The Queen's Path

Capítulo XXVIII - 19 de Abril de 1872


Jogada de maneira desleixada sobre o largo colchão, Beatrice contemplava com desinteresse os feixes de luz que invadiam furtivamente seu quarto. As cortinas fechadas cumpriam com o papel de minimizar a claridade do cômodo, mas não a deixavam alheia ao fato de que, do lado de fora, estava um belíssimo dia de primavera. A visão, supostamente animadora, apenas fazia a jovem rainha se deprimir ainda mais. Por vezes, chegava a abafar os ouvidos com almofadas, numa frustrada tentativa de ignorar o canto dos passarinhos. Que necessidade eles tinham de exibir sua liberdade assim?

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Margot, sua fiel companheira nos momentos de tristeza e alegria, encontrava-se enroscada sobre os lençóis, ocasionalmente esfregando a cabeça contra a barriga de sua dona. O gesto fazia com que o estômago de Beatrice desse voltas, deixando-a ansiosa e enjoada. Recusando-se a acreditar que tal infortúnio tivesse acontecido consigo, a jovem afastava a gata e encolhia-se ainda mais, pressionando o topo da testa contra os joelhos. “Isso não pode estar acontecendo comigo”, ela pensou, de modo nervoso.

Não compreendia a razão para aquilo. Tinha cometido o pecado do adultério, era bem verdade, mas, àquela altura também já não havia sido punida o suficiente? Não fora até a capela arrepender-se de seus atos e rogar por uma pequena graça? As perguntas careciam de respostas, o que apenas contribuía para piorar seu estado de nervos. “Qualquer coisa seria melhor que isso”, sua consciência gritou desesperadamente, como se clamasse por socorro à alguma entidade superior.

A situação toda era bastante irônica, mas Beatrice não conseguia achar graça em nada daquilo. Desde muito pequena, sua educação fora direcionada para dois objetivos comuns: ser uma boa esposa e ser uma boa mãe. Ela falhou miseravelmente em sua primeira incumbência, no exato momento em que cedeu aos prazeres da carne e aceitou os toques indecentes de Gilbert. Agora, encontrava-se prestes a fracassar com a segunda, pois sua criança nem bem havia tomado forma e já a rejeitava daquela maneira.

Tomada pelo medo, a jovem rainha não sabia precisar o que a aterrorizava mais: se era conceber o filho de Gilbert — resultado de uma relação espúria — que certamente acarretaria num destino penoso tanto para ela quanto para o infante; ou então dar à luz ao herdeiro que Allen tanto almejava, estando ciente de que a criança poderia vir a compartilhar o mesmo temperamento de seu pai.

Margot ergueu os olhos e soltou um miado fraco na direção de sua dona, como se questionasse o que se passava. Beatrice não lhe deu atenção. Devido à falta de sol, a pele esbranquiçada começava a adquirir um tom anêmico, evidenciando o ar doentio que adquirira nas últimas semanas. Imersa em seus próprios dilemas, ela se questionava mentalmente: “O que eu vou fazer agora?”.



Enquanto segurava uma cesta de palha abarrotada de cobertas limpas e delicadamente dobradas, Delia encarava a infinidade de lençóis estendidos em seu quintal, questionando-se como faria para entregar todos eles à tempo. As estalagens estavam abarrotadas de mercadores das mais diversas localidades, enquanto que o centro comercial se encontrava praticamente intransitável, tamanha era a quantidade de pessoas interessadas em fazer negócios.

A ruiva já estava habituada ao fato de que, todos os anos o fim do inverno em Odarin trazia um número considerável de negociantes de outros reinos. No entanto, desde a assinatura do decreto que garantia a abertura dos portos de Hallbridge, a movimentação na cidade tornou-se absurda e ela já não sabia mais o que fazer para dar conta de todo aquele serviço.

— Tem certeza de que sabe o caminho até a Hospedaria dos Bourbons? — ela questionou, sendo perceptível a preocupação quase maternal em seu tom de voz. Diante de si, Dimitri encontrava-se à postos para realizar seu primeiro trabalho não doméstico e parecia ansioso por isso.

— É claro que sei! Descendo a avenida até a catedral, a estalagem é o quarto edifício à direita — respondeu o garoto prontamente. Já havia sido inquirido de seu itinerário tantas vezes que poderia chegar lá até mesmo de olhos fechados.

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— Mas você consegue carregar isso sozinho? — a pergunta escapou, tão logo ela percebeu que o menino cambaleava ao tentar transportar a cesta pesada.

— Delia, eu já sou um homem! — Dimitri exclamou, visivelmente aborrecido de ter suas habilidades físicas subestimadas daquela maneira.

