***

Pov. Annie.

–Eu não disse que verde combinaria com você? –mamãe perguntara com tom afirmativo, anuindo com a cabeça enquanto me examinava, com papai ao seu lado de cabeça inclinada para o lado, a mão no queixo coçando a barba rala que começara seu processo de crescimento, e o Tio Haymitch sentado em sua cadeira bamba, Haymi aos seus pés, ambos focados em mim, meu tio com uma das sobrancelhas levantadas, Sherlock Holmes com uma das orelhas aprumadas enquanto babava na pata de Haymi e meu irmão, Fynn, ao meu lado, sorrindo afetado para mim, os olhos carinhosos consentindo, aprovando minha aparência. Suspiro profundamente. Eu não os entendo. Não mesmo.

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–Mãe... –reclamo baixinho, com a voz tenra e sem uma nota ameaçadora, como normalmente estaria. Estava cansada demais, fatigada para pensar em tantas coisas ao mesmo tempo, para acertar os pensamentos embaralhados, ainda tentando me recompor com os acontecimentos e esforçando-me para me distrair e permanecer no presente. Porém, agora, não tinha de forçar-me muito. Aquele vestido de mamãe, com tons prateados e ilimitados tons variados do verde mais escuro ao mais claro, que retorcia-se em meus pés, indo até o tornozelo, com as mangas cobrindo quase meu braço inteiro, parando em meus cotovelos. Ele era confortável, eu admito, e não era moderno ou estremunhado como aqueles do mundo da Capital. Era simples, elegante e admirável. Embora achasse isso, ainda não me acostumava a usar um vestido. Era como se... não se encaixasse, apesar de papai não ter parado de me fitar desde quando eu o coloquei. –Eu... pensei que você estava brincando quando disse sobre isso.

Mamãe se aproximou de mim, o sorriso costurado em seus lábios, a expressão suavizada e atenuada como uma brisa de uma tarde ensolarada. Ela estendeu a mão e tocou meu nariz, passando seu dedo morno pelo contorno entre minhas sobrancelhas até a ponta do meu nariz, tão parecido com o dela.

–Filha... eu nunca vou mentir para você. –murmurou para mim, e eu suspirei, arqueando a sobrancelha para ela, a própria soltando uma risada, sem conseguir se conter. Isso é muito reconfortante, mãe, obrigada.

Abaixei minha cabeça, sentindo-a pesada e dolorida. Era como se houvesse passado por um triturador, ainda consciente. Como se a Morte batesse em minha porta e houvesse derramado em mim sua cota de cumprimento, uma bacia inundada do líquido sôfrego e pavoroso dos mais íntimos temores os quais nunca contara a ninguém. Como se ela estivesse enviando-me sua saudação antes de sua visita novamente; dessa vez, para buscar-me e incitar-me a segui-la.

Eu hesitava. Será que se essa oportunidade chegasse... eu iria aceitá-la?

Meu irmão me chamou a realidade novamente, pigarreando, e eu ergui minha cabeça repentinamente, tentando esboçar o melhor sorriso que poderia pintar em meu rosto. Um sorriso que embora seja teatral tentava transmitir-lhe minha gratidão, por estarem por perto, por me ajudarem e por nunca me abandonarem. De alguma forma, quando eu os via, examinava os traços enrugados e as linhas idosas de Haymitch, os olhos sonhadores e azulados cheios de inocência de papai, a expressão erudita e forte de mamãe e o tão familiar rosto harmonioso e perseverante de meu irmão, eu sentia uma onda sufocante de saudade, de uma abominável nostalgia que não conseguia reter. Era como se eu fosse os perder, mesmo sabendo ser algo impossível. Era como se eu nunca mais os fosse ver, mesmo sabendo que era improvável. Meu sorriso foi como um adeus antecipado. Um sorriso carregado de impressões que me obrigara a levantar o queixo, olhar para cima, para o teto do aconchegante cômodo onde fora criada, para que não deixasse escapar as gotas que imprimiam-me a libertarem-se de mim. Era sempre assim, não é? Fingimos que nada está acontecendo, desviamos nosso pensamentos, mas no fim, nunca conseguimos... nunca conseguimos esconder para aqueles que o amam o que está realmente acontecendo.

–Filha... você está bem? –mamãe levou uma mecha que caía sobre meus olhos para trás de minhas orelhas, em vão pois ela voltou a recair sobre minha face. Não me importei. Os seus carinhos que fazia em minha cabeça eram o suficiente, eram de alguma maneira um detalhe que sabia que iria sentir falta. Mesmo não sabendo quando sentiria, não exatamente.

Uma pontada atrás de meus olhos trouxe-me uma confirmação do que pensava. E aquele insistente e retumbante pesaroso desejo em forma de lágrimas escorreu pelas minhas bochechas, e escutei minha mãe arfar, preocupada. Lentamente, voltei a observá-la, e notei a feição indagadora que ela ia adquirindo. Fiquei com vontade de rir, de rir de toda aquela surpresa, de sentir o carinho deles, o altruísmo familiar quando meu pai deu vários passos em minha direção, Fynn logo traspondo o espaço entre nós e repousando a mão em meu braço, de forma protetora, e até o preguiçoso Haymitch levantando-se, o rosto abismado.

