Três dias e um quarto

Dia 3 e adiante – Lar, fuga e fim do prazo




Lar, fuga e fim do prazo

O que Hitoka Yachi mais odiava no mundo, odiava acima de qualquer coisa – até mesmo mais do que odiava o sentimento de que não fizera tudo o que podia ter feito, a sensação de absoluto descontrole sobre sua própria vida, a incapacidade de impedir o caos dentro de sua cabeça e a destrutiva tendência a ser devorada pelas próprias expectativas – era ser sempre, independentemente do quão pequeninos estivessem os pedacinhos quebrados de seu coração, sempre, inexoravelmente sempre, a pessoa que conforta.

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Os dedos deslizando suaves pelos fios dos cabelos castanho-claro, a boca seca sussurrando baixinhos consolos, as pernas dobradinhas de apoio ao choro dolorido que molhava sua bonitinha meia-calça colorida: Yachi odiava, realmente odiava, assistir seu próprio coração disparado e seus próprios pensamentos dolorosos serem pouco a pouco, progressivamente, devagarzinho, sufocados pelas lágrimas e pelos pedidos de desculpas que escapavam da garota em seu colo e não poder fazer nada, absolutamente nada, para impedir-se de neles afogar.

Vinham em enxurradas, os pedidos de desculpas e as lágrimas. Em ondas. Emaranhando-se uns aos outros, truncando-se, repetindo-se, misturando-se, todos de uma só vez como se no mesmo fôlego. Altos, incompreensíveis, doloridos.

Era sempre assim, então não devia ser surpresa. Sempre fora. A garota em seu colo sempre chorou choro que rouba para si todas as lágrimas do mundo. Sempre chorou choro que não se deixa chorar junto. Sempre pediu por desculpas como quem pede por carinho.

Porque era horrível ter dito todas aquelas coisas à Yachi. Porque se arrependia de tê-la empurrado. Porque se preocupava sobre tê-la machucado. Porque Yachi não merecia ser magoada. Porque Yachi era a única pessoa no mundo que a amava de verdade. Porque não sabia o motivo de ter-se irritado. Porque era um monstro. Porque percebera precisar de ajuda de apoio de carinho. Porque vira uma flor que lembrou Yachi, e sentira o perfume de Yachi em alguma rua, e quase congelara de frio sem dividir as mesmas cobertas. Porque Yachi a fazia bem de um jeito que ninguém mais faria. Porque precisava de Yachi de um jeito que Yachi nunca precisaria dela e isso doía tanto, doía tanto, que tinha que arrancar um pouco da dor de si e dividir com Yachi. Doía tanto, tanto, que precisava fazer doer também em Yachi.

Mas que estava melhor. Tinha aprendido. Que nunca, nunca, nunca mais! Nunca mais faria nada daquilo se pudesse estar com Yachi novamente.

Só mais uma vez

Só mais uma

Só uma

Só...

...só

Desculpas feitas de verdades, só. Desculpas que deixam ao resto do mundo somente mentiras. Desculpas que arrancam para fora, forçado do fundinho do estômago de Yachi feito vômito, que tudo bem, que estava bem, que não se machucou, que entendia, que estava arrependida também por ter agido como agiu, que não havia crueldade na forma como a fizera sofrer, que todo mundo tem disso de machucar quem gosta, que era forte o bastante para aguentar uma coisinha ou outra, que podia ainda aguentar muito mais. Que sem a garota em seu colo estaria só...

Do tipo de desculpas que se enrosca ao pescoço num abraço como cordas.

Do tipo de desculpas que pede carinhos e beijinhos nos cabelos. Do tipo que exige todas as mentiras que não queria contar.

Do tipo que sufoca até emudecer, que obriga todos os cacos de Yachi a esconderem-se.

Do tipo que a garota em seu colo sempre pedia quando voltava.

Do tipo que Yachi mais, mais do que tudo no mundo, odiava.

Odiava os próprios dedos acarinhando os longos cabelos castanho-claros. Odiava o enlace dos braços ao redor de seu pescoço. Odiava o peso em seu colo. Odiava o aperto na garganta. Odiava o cheiro enjoado de perfume de jasmim. Odiava a meia-calça tão bonitinha sendo molhada de lágrimas. Odiava o quanto doíam os pulmões a cada desculpa ouvida. Odiava tudo o que era forçada a dizer. E odiava o quanto era obrigada a ignorar tudo o que odiava para ser colo aconchegante e palavras acolhedoras.

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Só...

Só que...