— É claro que é — disse a ruiva com descrença, enquanto balançava negativamente a cabeça, observando-o afastar-se. — Sabe quanto tem que receber pela lavagem dos lençóis?

— Duas moedas de prata e cinco de bronze. Você já disse isso ao menos umas cinco vezes!

Com isso, o garoto apressou o passo no intuito de fugir das perguntas insistentes e superprotetoras de Delia. Dimitri, àquela data, tinha orgulhosos doze anos de idade e, a despeito de ser o mais velho das três crianças adotadas, havia sido o último a juntar-se naquela família, tamanha era sua desconfiança.

Embora a jovem não soubesse, seus receios eram mais do que justificados. Ele havia perdido as contas de quantas “mãos caridosas” surgiram para acolhê-lo e, quando menos esperava, já estava sendo tratado como um escravo. Poucas semanas eram suficientes para que se visse farto daquela realidade e fugisse para as ruas novamente, vagando sem rumo e sem propósito. Foi nas vielas escuras de Odarin que Dimitri conheceu as outras duas crianças.

Gregory e Rosetta eram irmãos de sangue e tinham perdido os pais há poucos dias, numa epidemia de febre tifóide. Tendo consciência de que seria levado para o exército, enquanto a irmã cresceria sob o olhar vigilante das freiras, Greg fugiu para as ruas antes que algum Oficial chegasse para levá-los. Afinal de contas, Rose era a única família que lhe restava e ele preferia passar fome a ter de se separar da pequena.

Virando-se como podiam, as três crianças conseguiram, de algum modo, sobreviver longos meses sozinhos, ainda que a situação fosse mais difícil a cada dia. Tão logo a ruiva tomou conhecimento dos órfãos que circulavam pelo o mercado central, foi mais do que ágil em tentar resolver a situação. A proposta encheu os olhos dos irmãos de imediato, mas Dimitri achou tudo tão suspeito que se negou a acompanhá-los. Apesar da recusa inicial, Delia não havia desistido do menino teimoso e passou convidá-lo a entrar em sua morada todos os dias.

O receio em aceitar a caridade da jovem estrangeira foi se dissipando aos poucos. Como quem tenta conquistar um bichinho fujão, Delia oferecia-lhe diversas vezes um pedaço ou outro comida, um agasalho surrado para protegê-lo do frio ou mesmo deixava a porta de sua casa destrancada, para que o menino pudesse entrar se assim tivesse vontade. Depois de algumas semanas em que ele se manteve à espreita, seguindo-a em todos os lugares, foi que seu convite finalmente pudera ser aceito.

A jovem recordava-se desses momentos com certa nostalgia. Costumava sentir-se bastante solitária dentro de uma casa tão grande e, sem dúvidas, os três traziam uma alegria ímpar ao ambiente. Mas também houveram momentos muitos difíceis. Às vezes, ela abria e fechava os armários da cozinha diversas vezes durante a noite, a procura de qualquer coisa que pudessem comer, como se magicamente um pedaço de pão duro ou ao menos alguma fruta esquecida nos cantos do móvel fosse aparecer. E foi justamente num desses momentos de necessidade que Marco apareceu em sua vida.

Embora estivesse longe de suas intenções, foi impossível não se encantar com o rapaz moreno e de sorriso largo que sempre lhe atirava moedas de bronze enquanto se apresentava na praça. Aparentava ser uma pessoa tímida e ela sempre o achou demasiadamente estabanado, mas também muito engraçado ao mesmo tempo. Naquele momento, ela não conseguiu precisar em que ponto os olhares tímidos e as conversas esparsas se tornaram algo mais. Tudo que Delia sabia é que apreciava muito sua companhia, quase sempre acompanhadas de singelas demonstrações de afeto.

Era possivelmente a melhor pessoa que tivera o prazer de conhecer em sua vida. E havia desperdiçado completamente a oportunidade de fazê-lo feliz. “Não, muito pelo contrário. Eu jamais poderia fazê-lo verdadeiramente feliz com tantos segredos e mentiras”, ela pensou tristemente.

— Delia, você está ouvindo?

— Desculpe-me, o que disse?

Parecendo ter despertado de um transe, ela percebeu que Gregory chamava-lhe a atenção já fazia algum tempo, sem obter qualquer resposta. O menino tinha dez anos de idade e mesmo assim era um tanto mais baixo que Dimitri. Talvez ele fosse muito pequeno ou o mais velho fosse grande demais.