–Você está chorando? –papai ingenuamente perguntou, escorregando o seu dedo pelo meu queixo trêmulo, limpando a gota salgada que descera até ele. Meu sorriso alargou-se, dessa vez verdadeiro, e eu anui, sem levar em conta meu orgulho de nunca deixar ninguém me ver derramar uma única gota de lágrima. Eu troquei o peso de minhas pernas, sentindo o tecido macio do vestido roçar pela minha pele das pernas e fazer cócegas em minha panturrilha e na borda de meus pés. Devo tê-los assustado, pois eu segurei as mãos de mamãe e Fynn e dei um braço apertado em papai, enterrando meu rosto no seu peito e sentindo o cheiro dele. O cheiro tão conhecido daquele que me segurara nos braços por tanto tempo. Do calor da família que ficara ao meu lado por tantos anos.

–Eu... –comecei, sem saber direito como pronunciar a frase. Arranquei o cobertor de trevas em minha mente e deixei-o flutuar pela minha cabeça, tentando esfriar as súbitas labaredas de chamas que rodopiaram em meu corpo, partindo detrás de minha cabeça, mirando no centro de mim. Podia sentir com clareza cada um deles, cada um espantados por minha decisão. Cada movimento, cada percepção. E então, essa impressão desvaneceu, tão de repente quando resolveu aparecer. E o fogo consumiu-me novamente, aquele fogo que havia se acendido na noite de três dias atrás, quando acordei abafando um grito lancinante, suando frio, todos membros tremendo violentamente, engolindo o meu próprio sangue que navegava pelo meu paladar, de minha língua que mordera a fim de deter minha voz. Espantei as lembranças juntamente com as lágrimas, tentei ignorar a dor interna. Forcei minhas palavras para fora. –Eu amo vocês. Muito obrigada... Muito obrigada por tudo.

***

Pov. Autora.

Chloe andou pela casa, silenciosamente como um lobo, atenta a qualquer ruído que seus ouvidos altamente sensíveis e perspicazes podiam captar pelos anos de treinos que fora sujeita a passar. Esgueirou-se pela porta entreaberta do quarto do irmão, movendo-se com a agilidade que seu pai lhe ensinara a ter, cada passo gracioso e mudo ao tocar no chão calmamente, sem emitir um sinal de um dia ela ter passado por aquelas bandas.

Sua mãe ainda estava fora, e não sabia que ela havia chegado. Claro que não. Chloe entrara por uma janela destrancada (a qual ela providenciara) no telhado do segundo andar da casa onde se mudara. A casa de sua mãe, aquela onde seu pai houvera deixado quatorze anos atrás, quando a reclamara com a mãe, antes de partir para fora de Panem, para fora de toda a insanidade que tornara-se, para treiná-la a chegar onde estava agora, para cumprir sua missão que o pai deixara. Tinha de detê-los. Tinha de fazer isso pelo pai. Não podia desapontá-lo, não agora que ele se fora.

Não agora que eles mataram-no.

Chloe parou, e um longo suspiro saiu pela sua boca. Ela olhou para o lado, para suas mãos, e descobriu-se com os punhos em prontidão. Porém, não havia ninguém para se proteger contra. Não havia ameaças. Não precisava ficar tensa como estava, tinha de relaxar. O plano saía como era de sua autoria, não tinha motivo para encher sua cabeça de especulações negativas. Sabia onde o irmão – que não o considerava definitivamente um – se encontrava. Sabia onde a mãe fora. E sabia o que deveria acabar fazendo. Apesar de todas as forças que tentavam empurrá-la para outro lado.

Mas como? Como poderia fazê-lo depois de tudo que acabara por desvendar? O rumo havia mudado. Ela descobrira o principal e o verdadeiro propósito pelo qual tinha de estar seguindo. E aquela mudança, poderia desencadear tudo o que se prosseguiria por fim.

Subitamente, sentiu seus membros mais longos do que eram, desproporcionais ao seu corpo. Sentiu-se zonza e o mundo girou a sua volta. A cabeça pesou em seu pescoço, e a mente virou um turbilhão de lembranças desfocadas e desfiguradas atordoantes, e ela caiu. Ajoelhada, no chão, ela apoiou a cabeça nas palmas e aplacou sua preocupação e confusão que a rodeavam. Não sabia o que fazer. E ela recusava-se a aceitar essa verdade. Ela tinha de saber. Tinha de fazer algo. Havia prometido. Ela nunca ficara sem o seu chão, com o espaço perturbado, a realidade tornando-se uma mistura de sentimentos mascarados, difusos. Chloe não conseguia equilibrar-se. Não conseguia achar aquele ponto onde poderia trazê-la de volta.

Sua mão deslizou independente pelo bolso de sua calça. E de lá, retirou um papel. Um papel amassado, sujo e redobrado inúmeras vezes. As extremidades rasgara-se e mal podia-se ler as letras inclinadas pelas vezes incontáveis que o papel fora sujeito a mal tratos por diversas situações variáveis, algumas letras borradas por impróprias lágrimas surgidas do canto dos olhos da garota. Ela leu a carta pela décima vez naquele dia; sim, ela o contara. Não podia deixar de fazê-lo. Em suma, ela o lia em cada semana, todos os dias, antes de dormir, depois de acordar, em tardes desgastantes. Aflições que tinha de apartar.