...nem que só uma vez, só uma, Yachi queria poder dizer que estava magoada de verdade, que o braço ainda estava marcado pelo apertão, que o empurrão doera bastante, que queria chorar também, que a última vez já havia sido a última.

Uma vez só.

Uma vez só queria dizer que não queria consolar e nem ser porto-seguro. Que não queria ser mais nada. Não ser mais nada para aquela menina em seu colo.

Gritar, talvez.

Gritar que o estômago estava enjoado e que se sentia sufocar. Gritar que queria seu pescoço solto e que queria correr pra nunca mais voltar. Gritar que queria ficar só.

Mas não gritou nada.

O choro acabou. As desculpas calaram. O abraço soltou. Um beijo foi deixado pesado em seus lábios. Um riso e uma piadinha maliciosa foram entregues às manchas molhadas em sua meia-calça. E, no fim, Yachi não gritou nada.

Sentou-se à mesa. Comeu. Ouviu as histórias de quando estavam separadas. Lavou as louças. Acomodou-se em frente à TV. Assistiu a garota com os olhos vermelhos adormecer com as mãos ainda atadas às suas. E não gritou nadinha.

Em silencio pegou as chaves, pegou a mochila, pegou o celular e um sapato mais confortável, pegou o elevador e o primeiro ônibus que passou.

Só daí, com as chaves apertadinhas seguras nas mãos, os olhos baixos e o pequeno prédio de apartamentos com poucas janelas ficando para trás, Yachi meteu as mangas do casaco dentro da boca e gritou. Só daí gritou de verdade, sufocada pelo silêncio do ônibus vazio e embalada pelo som alto do celular a tocar incansavelmente.

Havia conseguido voltar ao lugar que tanto queria há três dias. Mas, fosse ironia fosse punição, esse lugar, Hitoka Yachi percebia, nunca seria seu lar.

Yachi afundou-se em braços quentinhos no instante em que a porta foi aberta, ignorando ainda estar no corredor e exigindo com ímpeto o abraço que fora até ali buscar. Só então, dentro dele, cercada pelo calor aconchegante e carinhoso dos braços tão queridos, permitiu-se expirar fundo, um sorrisinho mínimo se espalhando por seus lábios ainda trêmulos. A garganta ainda doía, a chave machucava a palma da mão e mesmo enfiado escondido no bolso do casaco ouvia seu celular tocar, mas ali, naquele exato lugar e naquele exato abraço, nada mais importava.

Um apartamento bonito de dois quartos num prédio alto cheinho de janelas, com um pé de tomatinho-cereja na varanda pequenina, um troféu brilhante na estante da sala e um filhotinho de cachorro barulhento que já pulava em suas pernas pedindo por atenção: aquele era, sem dúvidas, o lugar mais perto de casa que tinha em Tóquio. O único lugar que conseguira pensar, naquele dia que já parecia quase noite, em correr para.

Ali segura, inspirou fundo uma, duas, três vezes, os olhos castanhos-mel fechados bem apertadinhos, o nariz enfiado no moletom fofinho e uma das mãos escorregando pelos pelinhos caramelos fofos do cachorrinho, desesperada para sentir o cheirinho caloroso de roupa seca no sol e castanhas. O cheiro de seu pequeno sol particular, Hinata Shouyou. E assim desesperada, demorou a perceber que não a sol e castanhas, mas a amaciante, hortelã e salompas cheirava o abraço que a acolhia.

Conhecia bem aquele cheiro. Bem o bastante para não ofegar surpresa ao sentir uma mão pesada afagar o topo de sua cabeça e o abraço apertar-se mais. Bem o bastante para deixar-se aconchegar mais perto sem resistência alguma.

— Tobio... – sussurrou baixinho, sentindo calor espalhar-se por seu peito ao ouvir um resmungo em resposta – Shouyou?

— Faculdade.

A voz era direta e curta como se lembrava, mas havia algo a mais, uma suavidade e uns tons mais baixos que normalmente não faziam parte do timbre de Kageyama Tobio. Não fossem o abraço apertado e o carinho desajeitado o bastante para provar a ela que o levantador sabia que havia algo de errado com ela, a voz o seria.

Limitou-se a assentir, contudo, mesmo que culpada por invadir a casa dele daquela forma e fazê-lo preocupar-se, esfregando novamente o nariz no casaco de moletom fofinho, sorrindo discreto diante do silêncio aconchegante do amigo. E a, logo em seguida, sorrir mais aberto diante da tentativa de Kageyama de mantê-la firme em seus braços e não tropeçar nos próprios pés enquanto a arrastava para dentro do apartamento, fechava a porta e desviava do filhote de cachorro excessivamente empolgado.

