Two Pieces

Sessão das nove e meia


Capítulo 6 – Sessão das nove e meia

O caminho até a sala da diretora foi tenso. Elisa seguiu primeiro, em silêncio, somente os saltos altos fazendo um barulho irritante enquanto andava. Guilherme seguiu atrás dela, soltando um gemido de dor a cada três passos. Rafael e eu fomos os próximos; ele manteve aquela mão nervosa na minha cintura firmemente, como se pertencesse ali. Tentei me desvencilhar dela dizendo:

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—Tá tudo bem, eu estou mais calma agora. Obrigada. — sorri e achei que ele iria realmente soltar.

—É melhor não soltar. Kamilla é uma excelente mentirosa. — alertou Geovanna. Olhei para trás com raiva e Rafael apertou seu braço em volta da minha cintura. Não estava a fim de discutir, então, somente fiquei calada. Rapidamente chegamos à sala. Na porta, Elisa se virou para falar conosco.

—Kamilla e Guilherme me acompanhem. O restante fica aqui, ou voltem para suas atividades. —Rafael soltou-me devagar e assim eu adentrei a sala que tanto conhecia. Podia dizer de cor onde ficava cada coisa.

—Acho que vou ter que mudar minha cama para cá. — disse baixo, só para mim. Já vim aqui tantas vezes por tantos motivos diferentes. Nenhum bom, claro. Mas a minha criatividade de conseguir entrar em confusão é muito grande.

—Sentem-se. — sinalizou Elisa e todos nos acomodamos em nossas cadeiras. Ela cruzou as mãos a frente do corpo, sob a mesa e começou a falar, a voz aparentando cansaço. — Muito bem, o que aconteceu?

Guilherme e eu começamos a falar ao mesmo tempo, as vozes altas, apontando um para o outro de forma acusatória. Elisa revira os olhos antes de pedir silêncio.

—Chega! Certo, educados! Guilherme, você pode explicar primeiro.

—Certo. Lá estava eu tranquilamente conversando depois do café da manhã tranquilo, quando essa ogra aí...

—Eu. Não. Sou. Ogra. Seu verme maldito! — interrompi. Elisa me lançou um olhar severo.

—Nada de ofensas em sua história Guilherme. Ela tem nome, experimente usá-lo. — Elisa chamou sua atenção. Dei um meio sorriso com isso. Ele apenas ignorou e continuou.

—Como eu estava dizendo, Kamilla — ele pronunciou meu nome com nojo. Tudo bem Kamilla, conte até 10. — me atacou sem motivo algum e, como eu sou um cavalheiro, eu não a ataquei de volta.

—Correto. Sua vez Kamilla.

—Ah claro, cavalheiro sei. Enfim, me deixa contar como as coisas realmente aconteceram. —contei tudo à diretora, desde quando eles começaram a namorar até a o dia de hoje. Elisa escutou tudo atentamente e Guilherme até tentava intrometer, mas quando o fazia era cortado. Quando terminei, Elisa virou-se para Guilherme com o rosto sem expressão.

—Guilherme, você já pode ir. Quero conversar com a Kamilla a sós. — ele se levantou, e seguiu até a porta. Quando a abriu, Elisa gritou. —Rafa querido, — Rafael apareceu na porta, somente a cabeça espiando para dentro da sala com um sorriso levado. — pode, por favor, levar Guilherme para a enfermaria?

Rafael, em silêncio, assentiu e levantou espreguiçando-se. Antes de fecharem a porta, notei que Geovanna não estava mais lá. Virei-me para Elisa que agora me olhava com um olhar diferente. Havia algo melancólico no olhar dela, sempre houve, mas parece que agora ele estava mais acentuado.

—Ah Kamilla! Você não pode bater em todos que machucarem o coração da Geovanna. Ela é nova e ainda vai sofrer muito com desilusão amorosa.

—Mas ele a tratou mal! — argumentei.

—Eu sei que sim querida. Porém isso não pode acontecer. Kamilla você sabe de cor as regras do colégio. O que elas dizem sobre brigas? — realmente não era exagero. Eu sabia as regras, pois uma vez o meu castigo foi decorá-las. Isso foi bom, pois assim quando me meto em encrenca posso argumentar.