E assim, recomeçou a ler. As palavras do pai que estavam gravadas em sua mente como marcas de labaredas inapagáveis, miseráveis, acesas fulgurantes e estendendo-se pela eternidade infinita de pontos inflamáveis e encharcados de líquidos irradiando provocações.

Chloe. Querida Chloe. Há anos tenho escondido segredos de você. Segredos de que não poderia ter privado você de conhecer. Seu passado, filha, nunca foi revelado – não verdadeiramente. E sim, eu me sinto culpado. Culpado por não ter sentado com você e conversado calmamente. Sempre fomos distantes, você e eu. Você pode não concordar, mas sim, nós fomos – infelizmente. Quando foi a última vez que você me perguntou sobre minha vida? Sobre o que eu fazia em sua idade? Sobre sua mãe? Sua antiga vida em Panem? Bom, você mal sabe onde é Panem. E não a julgo por sua ignorância em relação aquela área que fora isolada. Eu decidira dessa maneira, e não poderia ter feito pior em minhas escolhas. Não posso tomar decisões por você, minha filha. Não mais. E soube disso tarde demais. Controlei-a por tempo demais. Chloe, eu nunca respondera suas perguntas, aquelas que você fazia a mim, sobre minhas experiências, meus conselhos de quando tinha a sua idade. E não fizera por um motivo. Meu passado me assombra, ele me persegue, ele é cruel e não me dá trégua.

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A razão por estar escrevendo esta carta a você, neste exato momento, é porque sei que não vou voltar quando partir para essa missão. Tenho de resolver a luta de revolução da área ao Sul, e não disse a você, mas sei que não conseguirei vencê-la sem antes seguir um caminho que sei que você não iria gostar. Sei que você irá me chamar de fraco, de covarde, mas tenho de fazê-lo. É minha maldição. Eu fiz algo no passado; algo que não posso fugir mais. Por isso, filha, tenho de acabar com todos os meus temores por vez. Meus temores de nunca ter a chance de revelar a você o que tem de saber, de qual árvore você foi o fruto, de seu passado, de meu passado – que não está tão separado de seu – de sua família, de seu destino. Estamos interligados, Chloe. Não queria isso, mas estamos. Não queria que você carregasse meus erros com você, mas você está. Sinto muito por isso, meu amor. Espero que me perdoe um dia.

Não fui o pai que tinha de ser com você. Ou melhor, não sou – não fui – o pai certo para você. Nunca parei, relaxei e discuti com você sobre seus pensamentos, sobre seus desejos, sobre os mistérios que você queria desvendar. Nunca contei histórias para você dormir. Nunca tive um dia de descanso em que a diverti. Nunca deixei o meu trabalho de lado. E como me sinto arrependido por isso... mas já é tarde, e não temos mais tempo para isso. Não temos, porque logo não estarei mais do seu lado. Não, e você também não poderá mais andar comigo. Terá de descobrir sozinha as consequências da vida, as informações e maravilhas que ela oculta em lugares que você irá logo descobrir. E não estarei lá para ver sua reação. Não... mas também não sei se isso é algo bom, ou ruim.

Eu não contei história a você quando criança, não lhe respondi as perguntas que me fazia quando era pequena e que você pode não lembrar pelas tantas vezes que reiterei a você de que não deveria fazer-me essas perguntas. Mas agora, Chloe, tentarei ser um pai melhor. O pai que você merecia. Nem que sejam apenas alguns minutos, poucos minutos em que só estarão vivos nesse papel, e nessa tinta. Mesmo que meu coração já tenha parado de bater. Mesmo que eu não esteja a abraçando e a rodeando com meus braços e lhe narrando a história com minha própria voz. Não poderá acontecer isso, desculpe-me, minha querida. A história, também, não será um conto de fadas, como você queria que eu contasse. Nunca a vida será um conto de fadas. Nunca poderemos receber as coisas facilmente, temos de mostrar-se dignos de tê-las. Acho que ensinei isso bem a você. Isso, que irei contar, é a vida real. É a vida de meu passado, de seu passado, de nosso destino. Isso, minha filha, não é a melhor das histórias. Bem eu queira, mas não o é. Aqui você entenderá as respostas não ditas. Aqui tentarei explicar o porquê de nossa convivência ter sido do jeito que fora.

Espero que não me odeie por isso. Ela não começará com um era uma vez...

Eu tinha oito anos. Meus pais eram bons comigo. Razoáveis. Não posso dizer com convicção pois não me lembro mais de seus rostos, nem de seu carinho, nem de suas vozes. Talvez fique confusa já como tenho dito a você histórias incríveis do vovô e da vovó, mas certamente não são esses. Não os meus pais de sangue, não eles. A princípio, terei de contar-lhe onde morava, o que aconteceu por lá e por quê eu fugi. Você morou lá também, nasceu lá. Apesar de ter passado apenas alguns meses, poucos e escassos meses naquela enferma área. Doentia e impregnada. Uma maldita área, é o que é. Nunca irá se livrar do passado pelo qual fora dominado.