Sabia que devia soltá-lo e deixá-lo fechar a porta calmamente. Pegar o cachorrinho no colo para ajudá-lo ainda mais, talvez. Kageyama não era Shouyou, afinal. E, não bastasse fazê-lo abraça-la mesmo sabendo o quanto ele não gostava especialmente de abraços, ainda o obrigaria, logo mais, a escutá-la, provavelmente. Estava pedindo demais. Ela o teria soltado, portanto, culpada por exigir tanto dele e planejar tanto mais exigir, se o próprio Kageyama não a tivesse voluntariamente abraçado mais forte e plantado um pequeno beijo no topo da sua cabeça como quem sussurra que tudo bem. E não a tivesse em seguida acomodado no sofá... E em seguida não tivesse corrido até o quarto e trazido um cobertor quentinho.... E em seguida não tivesse pego no colo o filhotinho de cachorro e colocado a seu lado junto a um pedido para que ficasse quietinho. E não tivesse, por fim, se afastado com um último carinho no topo de sua cabeça com a promessa de fazer um chá.

Com tudo aquilo ficava, Yachi assumia, bastante difícil não querer abusar um pouco mais e deixar-se mimar por ele assim como se deixava mimar por Shouyou.

Riu baixinho.

Se até mesmo Kageyama estava mimando-a, sua aparência devia, realmente, estar lamentável. Não que de todo isso importasse, sabia que estava deplorável. Mas era bem melhor saber estar deplorável enquanto estava quentinha no apartamento do melhor amigo com um filhotinho de cachorro tentando lambê-la no rosto a qualquer custo do que estar deplorável em um ônibus a caminho de lugar nenhum. Mesmo que, inegavelmente, melhor ainda fosse não estar deplorável. Ah... definitivamente não queria estar deplorável. Precisava ligar urgentemente para a mãe para tranquilizá-la. Não devia ter enviado a mensagem desesperada que enviara meia-hora antes.

— Missô! – a voz grave de Kageyama soou alta, ecoando da cozinha e arrastando-a para fora dos arrependimentos sobre a mensagem chorosa que enviara à mãe e devolvendo-a às lambidas chorosas que o pequeno filhote de cachorro entregava a seu queixo, escalando seu peito – Assim você machuca ela! Quietinho! Hinata fica ensinando essas coisas pra ele, por isso ele fica assim...

A mensagem de desculpas – e explicações – para a mãe ficariam para depois, definitivamente. Um filhote de cocker exigindo urgentemente atenção e um melhor-amigo com o cenho tão franzido que quase parecia fechar os olhos já eram problemas grandes o bastante para o momento.

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— Tudo bem... você só gosta de carinho, não é, Missô?!

O filhote mexeu as enormes orelhas ao ouvir seu nome, fitando-a com olhos que pareciam tão contraditoriamente tristonhos e empolgados e, não fosse Kageyama voltar à sala e entregar a ela uma caneca de chá, Yachi teria, provavelmente, ela mesma atacado o filhote para distribuir beijinhos nos pelos caramelos da cabecinha pequena. Perdeu a chance, contudo, quando ao fim do primeiro gole, o cachorrinho desengonçadamente arrastou-se para o colo do levantador, que sentara a seu lado.

— Traidor... – sussurrou para ele, assistindo-o começar a choramingar com os olhinhos enormes fixos em Kageyama e só parar quando uma das largas mãos do levantador pousou no topo de sua cabecinha em um carinho meio torto – É carente igual Shouyou e me troca pelo Tobio igualzinho a ele! Que injusto!

Kageyama riu baixinho – do jeitinho meio bobo que só ria quando olhava para o filhote em seu colo –, visivelmente orgulhoso de ser o preferido de Missô. Yachi se lembrava com perfeição do dia que o casal de amigos decidiu adotar um filhote. Dois meses atrás, mais ou menos. Não muito depois de terem voltado a namorar e começado a morar juntos. Havia sido contra, de início. Mais porque era contra tudo, naquela época, que envolvesse os dois juntos do que por qualquer outra coisa. De toda forma, achava que dois jovens que viviam de comida congelada não seriam responsáveis o bastante para cuidar de um filhote tão pequenininho quanto era Missô quando chegou ao apartamento.