—A primeira briga é somente um castigo, na segunda é suspensão e a terceira expulsão. — repeti entediada. Ela assentiu. — Mas essa é a minha primeira. — respondo alarmada.

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—Eu sei que é. Só queria que repetisse para que você ficasse atenta. Coração partido e outras dores precisam ser sentidos. De que outra forma pode dar valor às coisas boas a nossa volta? E agora, vamos ao castigo! — ela se levantou e caminhou lentamente sem algum rumo específico. — Como você sabe esse ano nós temos o passeio anual. — aprendam as vantagens de se ser uma órfã: todo ano, ganhamos milhares de doações. Computadores, celulares, televisões, algumas roupas e passeios. Cada turma tem direito a um passeio anual que ela pode escolher. São oferecidos lugares e é marcado um dia para que ela vá ao lugar que escolheu. Todos os anos a minha turma vai para o Araguaia. Por quê? Porque são uns acéfalos, por isso. Só pra constar, eu odeio o Araguaia. É só um lugar cheio de areia pro seu cérebro ficar contaminado de músicas “arroxa” e doar sangue aos mosquitos sem querer. Esse ano, como nossa viagem foi antes da quadrilha, não temos muitos recursos. Daí, vamos juntar todos do ensino médio para ir até aquele lugar maravilhoso.

—Sim, o super divertido passeio para aquele lugar maravilhoso. — sentiram a ironia?

—Que bom que está tão empolgada, porque você não vai. — ela falou com um sorriso parando-se a minha frente. Arregalei os olhos. Entenda: eu realmente odeio o Araguaia. O problema é que é melhor você ficar com os acéfalos do que “sozinha” nesse colégio. Eu odeio ficar sozinha. Causa-me um pouco de receio. Não medo, receio.

—Ah não Elisa. Qual é? Eu odeio esse lugar quando não tem ninguém. É tão vazio.

—Bem, isso vai ser ótimo. Pra você pensar em seus erros. E nem pense em fugir. Temos câmera e os seguranças não vão sair do colégio, somente os alunos da sua turma. E eu não quero saber de você nos outros pavilhões. Estou entendida? — como são o ensino fundamental e o ensino médio, fomos divididos em pavilhões. Há o pavilhão dos fundamentais e dos que cursam o ensino médio, como eu. O pavilhão vai ficar provavelmente vazio, a não ser que alguém escolha ficar.

—Sempre não é? — retruco. Ela prefere ignorar.

—Venha. Você tem desculpas a pedir.

***

Joana, nossa enfermeira auxiliar, cuidava com um carinho exagerado dos ferimentos no rosto de Guilherme. Ele reclamava, porém lançava seu olhar “sexy” até a mulher, que soltava um sorriso safado e ruborizava toca vez que tocava em seu rosto para limpar os ferimentos. Atrás dela estava Maria, a enfermeira chefe, uma mulher de cinquenta anos com cabelos loiros de raízes brancas um rosto fino e um pouco gorda. Ela estava até conservada para sua idade. Sempre mantinha um sorriso no rosto e me amava. Rafael não estava lá.

—Olá Tia! — cumprimentei Maria que se virou para mim com um sorriso encantador no rosto.

—Olá querida! O que você anda aprontando?

—Nada de mais. — sorri acanhada e me aproximei dela para ganhar um abraço fraternal. — só surrando alguns meninos malvados. —sussurrei em seu ouvido e ela riu. Quando nos afastamos ela fez um sinal de joia com o dedo para mim.

—Vamos direto ao assunto Kamilla. Por favor. —pediu a diretora, sem paciência. Aproximei-me de Guilherme e comecei a encenar.

—Guilherme, me desculpa por ter batido em você. Não posso bater em todos que magoam o coração de Geovanna e reconheço que estou errada. Não vai acontecer de novo. — o meu olhar de arrependida foi impressionante. Geovanna realmente tinha razão: eu era uma excelente mentirosa.

—Está certo Kamilla. Aposto que não. — Guilherme fingiu que acreditou e eu me retirei daquela sala. Não aguentaria ficar ali nem por um segundo.