Uma dica, Chloe. A guerra é algo faminto. Ela sente sede. Ela é poderosa, instigante e persuasiva. Sabe convencer você, sabe o que quer. Ela absorve as pessoas ao seu redor, enchendo-as de orgulho e violência. Corrompe-os, pragueja-os. E não podemos escapar de suas dolorosas presas. Ela sempre irá existir, seja milênios depois, seja um dia após a ocorrência. A guerra sempre estará lá. E essa área não foi um lugar diferente. A ira encontrava-se nesse lugar, a dor e os lamentos passados. Pode viver em paz por certo instante. Pode aparentar mansidão por determinado momento. Mas não se engane. O sofrimento está selado naquele lugar, sei disso. Vivi isso. E assim como você viverá. Mais uma vez, sinto muito por isso. Eu sinto mesmo.

Nascemos em um lugar longínquo, seu nome era Panem. Uma área um tanto pacata em certos conceitos. Não detalharei exatamente como era seu governo, afinal você descobrirá mais sozinha. Porém, posso relatar brevemente alguns minuciosos “encantos”, para ajudá-la a entender melhor. Panem era (e é) dividida em treze distritos, apesar deste último ser obscuro e uma incógnita. Cada um tinha um trabalho, uma especialização. Mas isso realmente não é importante. O que é importante é que não demorou muito tempo, e nesse lugar, houve uma rebelião. Uma rebelião pois houvera um governo indigno e injusto. Ele manipulávamos, tornávamos seus escravos. Ele impunha-nos Jogos em que tínhamos de matar uns aos outros (dois tributos sorteados de cada distrito) até sobrarem apenas um a sobreviver, este seria o vencedor. Éramos forçados a fazer isso. Irracional, certo? Mas era como as coisas se decorriam por aquela área...

Logicamente não participava. Não ainda. Era apenas para crianças de doze à dezoito anos. Não tinha idade o suficiente. Havia prometido a mim mesmo que iria rompê-los, e parece que meu desejo tornara-se realidade. Mas só por um segundo. Como dissera antes, houve essa rebelião. Uma rebelião dos Distritos, contra a Capital, a nossa “mãe”. A “mãe” de muitas tragédias. E essa rebelião... trouxe tantas felicidades quanto infortúnios. Eles venceram, claro. Mas com sua vitória, vieram os resultados. Numerosas pessoas morreram, Chloe... inclusive meus pais.

Eles eram integrantes dessa rebelião. Levaram-me para um lugar seguro. Era apenas uma criança. Uma pequenina criança que não sabia o que estava acontecendo, o que iria acontecer. Obedeci-os, e no final, após vários e vários dias, quando finalmente saí do abrigo em que fora colocado, a única visão que tinha era de corpos. Apenas corpos. Corpos mortos, retalhados, e pálidos. Sem vida, sem um único sopro de esperança.

Essa revolução tinha como o ideal a esperança. Mas, filha, naquele momento eu não sentia esperança. Na frente de minha casa não havia mais o distrito que conhecia. Havia apenas destroços. E sangue. Imagens que uma criança de oito anos não deveria ver. Não deveria existir para sua realidade do mundo grandioso em que está preso. Da pequena visão ainda limitada que tinha.

Eu passei um bom tempo tentando achá-los. Meus pais, eu digo. Porém, você já sabe da resposta. Não demorou um longo período de tempo para pessoas vasculharem o distrito em busca de sobreviventes. Mas não esperei-os. Não queria esperá-los.

Não queria mais ficar naquela área, Chloe. Aquela área onde havia visto a pior lembrança em minha vidinha. Eu escondi-me. Eu esgueirei-me entre a floresta por perto. Eu corri. E fugi. Fugi para longe daquele lugar, longe do que acontecera, longe daqueles líderes. Longe daquela realidade que conhecera até então.

Sim, filha, eu fugi. Sei que considerará isso covardia, mas foi o que fiz. Fugi da terra onde meus pais decaíram, onde a terra consumira o sangue deles, e de muitas outras pessoas leigas com a mínima culpa pelo que a revolução acarretara. Eu pensava quando seria a minha vez. Minha vez de perder os sentidos, dessa vez por completo, para o infinito desconhecido. Será que seria morto por causas grandiosas? Ou por causas desprezíveis? Portanto, o tempo era ganancioso. Queria mais, queria mais sangue transcorrendo em sua ampulheta. Sempre fora assim, filha, sempre será.

Passei por bons três meses morando sozinho na floresta. Claro, sendo pequeno como era não havia chance de sobrevivência. Mas contei com certas ajudas. Habilidades que adquirira em minha precária juventude, imposta pelo distrito e por meus pais. Consegui garantir comida o bastante para o funcionamento de meus órgãos, para minha energia. Esgueirei-me por trilhas de lugares desconhecidos e decadentes. Passei por situações complicadas que nunca teria de passar naquela época de minha vida. Aliás, fora lá onde aprendi a construir meus primeiros instrumentos de guerra. Só tinha a mim mesmo, e a minha mente insana e enlouquecida. Mas infelizmente, fui obrigado a tê-las em minhas costas, chorando em meus ombros desolados.