Vendo-o agora, contudo, a esfregar o narizinho no pescoço de um estranhamente sorridente Kageyama Tobio, Yachi percebia que julgara precipitadamente. Ainda havia na geladeira um monte de pizza e waffle congelado, mas o longo pelo caramelo de Missô estava sempre escovado. E, de toda forma, qualquer receio e preocupação eram imediatamente esquecidos quando o levantador, agora com seus quase dois metros de altura e uma carranca ainda mais mal-humorada do que quando mais novo, encaixava uma orelha de Missô em cada uma das mãos e, com um bico enorme nos lábios, começava a resmungar com voz afetada:

— Eu não pareço o Shouyou! Eu sou mais bonzinho que o Shouyou. Não sou?! Sou sim! Muito bonzinho! Sou o filhotinho mais bonzinho do mundo!

Riu alto. Não era a primeira vez que via-o agir daquela forma, mas, sem sombra de dúvidas, nunca veria o bastante para se acostumar. Se Missô não fora a melhor coisa a acontecer ao jovem casal, ao menos era, sem dúvida, a mais engraçada.

Talvez Tobio, com a cara fechada como se só ao ouvir o riso de Yachi tivesse percebido o quão ridículo era o que fazia, não concordasse com ela sobre a graça. Mas Missô, com a língua para fora na tentativa de lamber o bico que o levantador fazia ao falar com ele, certamente não se importaria nem um pouco caso Kageyama agisse daquela forma bobona e melosa para sempre. (e algo dizia a Yachi que tampouco Shouyou se importaria)

De toda forma, mesmo depois de Kageyama ter solto ambas as orelhas de Missô e tornado o bico manhoso em um contrariado, e Missô ter cessado os choramingos para deitar-se quietinho no colo do levantador, não podia negar que aquele era um apartamento confortável. Talvez o chá de hortelã e o cobertor quentinhos ajudassem nisso, mas era, inegavelmente.

Assim tão aconchegante sendo, sequer percebeu que fora embalada pelo clima até sentir a bochecha indo de encontro novamente ao moletom do amigo em uma nova exigência pelo abraço quentinho que a havia arrastado até ali.

Inspirou fundo, fechando outra vez os olhos quando, em completo silêncio, Kageyama remexeu-se para acomodá-la melhor.

Silêncio.

Diferente de Shouyou, que já teria há muito perguntado o motivo de estar ali em plena tarde de quinta-feira quando deveria estar em aulas na faculdade, sabia que Kageyama não perguntaria nada. Nadinha. Por mais evidente fosse o quanto ele se esforçava por não fazê-lo.

Não estava nos planos dela, entretanto, ficar quieta. Não daquela vez, ao menos.

— Ela voltou, Tobio. – começou, os dedos brincando com a orelha do adormecido Missô, o desconforto que sentira ao encontrar a ex-namorada no apartamento ao voltar da cafeteria novamente invadindo seu peito – Apareceu no apartamento agora há pouco. Encontrei ela cozinhando. Macarrão carbonara. – riu sem humor algum, afundando o rosto do moletom do amigo – Eu nem gosto de carbonara, você sabe. É ovo cru, quase. E o bacon fica mole e estranho. – um arrepio involuntário percorreu sua espinha, o desconforto pesando do peito ao estômago, a voz elevando-se através da garganta dolorida, o desejo de que ele a interrompesse travando sua mandíbula – E é isso. Ela volta sem explicação nenhuma pra cozinhar uma comida que eu odeio... Que ela sabe que eu odeio... E pediu todas aquelas desculpas de sempre, sabe?! As mesmas merdas de desculpas de sempre... – cerrou firme os olhos, o corpo tremendo agora tanto quanto a voz – As de sempre! E eu odeio isso! Odeio! Odeio isso! Porque ela começa a falar que é um monstro e o que eu posso falar?! “É, sim, você é mesmo” ?! Não posso falar isso... E ela sabe disso, né?! Sabe que não vou dizer coisas assim. Sabe que nunca seria tão cruel com ela quanto ela é comigo! Ela sabe que quando ela assume toda a culpa sem que eu precise acusar, ela me obriga a desculpar! Porque como vou brigar com alguém arrependido?! Como? E eu odeio isso! Odeio isso, Tobio! E não consegui falar nada! Eu fiquei feito idiota consolando ela! Consolando! Que idiota! Doeu tanto da última vez... E mesmo assim eu consolei ela! Eu odeio essas desculpas! Odeio! Odeio! Odeio como ela se apoia em mim e eu sou obrigada a dizer que tudo bem mesmo que esteja doendo tanto! Seria tão melhor se fizesse o mesmo de quando terminamos... Se ela gritasse, me xingasse, me empurrasse! Mas não fez! E só queria isso... queria que xingasse e brigasse para eu poder gritar pra ela parar com tudo! Pra eu poder gritar para ela parar de pedir desculpas idiotas. Mas não consegui! E daí eu só corri de lá e não sei o que fazer... Não sei mais o que fazer, Tobio! Não sei!