***

Respirei o ar fresco mais uma vez. Verde costuma ser minha cor favorita, pois me acalma. Estava sentada debaixo de uma árvore a qual o nome desconheço, no fim do jardim do colégio. Quase ninguém vem aqui, por isso aqui é o meu cantinho. O lugar onde eu reflito e relaxo; chego a chorar até expressando todas as minhas emoções.

Estava em transe, passando tudo pela minha cabeça até escutar passos vindos em minha direção.

—E aí gatinha, tá acompanhada? — pergunta Geovanna em tom brincalhão.

—Depende de quem pergunta. — olho para ela. — Pra você to sempre casada e feliz trem feio. — ela ri e eu também. Ela se senta ao meu lado.

—Me desculpa. — ela pede baixo. Geovanna não é de pedir desculpas. Em todos os nossos anos de amizade, posso contar nos dedos de uma mão só as vezes que ela me disse essas palavras. Foram duas. Com essa.

—Está tudo bem. Eu só não entendo por que escondeu isso de mim.

—Se eu contasse você ia ficar feliz e orgulhosa?

—Não!

—Viu? Foi por isso que não te contei. Sabia o sermão que levaria e eu só queria curtir o namoro. — ela suspirou. — que burra eu sou.

—Burra não, apaixonada. Apesar de ser quase a mesma coisa. — sorri. Ela sorriu também e se jogou nos meus braços.

—Qual o castigo?

—Ficar aqui e aproveitar o colégio amanhã. — Geovanna arregalou os olhos.

—Mas você odeia ficar só. — concordei com um aceno. — Vou ficar!

—Nem pensar! — decidi. Ela ama aquele lugar e sempre fica mega empolgada em ir. Sempre.

—Mas você odeia ficar só. — ela repetiu. Continuei balançando a cabeça.

—Vá ao seu passeio e se divirta. Faça o que sempre fez por mim. — ela me abraçou de novo e ficamos assim por um tempo.

***

As oito em ponto o ônibus saiu com todos os alunos. Cabisbaixa, voltei para o quarto e liguei a televisão. Não havia exatamente nada para fazer e eu estava começando a ficar entediada. Fiquei pensando na Geovanna e nas coisas do passado. É amanhã, pensei infeliz. É incrível a capacidade do tempo de passar rápido. Silenciosamente ele passa e você não percebe que nada é mais do mesmo jeito. Estranhamente, minha mente começou a pensar em Rafael. Ele é um garoto bonito, tinha de admitir. O sorriso dele era algo lindo, como eu nunca tinha visto. E os seus olhos? Perfeição. Certo, isso está estranho. Eu não deveria estar pensando nele. Mau sinal, mau sinal.

Forcei-me a assistir o programa ruim que passava. Sábado à noite e eu em casa. Ninguém merece. Ainda era cedo e só havia o jornal passando. Fim. De. Carreira. Resolvi ler. Mas já havia lido todos os livros que tinha. Eu teria que ir a biblioteca que provavelmente estaria fechada. Certo, sem biblioteca. Podia mandar mensagem. Mas para quem? Estavam todos sem crédito, pelo menos os que eu converso. Ok! Posso excluir mandar mensagem. A sala de computação estaria fechada, provavelmente. E só a sala de jogos que poderia estar aberta, mas ela fica do outro lado e com quem eu iria jogar? Se bem eu me lembro, estou sozinha. Excelente. Só faltam os gatos agora e sou uma velha rabugenta e sozinha com 37 gatos. Merda.

Quase morri quando escutei a porta batendo. Será que Elisa teria se redimido e voltado só para me levar? Não, não seria ela. Quem então? A tia da cantina com o jantar? Não, ela tá de folga. Certo, então o jeito era abrir. A pessoa do outro lado bateu mais uma vez. Saltei da cama e fui em direção à porta. Abri a porta com rapidez e meu coração deu um salto.

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—Rafael? — escondi atrás da porta assim que a ficha caiu. Estava com um baby look curto e apertado e toda descabelada. Ótimo jeito para se apresentar na frente do garoto. Mas não importa, ele é o Rafael. Ou importa?

—Oi. — ele deu um sorriso sem graça.

—Pensei que estivesse viajando.