Então, encontrei uma cabana.

Era uma cabana simples, humilde, embora respeitável. Não tinha contato com humanos por um tempo longo e hesitei em me aproximar. Mas a deficiência de boa acomodação e a curiosidade levaram a melhor. Deixei-me guiar até as portas daquela cabana, onde encontrei um casal. Este, querida, são os seus avós. Aqueles de quem sempre conto as histórias. As únicas histórias que um dia você me escutou proferir.

O casal não tinha nenhuma associação comigo. Nunca os tinha visto antes. Porém eles deram-me comida, carinho e a gentileza de um lugar onde viver. Recusei a princípio temendo aborrecê-los demasiadamente, mas pelo que pareceu, fora como suas preces respondidas. Fui como um filho para eles, e eles como pais para mim. Alguém a quem poderia recorrer. Logo, minhas lembranças dos meus antigos pais de sangue foram sendo esquecidas, e eles substituíram o vazio que se formara em meu peito.

Meu pai, porém, perguntara-me certa noite, em um dia tempestuoso sobre o que queria fazer ao crescer. Afinal, embora esteja crescendo e amadurecendo ao lado deles, não poderia ficar por ali para sempre. E então, ele dissera aquelas palavras. Aquelas palavras que me fizeram despertar da letargia efêmera. ‘Quero torná-lo um homem forte, Nicolas. Um homem perpétuo e perseverante. Quero torná-lo alguém, para proteger-se sozinho, para descobrir novos lugares. Agora, você está disposto a sê-lo?’ fora o que me desafiara. Não esperei muito mais que alguns dias. Queria tornar-me alguém capaz de suas expectativas. De agradecê-los. Alguém que poderia cuidar de mim mesmo, e dos outros. Por isso, fui treinado. Treinaram-me por longos anos exaustivos. Meus olhos foram abertos. Criei novas especulações. Filha, fui criado com a perspectiva de paz. Não queria que mais ninguém passasse pelo o que eu passei. Assim como eu tentei criá-la.

E foi assim que cresci, Chloe. Meu pai ensinou-me as lições mais valiosas que me ajudaram mais tarde sair para minha própria desventuras. Quando saí para seguir meus próprios passos, sozinho. Nunca mais encontrei a cabana de novo. Como sempre, nunca conseguimos chegar ao mesmo lugar duas vezes... uma frase equívoca, pois parece ter uma grande ironia nessa afirmação. Lembre-se dela, logo voltaremos a discutir sobre.

Saí da cabana quando havia completado meus dezesseis anos. Quase a sua idade, filha. Sinto muito por não poder vê-la atingir seu auge. Espero que possa crescer forte e saudável, uma moça vigorosa como ensinei-a a ser.

Bom. Foi aí que comecei a pensar, ponderar. E se... E se? E se eu, por conta própria, começasse a mudar aos poucos aqueles problemas e pragas que antes afligiam-me? E se eu me empenhasse em transmitir os ensinamentos que eu aprendera com meus pais na minha própria vida? O que aconteceria se eu fundasse para mim mesmo uma nova meta, um novo destino? Se traçasse uma nova linha pela qual seguir? E foi o que fiz. Comecei a liderar minha própria mente. Criei a iniciativa de acabar com as revoltas das áreas do Norte, Leste e Sul. Esbocei os planos em minha mente, alinhando minhas frentes de ‘combate’. Passaram-se anos, e logo expandi-me para outras fronteiras. Fui nomeado o Pesadelo dos Caçadores, e tão rápido quanto a ideia surgiu em minha cabeça, já começara a formar planos mais elaborados, e conseguia vencê-los. Conseguia acabar com fraturas e quebras antes que estas começassem a se englobar em uma catástrofe ambulante. Tudo estava bem.

Mas, é claro, não podia permanecer do jeito que estava. Novas lideranças apareceram, e antes que eu pudesse me dar conta, havia mais do que minha própria vontade em tudo isso. Havia mais do que minha pessoa realizando esses atos complacentes. Eu o criara sem eu perceber, minha querida. Eu criara a Demanda sem perceber.

A Demanda, a princípio, fora apenas uma ideia mal pensada de minha esperança em mudar toda as visões daqueles a nossa volta. Tentar cessar toda as guerras desnecessárias. Cessar toda a violência inoportuna. Cessar a perturbação que se alastrava. Tentar não criar mais órfãos como eu virara. Ajudando-os a manter-se nos trilhos. O Pesadelo dos Caçadores se espalhou, no entanto, e fui procurado. Pessoas vieram até mim, pedindo-me para entrar em meu Conselho. Não sabia o que poderia fazer, já como na época eu mal o tinha decidido. E tal como apareceu, eu velozmente o desenvolvi, e cá estamos. O Conselho com milhares de membros, dispersados por todas as Áreas imagináveis, controlando a soberania da calma entre as fronteiras, como deve ser.