— Os lençóis da primeira e da segunda fileira já estão secos. Onde eu devo colocá-los? — questionou, com os olhos inquietos escondidos atrás das grandes lentes de grau. Greg não conseguia enxergar um palmo diante dos olhos sem seus óculos e a ruiva rezava todos os dias para eles não quebrarem tão cedo assim.

— Pode deixá-los na sala — ela comentou, soando um tanto ausente. Tentava se recordar o que precisava fazer naquele momento, mas a imagem de Marco parecia se recusar a dissipar-se de sua mente, o que era verdadeiramente incômodo. — O que eu disse mesmo que ia fazer agora?

— Você disse que ia varrer a frente da casa — respondeu o menino enquanto levava outra grande cesta cheia de lençóis para dentro da residência.

Resignada, ela apenas tomou a vassoura em mãos e seguiu para a entrada da casa. Não seria nem um pouco justo continuar ludibriando o moreno como ela vinha fazendo. Sem dúvidas, a melhor coisa a fazer foi deixá-lo ir. A liberdade certamente levaria até ele alguém que pudesse fazê-lo verdadeiramente feliz. Pois, infelizmente, Delia continuaria presa às mentiras de seu passado.



Evangeline bateu na porta e anunciou sua entrada no cômodo principal e, como de costume, não recebeu qualquer resposta, não que já não tivesse se habituado a isso. Adentrando no quarto, ela surpreendeu-se de encontrar a jovem rainha acordada, ainda que sem esboçar qualquer reação.

Nas últimas semanas, Beatrice adquirira o costume de dormir durante o dia, pois eram raras as noites em que Allen deixava-a em paz. Felizmente, desde o retorno de Sarah, as agressões deixaram de ser físicas e os ferimentos puderam iniciar o processo de cicatrização. As marcas arroxeadas começavam a desaparecer, mas as queimaduras ainda levariam muito tempo para cicatrizar. Àquela altura, a pele morta e chamuscada finalmente começava a soltar-se das mãos, deixando-as ainda mais sensíveis do que antes.

— Hora de trocar os curativos das suas mãos e comer um pouco — a governanta anunciou, deixando uma bandeja com sopa esfriando sobre o criado mudo. Rapidamente, se dirigiu até o espaçoso armário, de onde sacou as bandagens que necessitava. — Como elas estão?

— Do mesmo jeito de antes, imagino — a rainha respondeu, com um fio de voz que mal podia ser ouvido. Arrastando-se com lentidão até a beirada da cama, ela apenas aguardou de maneira desinteressada pelos cuidados da senhora. Já não parecia mais se importar com nada, fosse a própria integridade física ou mesmo a aparência.

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— Sarah mandou isso para você — Evangeline comentou, balançando um pequeno frasco de vidro com um líquido verde esmeralda em suas mãos. — Óleo de aloés, muito bom para queimaduras. Conseguiu com o jardineiro do castelo, que já trabalhou com um botânico. Ele bem que poderia nos ter dado isso antes, não é mesmo?

A governanta sabia que poderia ter pedido e, certamente, Jacques teria conseguido o óleo sem qualquer demora. No entanto, a prestatividade e o desprendimento do jardineiro sempre lhe incomodaram, afora o fato de que ela não se sentia nenhum pouco à vontade em ficar lhe devendo favores. Sarah não tinha as mesmas limitações e não perdeu tempo em requisitar a ajuda do antigo servente.

As bandagens foram prontamente substituídas por novas e a jovem foi obrigada a reconhecer que o óleo aliviou bastante o ardor das queimaduras. Findo o trabalho, Evangeline tomou em mãos o prato de sopa, agora na temperatura ideal para ser consumida. Sentia-se um tanto nostálgica de segurar o prato em mãos enquanto direcionava colheradas generosas de sopa. Cuidava agora de Beatrice da mesma maneira que o fazia quando Sarah ainda era pequena. De certa forma, a situação aquecia-lhe o peito, principalmente ao recordar-se de como a princesinha cresceu depressa.

Nem bem a jovem rainha havia ingerido metade de sua comida e o enjôo retornou ainda mais forte do que antes. Correndo para longe da governanta, ela se debruçou sobre uma vasilha e tossiu algumas vezes até que seu estômago estivesse vazio de novo.

Evangeline a encarava com preocupação. Não sabia mais o que fazer para que ela pudesse comer, receando que Beatrice estivesse não apenas machucada, mas também muito doente. Resistia diariamente ao ímpeto de convocar um médico, ao menos até que seus ferimentos estivessem curados. Se alguém de fora a visse naquele estado, seria questão de horas até que toda a nobreza de Odarin tomasse conhecimento da mais nova fofoca da Família Real. Definitivamente, a loira não merecia mais aquela humilhação.