—Não gosto do Araguaia. — disse ele. — lembranças ruins. — respondeu apenas e pelo seu olhar pude ver que não falaria mais nada.

—Bem, então somos dois! Entra, fica a vontade. — abri mais a porta para ele entrar. — só preciso trocar de roupa. — ele olhou para mim e deu um meio sorriso. Corei na hora. Fechei a porta e abri o armário pegando a primeira roupa que vi e entrei no banheiro. Realmente eu estava em estado lastimável. Se fosse encontrada na rua, era bem capaz de ser facilmente confundida com uma mendiga. Droga.

Troquei rapidamente de roupa e penteei o cabelo. Não era uma superprodução, apenas algo para ele não pensar que sou uma mendiga. Afinal, não é só porque era o Rafael que eu deveria relaxar, certo? Voltei para o quarto e ele estava sentado na cama da Geo, mexendo com o controle na televisão.

—Então, por que não gosta do Araguaia? — perguntou ele.

—É um lugar ruim só isso. Cheio de mosquitos e areia. E eu odeio mosquitos e areia. — ele riu e eu também. Pensei em perguntar sobre ele, mas lembrei de seu olhar e decidi ficar calada. Joguei-me na cama ao seu lado sentindo seu perfume. Era tão bom, doce, mas sem exagero, um perfume viciante. Qual foi Kamilla, o que está acontecendo? Ficou maluca. É o Rafael. RAFAEL! Olhei para o controle em suas mãos. Rapidamente avancei para tomar dele. Estava me exibindo, abusando de sua cara de espantado com a minha rapidez, um sorriso em meu rosto quando ele resolve contra-atacar. Ele se lançou sobre mim e eu saio da cama rapidamente de novo, o deixando cair sobre ela. Ele se levanta mais rápido que eu imaginei e olha para mim com um sorriso sapeca. Arregalo os olhos e sorriu tão sapeca quanto ele, e corro para a porta abrindo-a. Estávamos correndo pelo corredor, ele ria alto atrás de mim. Cada vez que ele quase me pegava eu gritava e ria quase ao mesmo tempo. Fui até a cozinha, meu erro fatal, pois fui encurralada entre as mesas. Ele sorriu vitorioso.

—Venci! — ele se exibiu e eu mostrei língua. Ele pareceu ofendido. — está mostrando língua para mim? Que coisa feia Campos. Merece uma lição. — ele se aproximou de mim, enquanto eu gritava “Não!”, mas já era tarde. Ele me pegou, colocando-me de cabeça para baixo e começou a fazer cócegas. Eu ria e gritava, mas ele não parava. Estava se divertindo de mais para isso. Quando me colocou no chão, ambos estávamos exaustos.

—Eu to com fome. — disse ainda entre risos. Ele se sentou em uma cadeira, concordando com um aceno. — vem, lá dentro deve ter pipoca.

—Desde quando você sabe fazer pipoca?

—Quem disse que eu estava falando de mim? Você vai fazer a pipoca. — ele estreitou os olhos, mas me seguiu.

Quando voltamos ao quarto, com uma bacia de pipoca nas mãos e Rafael com um suco que eu fiz nos acomodamos na cama da Geo. Ele olhou curioso para a prateleira de filmes.

—Que tal assistirmos um filme? — sugeriu.

—Eu topo. Mas quem escolhe?

—Pode ser você — ele respondeu dando de ombros.

—Certo. — entreguei a pipoca para ele e fui até a prateleira. Em cima ficava os filmes de Geovanna e embaixo os meus. — quantos?

—Como assim quantos? Só um não?

—São 9:30 agora. Dependendo dos filmes da pra ver uns três.

—Podemos passar a noite inteira vendo. Não temos nada para fazer amanhã mesmo.

—Ótima ideia. — sorrio. Distraída, olhei os filmes. Qual escolher? Qual escolher? Estava muito indecisa. Acabei optando por A lenda do cavaleiro sem cabeça, os vingadores e Sherlock Holmes. Assim que voltei exibi os filmes para ele, que me olhava atentamente. Aquilo era brilho em seu olhar?

—Ótimos filmes. Eu ponho! — ele se levantou e colocou o filme. Assim que voltou, começamos a assistir os filmes. É, essa vai ser uma longa noite.