Não foi totalmente minha escolha criar a Demanda, Chloe. Espero que compreenda isso. Mantive-me consciente de minhas responsabilidades, e acabei por fazer algo que prometera a mim mesmo nunca fazer: deixei-me perder nos compromissos, nas pressões, no trabalho de liderar um Conselho por completo e esqueci-me do mais importante, você. E eis mais um conselho, querida. Sei que quando partir, você será minha descendência na liderança. Você liderará a Demanda. Nunca se esqueça o mais importante, não deixe que isso suba a sua cabeça ou encha seus pensamentos.

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Novamente, peço perdão por mais essa responsabilidade em seu ombros, mas é preciso. Confio em você. Confio e sei que você dará uma boa líder. Principalmente pois a maioria de minhas decisões vem a partir de você, huh? Sei que fará o que é correto para o Conselho, e para todos.

E então, quando tudo estava calmo, aquela ideia brotou em minha cabeça. Por que não visitar minha área natal? Por que não descobrir o que se passa por lá? Afinal, agora eu poderia consertar as coisas. Arrumar a destruição que poderia ter causado toda aquela rebelião. Depois daquele dia em que eu fugi, eu nunca mais tentara procurar pistas ou informações sobre Panem, portanto estava alheio quando cheguei ao distrito onde morava e encontrei toda Panem reconstruída. Toda a área estava em seu equilíbrio novamente, como se nada houvera acontecido.

Acabei por ficar um tempo por lá. Para o lugar onde havia iniciado toda minha jornada surreal. Onde aprendera a viver. E é aqui que se encontra a ironia, lembra-se? Pensava que as dores da perda atormentavam-me de novo, e de repente... lá estava, querida. Eu encontrei quem você poderia chamar de mãe, mesmo que esta não a tenha feito o papel com precisão. Encontrei-me com sua mãe, conhecera-a pela primeira vez naquele distrito onde antigamente morava. O passado perseguindo meu presente. E meu futuro.

Sim, ela não morreu em seu parto, meu amor. Desculpe-me por ter de inventar essa mentira a você, de fazê-la acreditar que estava morta. Mas não poderia correr o risco de perdê-la, de fazê-la voltar. Sua mãe, ela... tem ideias antagônicas as minhas. À sua. Ela preferiu não tê-la por perto, e por isso eu carreguei-a comigo.

Porém, minha “cegueira amorosa” não mostrou-me quem ela era cedo. E cometi um grave, grave engano. Sua mãe era enfermeira, é claro. Tinha habilidades incríveis com curas. Tenho de admitir que fingi meu ferimento em meu braço para poder tê-la por perto. Naquela época, não sabia quem ela era. Não quem era realmente. E pela minha paixão que deixara-me insensível a qualquer tato, segui em frente com sua mãe. Fiquei com ela por longos e longos meses. Por um momento, deixando-me ser guiado por sua voz suave, por seus olhos cautelosos e brilhantes. Sua bela mãe... que por um descuido meu acabou carregando gêmeos em si.

Sim, Chloe. Você não é filha única. Você tem um irmão.

Ficáramos felizes, com toda certeza. Dois jovens apaixonados, o que poderia dar de errado? Iríamos ter uma família, e com ela poderíamos ficar juntos naquele distrito, com nossas vidas entrelaçadas.

Mas, claro. Não era tão simples assim.

Sua mãe acabou contando-me um segredo. Fazendo-me prometer que me manteria calado, que não contaria a ninguém. E assim o fiz. Tolamente, imponderável. Um segredo que nunca queria ter sabido. Porém, entretanto, se não o soubesse, não gostaria de saber onde estaria neste exato momento. Quem você seria neste exato instante. Tudo poderia estar completamente mudado, completamente transitório.

Sua mãe havia sobrevivido a rebelião, também. No entanto ela não estava contra a Capital, ela era da Capital. De fato, muitas pessoas que conviviam como membros da Capital haviam mudado drasticamente, no caso porém não era o de sua mãe. Ela queria vingança. Ela ostentava uma fúria incontida de conseguir o que lhe fora tomado. A glória de viver por outros. A soberania que sentia em relação aos outros. A vontade de se sobrepujar com seus materiais descartáveis. Ela não era quem eu conhecera no hospital. Não era a mesma mulher por quem me apaixonara. Não. Mas era ela, ao mesmo tempo.

Seu segredo, querida. Fora o seguinte.

Não havia acabado. Não, não mesmo. A rebelião era apenas o princípio de uma nova era. Integrantes da Capital, cada vez mais revoltosos, uniam-se em apenas um. Planejavam seus encontros. Programavam sua nova revolução. Uma revolução que colocaria Panem nos “eixos” novamente. Dessa vez, no caminho certo. Não apenas voltar como era antigamente. Voltar a sua época de obscuridade.

E o que eu poderia fazer? Eu havia acabado de descobrir que a mulher quem eu amava – ou pensava amar – era quem eu deveria eliminar. Quem eu deveria eliminar para que não ocorresse uma nova guerra que afetaria todas as áreas que faziam fronteiras com Panem. A mulher que carregava meus filhos, você e seu irmão, era minha adversária. Não foi uma surpresa quando entrei em pânico. Nunca contara a ela sobre quem eu realmente era. Não, e agora não podia contar nem tanto. Tinha de arrumar um jeito de contornar a situação. Mas como? Como tirá-la daquele raciocínio estúpido e ridículo? Como fazê-la ficar comigo, como éramos antes? A maldição do passado houvera recaído sobre mim novamente; ele finalmente havia me pego.