Respirou fundo. A garganta doía e era difícil respirar com o rosto enfiado no moletom de Kageyama, mas não queria se afastar. Se afastasse-se teria que encarar a expressão de pena do levantador. Teria que perceber que Missô a olhava assustado por ter gritado. E, provavelmente, teria que perceber que começara a chorar, mais uma vez.

Muito melhor era ficar ali, quietinha, no silêncio gostoso do abraço do amigo. Pra sempre.

Os planos de Kageyama pareciam ser outros, contudo. E ela percebeu isso, ainda que relutante e brigando contra, ao perceber-se ser lentamente afastada e firmemente fitada por olhos azuis intensos.

— Hitoka... – sussurrou ele, o cenho franzido e a voz receosa como pouquíssimas vezes Yachi havia ouvido nele – Eu já te contei como foi quando eu fui embora?

Olhou-o confusa, piscando algumas vezes para melhor focar o rosto sério. Não, ele nunca havia contado, tampouco havia ela algum dia ficado curiosa em perguntar. Nos quatro meses durante os quais quase diariamente via o rosto de Kageyama Tobio, nunca realmente havia desejado saber o que ele fizera nos sete meses que ficara longe e nem ele parecia disposto a contar a ela. Não entendia, portanto, porque, de repente, aquilo era trazido à tona. Ainda assim, mesmo sem entender o propósito, sussurrou baixinho:

— Não...

E ele inspirou fundo, sorrindo sem-graça, ainda de recomeçar:

— Eu não sabia o que fazer. Tinha um monte de pensamentos estranhos na cabeça. Pensava que estava perdendo uma coisa que nem sabia o que era. – ele engoliu em seco, mordendo os lábios em desconforto – E vocês dois eram tão incríveis e tão certos. Você e Shouyou. Eu dizia coisas horríveis e vocês me ouviam. Eu pedia distância e vocês me davam espaço. Eu agia errado e vocês diziam me entender. Eu estava fazendo tudo, tudo errado, e vocês estavam do meu lado de toda forma. Vocês eram tão, tão legais... E... E no fundo hoje eu acho que só queria que algum de vocês tivesse me dito que eu estava errado. – os olhos azuis piscaram receosos, e a voz oscilou enquanto baixinho o levantador limpava a garganta – Não foi culpa de vocês. Não é isso que eu quero dizer... Eu só... Só queria que em algum momento alguém tivesse me dito pra parar porque eu estava machucando ele, machucando o Shouyou. Porque eu não conseguia perceber isso sozinho. – a voz grossa hesitou um pouco, como se incerta sobre continuar – Eu sei que é egoísta falar assim... Que é estranho dizer que queria que tivessem me parado ao invés de tentarem me entender. E sei que é fácil falar assim quando Shouyou me aceitou de volta e quando ficou tudo bem. Quando está ficando tudo bem. É até meio idiota porque vocês foram incríveis e eu sou grato pra caramba. Mas... eu queria que alguém tivesse me dito pra parar de fazer merda... E é por isso... – os olhos azuis, que haviam-se abaixado receosos, levantaram-se novamente a prenderem-se aos seus – É por isso que, mesmo que me odeie, eu tenho que te dizer que você precisa parar, Hitoka! Parar de perdoar ela... Você diz que não sabe, mas você é muito mais esperta! Muito mais esperta do que eu sou... Eu sei que você sabe exatamente o que tem que fazer, assim como eu sabia mas fingia que não! Você tem que parar de perdoar ela! Você tem que terminar com ela de verdade!

— Tobi-

— Shouyou... – interrompeu-a ele, baixando o tom de voz e acarinhando debaixo das orelhas de Missô – Ele quer te apoiar em tudo. Quer ser a pessoa que te apoia independente do que for. Então ele sempre fica chateado quando te vê com ela e quando ela faz merda pra você. Mas ele não vai te dizer pra terminar... Porque ele sabe que as coisas não são tão fáceis assim. Que você tem seus motivos pra ficar com ela e que não é fácil terminar um namoro. Que se você não terminar pode acabar se afastando dele. Que ela pode te afastar dele igual àquela outra vez. Então ele fica quieto, porque ele quer que você confie nele pra tudo. Quer que você desabafe sempre com ele. Quer que você nunca esconda nada e quer que você sempre possa correr pra ele quando alguma coisa der errado... Daí ele nunca te diz... Mas Hitoka...