Não me importei com o resto da revolução. Com o resto dos integrantes. Importei-me, naquele instante, apenas com ela... e em vocês. Primeiro, implorei a ela. Implorei para que fugisse comigo, fugisse para um lugar seguro e calmo, fugíssemos de toda a tragédia que se repetiria. Mas ela rira de mim. Rira desdenhosamente, recusando sem pigarrear. Ela queria participar daquilo, queria participar da carnificina que voltaria a ocorrer. Queria voltar a ser uma integrante privilegiada da Capital, tendo a vida confortável e despreocupada por meio de trabalhadores que mal desejava conhecer. E com o conhecimento dessa verdade, veio a minha repugnância àquela mulher. A quem eu pensara conhecer. A quem eu pensara ter me apaixonado. Finalmente, depois de um longo e tumultuoso furacão, consegui enxergar.

Naquele dia, apesar de ainda desgostá-la, sentir uma profunda aversão por ela, ainda tinha o sentimento de preocupação pelo seu bem. Embora passasse a acumular uma raiva dentro de mim, ainda queria o melhor para ela. Por isso mantive o segredo, como prometera. Mas, como sempre, eu escapara dela. Fugi de sua presença. Não conseguia mais permanecer ao seu lado, como sempre estava. Não conseguia olhar para ela sem sentir uma ojeriza subir-me a mente. Ela, praticamente, havia matado meus pais. Havia matado milhares de pessoas inocentes. E não se importava com isso. Eu desapareci, deixando-a sozinha. Sei que fiz algo precipitado, afinal, havia a deixado em meio a sua gravidez de duas crianças. Dois dos meus filhos. Aqueles quem era queria treinar para a revolução que logo viria da Capital, ela me contara seus planos.

Estava à frente a uma assassina fria. E incólume.

Nove meses depois, eu reapareci. Havia acabado de sair de uma chacina de sangue na Área Norte, e com minhas preocupações, acabara perdendo pela primeira vez algo que era meu. Foi essa luta, filha, em que perdi minha visão do olho esquerdo. E quando revi sua mãe, ela não havia mudado nada, para meu desapontamento. Mas não apenas não mudara em sua personalidade, como não parara de me amar. Não via como ela ainda conseguia sentir algo por mim, um homem que fugira quando ela estava passando pelas situações mais depravadoras. Mas ela continuava a se preocupar comigo. Nunca vou esquecer quando cheguei em sua porta, e ao abri-la e se deparar comigo na soleira, ela correra para meus braços, agarrando meu pescoço e apertando-me contra ela como se fosse seu pilar de salvação. Foi com muita dor que consegui soltá-la, e por fim, reclamar por meu filho.

Não quero que pense mal de mim. Não podia continuar com ela. Tanto meus conselheiros da Demanda quanto meus instintos me diziam para afastar-me dela. E o que poderia fazer? Sabia que era o certo. Se ela descobrisse quem eu era, em algum momento, nem por um mínimo descuido, tudo estaria arruinado.

Ela recusou meu pedido. Não queria entregá-la a mim. Dissera-me seus planos. ‘Por que não transformá-los em nossos pequenos instrumentos? Eles serão perfeitos. Verdadeiras armas sem piedade contra a alma humana. Sentindo repulsa por aqueles diferentes de nós! Serão nossos rei e rainha no tabuleiro. Conseguiremos dar o Xeque-Mate tão fugazmente quanto a antiga rebelião fizera! Um coração para matar’ dissera sua mãe a mim. Sim, minha querida, ela a via nada mais como uma arma, um brinquedo, uma peça para jogar. Não podia deixá-la fazer o que estava fazendo. Por isso, ameacei-a. Intimidei-a de um modo que nunca vou conseguir esquecer os olhos amedrontados e marejados que me lançara. Sua lógica era patética, e meu raciocínio desfazia-se, dissolvendo-se como névoa ao amanhecer. E por fim, ela entregara-me você. Desesperada ela acabara por colocar sua própria vida para conseguir ficar com seu irmão, e eu nada pudera fazer para salvá-lo. Ela tinha razão. Eu não conseguiria prejudicá-la para conseguir meu filho. Não conseguia viver com a culpa pesando minha consciência.

Chloe, eu treinei-a desde criança não para ser uma arma assassina. Mas sim, uma esperança. Uma das chamas de que pode formar as flamas do incêndio que a líder da rebelião de antigamente formara. Tentei transmiti-la todos meus ensinamentos, meus conselhos e tentei dá-la meus conhecimentos, as lições de vida que a tornaria uma jovem resistente e destemida. Trazer a você aquela paz e compaixão que meus próprios pais me deram. E agora, nessa carta, reflito e vejo que consegui chegar ao meu destino.

Minha querida filha, espero que me perdoe por todas as mentiras que fora obrigado a criar para você. Espero que com esta carta suas dúvidas se esclareçam. Ou pelo menos, a maior parte delas. Fico orgulhoso de ver que consegui transformar você em uma jovem que cresceu depressa, em forma e sábia. Com a inteligência que ensinei você a ter. Com a audácia que desenvolveu em suas muitas experiências e talentos pessoais. Em vê-la como consegue vencer-me nas batalhas que travamos, como consegue desviar do fio de minha lâmina tão fugaz quanto consegue driblar meu golpe e contra-atacá-lo determinada, sem medo ou intimidada, como ensinei-a. Como consegue ter o pleno raciocínio de batalha enquanto maneja as armas que ensinei-a a usar, seja qual for, o momento que for. Vejo que fiz minha parte corretamente. Que consegui trazer uma garota abnegada e altruísta, como aquela que protegera o garotinho de quatro anos de uma pantera radioativa há alguns meses atrás com o próprio corpo, e as próprias habilidades. Sem minha ajuda.

Sei que conseguirá liderar Demanda. Sei que conseguirá controlar seu eficaz talento em combate como sempre alcançou. Sei que já a tenho mandado em muitas missões, mas mesmo sem eu por perto, ainda tenho uma para você. Sua missão, um de seus propósitos mais essenciais.

Sua importância, Chloe, é não permitir a abertura das portas da desesperança. Do desespero. Não pode conceder a passagem ligeira da monstruosidade que o medo traz. Não pode deixá-la quebrar a paz que finalmente se instalara em Panem. Em todas as áreas que a decadência irá afetar.

Você tem de salvá-los, meu amor. Tem de resgatar Panem, manter sua paz, assim como a das Áreas que sempre protegemos, tanto essas quanto aquelas que acabar por descobrir. Você tem de manter a paz no Conselho, não deixar Demanda cair e desfalecer.

Você é meu pilar de apoio, minha filha. Eu estou contando com você.”

Nenhum “eu te amo”. Nada. Não que Chloe esperasse expressões como essas, seu pai e seus conhecidos em geral nunca diziam essa palavra, essa frase. Porém, sempre quando lia a carta repetidas e repetidas vezes, lágrimas traidoras escapavam-lhe dos olhos. Mentiras reveladas, verdades lideradas, palavras consoladoras e uma missão. A missão que mais ocupara lugar em sua mente.

Não podia deixar de pensar como seu título que havia imposto sobre ele definia seu papel naquele momento. Guardiã da Solidão. Pelo menos não era um como ‘Pesadelo dos Caçadores’ como seu pai. Sempre sentia vontade de rir quando um de seus seguidores e membros da Demanda o chamavam de tal forma. Afinal, todo líder tem de ter um reconhecimento. E era assim como eles demonstravam o seu respeito. Ou, Chloe pensava, geravam uma denominação mais amena que apenas ‘líder’ – algo que ela não gostava de pensar que era, já como comandava o Conselho agora. Odiava dar comandos. Pelo menos, Demanda é um Conselho livre. As pessoas não são presas completamente a qualquer ordem dada por ela. Elas agem por conta própria, para a libertação de mais Áreas.

Chloe respirou fundo e amassou o papel novamente, enfiando-o no bolso com os dedos trêmulos voltando a sua normalidade. Firmes novamente, ela cerrou-os em punhos e sustentou-os no chão gélido e ardiloso, que beliscou sua pele como mosquitos insistentes perto a Antiga Capital. Assim, ela levantou-se, a cabeça abaixada, os olhos semicerrados olhando fixamente para os pés, que permaneciam parados, imóveis, ambos retos e apontando para a janela do quarto do irmão. Ela ergueu o rosto, a janela estava aberta, a cortina esvoaçando com o vento cortante que picava sua pele descoberta. A garota desfrutou daquele momento único, que poucas vezes poderia sentir ali.

E então, enquanto observava o céu, ela notou algo ofuscar sua visão, refletindo a luz do sol. Involuntariamente seu braço se levantou, tampando o forte brilho que escondeu-se um milésimo de segundo depois. A garota franziu a testa, repassando as alternativas em sua mente, e por fim um sorriso deslizou pelo seu rosto.

–Achei-os. –murmurou baixinho, mais para si mesma do que para alguém específico.

E virando-se contra a janela, esgueirou-se silenciosamente pela porta do quarto de seu irmão, pelos corredores e pela casa. Passou pelos cômodos vazios e decrépitos, chegando até a frente da casa. Correu até a floresta, imaginando quem agora eles estariam trazendo para preparar-se para dali alguns dias, quando tudo aconteceria. Embora conhecesse quando seria, graças ao seu irmão gêmeo sonâmbulo, nada poderia fazer para impedir. Apenas retê-los pelo máximo de tempo que poderia, apanhando-os de surpresa, reduzindo-os numericamente, atrapalhando-os.

Assim, foi fazer seu trabalho.

–Que venham os Jogos. –sussurrou quase inaudível, as árvores passando por seus lados com ventos uivantes gritando em seus ouvidos, e ela puxou uma adaga de suas botas enquanto corria depressa para o local onde vira os aerodeslizadores descerem. E ela não os temia. Não precisava temê-los. –Vou fazê-lo orgulhoso, papai.