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Voltou a encará-lo, mesmo sem perceber que havia baixado os olhos.

— Hitoka, eu não sou o Shouyou... Eu também me preocupo com você e também quero que você sempre possa confiar em mim... Mas não sou o Shouyou... E sei que posso estar estragando tudo te dizendo isso assim, pra terminar com ela como se fosse fácil... Mas... é o que eu queria ter ouvido naquela época! Queria que alguém tivesse me dito que eu estava fazendo merda e me mandado parar... Então... Hitoka, – ele a olhou firme – para com isso! Você sabe que é isso o que tem que fazer... Então para já com isso!

Yachi não pôde com certeza dizer – nem naquele momento nem horas mais tarde – se realmente entendera o que Kageyama dissera, assim como em momento algum teve convicção sobre saber ou não o que devia fazer, ou sobre tudo o que foi dito ajudar ou não. Tampouco pôde afirmar com certeza de que tinha noção do quão pesado era tudo o que acabara de escutar, mas nada disso pareceu verdadeiramente importar. Tudo o que importou, naquele momento, era o quão frágil Kageyama parecia ao passar ambos os braços ao redor de Missô e puxá-lo para perto e o quão certo parecia ser envolver a ambos em um abraço bem apertado, deixando um pequeno carinho nas orelhas enormes do cachorro enquanto sussurrava bem baixinho um

— Obrigada, Tobio.

para o rapaz que era, junto a seu pequeno sol particular, o mais próximo que tinha de lar em Tóquio.

Ainda não sabia se entendia muito bem os conselhos dele. Nem sabia se eram conselhos bons ou ruins. Nem se conseguiria segui-los, mesmo se fossem certos. Mas, ainda assim, já não conseguia ignorar o quanto tudo o que ouvira deixara seu coração estranhamente muito mais leve.

Ainda mantinha Kageyama e Missô no abraço quando Shouyou chegou e se juntou a eles num pulo escandaloso e empolgado, falando sobre chocolate-quente e filme. E, ainda que a partir daquele momento não tivesse conseguido coragem o suficiente para recontar a Shouyou a história que contara mais cedo a Kageyama ou ainda que não tivesse a oportunidade de conversar mais com o levantador sobre o tempo em que ele passara fora, sentira que Shouyou sabia de absolutamente tudo o que acontecera naquele apartamento aconchegante naquela tarde-quase-noite de quinta-feira.

Então ele a mimou – exatamente como ela queria que ele fizesse – e ela não fez nada para impedi-lo.

Ele a deixou colocar mais de uma barra de chocolate no chocolate-quente. Deixou que escolhesse um filme de terror. Deixou que decidisse o sabor da pizza. Deixou que roubasse seu melhor travesseiro. Deixou – mesmo que isso tenha arrancado uma carranca engraçada de Kageyama – que dormisse com Missô. E deixou-a saber que poderia ficar lá por todo o tempo que quisesse.

E ela ficou, por aquela noite e por outra, e por outra, e ainda outra. Roubando um moletom de Kageyama e a atenção de Shouyou toda pra si.

E contou, finalmente, da volta do amor. E contou que levara de Kiyoko um bolo. E contou sobre o beijo no cantinho dos lábios e sobre o beijo nos lábios inteiros. E lamentou sobre um pote de sorvete o quanto ninguém a queria. E jurou que nunca mais ligaria o celular de novo.

E ouviu, também.

Ouviu de Shouyou que não a deixaria fazer nada que não quisesse. Ouviu de Tobio que não precisava de ninguém e que já tinha os dois. Ouviu de Shouyou que a ex-namorada era uma babaca. Ouviu de Oikawa – que em visita chorosa roubou seu pote de sorvete – que a volta com Suga não estava tão certa quanto pensavam estar.

Quando finalmente saiu daquele aconchegante apartamento com muitas janelas, tomatinho-cereja na varanda e um cachorrinho hiperativo, Yachi ainda não sabia o que fazer, mas sabia, sabia bem, que era a hora de procurar por sua própria casa.

E de ligar seu celular, provavelmente.

De toda forma, independente de tudo, os três dias prometidos pelo papel amarelo já haviam há muito ficado para trás.