— Céus, o que farei agora? — a rainha interrogou a si mesma, a voz tão fraca que mal poderia ser ouvida. — Uma gravidez logo agora, no momento mais inoportuno de todos...

— Ora vamos, Beatrice, tenha ao menos um pouco de sensatez — ralhou a governanta, visivelmente impaciente com o suposto drama da jovem rainha. — É muito precipitado achar que está grávida só porque você tem andado um tanto nauseada. Sua regra está atrasada pouquíssimos dias para chegar a essa conclusão e não duvido nada que isso seja causado pelo seu nervosismo.

— Mas e se não for só isso? — Beatrice questionou, desesperada com a possibilidade. — O que farei se estiver, de fato, grávida?

— Nada, oras! Vamos colocá-la em outro quarto para que tenha uma gravidez tranquila e saudável — a senhora respondeu rapidamente, como se aquela fosse a conclusão mais óbvia do mundo. — Está casada há tanto tempo, me espanta que isso não tenha acontecido antes. As pessoas até mesmo já começavam a comentar, você deveria se sentir aliviada com isso.

— Evangeline, será que você não entende? — Nesse momento, seu tom de voz aumentou consideravelmente, soando ainda aflita do que antes. — E se este filho não for do Allen? O que eu irei fazer?

O ambiente tornou-se, repentinamente, pesado. As duas se encaravam sem piscar ou mesmo proferir uma única palavra.

— Você não está insinuando que… — Antes mesmo que pudesse finalizar seu pensamento, Evangeline se calou subitamente. Não seria justo despejar uma série de sermões contra a rainha naquele momento. Depois de tudo que a menina vinha sofrendo, tendo tido o infortúnio de se casar com Allen, quem poderia julgá-la? Apenas se questionava, internamente, quem poderia ter tido a audácia de compactuar com tal ato de deslealdade. — Não se desespere e não tome nenhuma atitude precipitada. Estamos longe de viver em mundo ideal e não será a primeira vez que alguém da nobreza teve filhos fora do casamento. Se tiver sorte, a criança será tão parecida com você que ninguém irá questionar.

— É bem possível que um filho apazigue um pouco a fúria de Allen, já que ele muito necessita de um herdeiro. Mas também não descarto a possibilidade de que isso venha perturbá-lo ainda mais, caso descubra que na realidade não é o verdadeiro pai. — Lágrimas brotaram de seus olhos e ela permitiu-se escorregar pela parede, caindo pesadamente sobre o chão, enquanto o sentimento de derrota a tomava por completo. — O sonho da minha vida sempre foi ser mãe. Imagine só, poder ter o castelo cheio de crianças, tal como fora durante a minha infância. E agora, olhe para mim, rejeitando esta com todas as minhas forças.

— Beatrice, perdoe-me pela forma como irei colocar isso, mas você precisa se decidir. — A governanta a encarava com um sentimento de pena quase maternal. No entanto, não poderia ajudá-la se não soubesse exatamente aquilo que a rainha desejava para si. — Afinal de contas, você quer ou não essa criança?

Em meio as lágrimas e alguns soluços que escaparam por seus dentes trincados, a jovem rainha respondeu em um sussurro:

— Eu só queria ser livre.



A despeito da estação do ano em que se encontravam, o sol desapareceu mais cedo que o de costume naquele dia. Antes mesmo que os últimos feixes de luz pudessem iluminar os campos de Odarin, pesadas nuvens cinzentas cobriram o céu, ocultando o crepúsculo e indicando que uma forte tempestade se aproximava.

O anoitecer prematuro fez com que todos os moradores do castelo optassem por se retirar aos seus aposentos mais cedo que o de costume, antecipando até mesmo a hora do jantar. Beatrice já não comparecia às refeições em conjunto, tornando o ambiente ainda mais vazio. Allen encontrava-se sentado à cabeceira da mesa e Sarah sentava-se ao seu lado direito, onde costumeiramente a falecida Katherine costumava sentar. Edgar sentava-se ao lado de sua esposa e, a despeito de sua preferência por conversas entusiasmadas, preferiu permanecer em silêncio.

Os irmãos Miglidori já não se falavam há dias e o clima na sala de jantar não era dos melhores. Afora os sons característicos dos talheres e o barulho da chuva contra as vidraças das janelas, nada mais podia ser ouvido. Já estavam próximos de terminarem suas sopas e seguirem para o prato principal quando as portas do cômodo foram abertas subitamente. Charlotte ingressou no local com um largo sorriso pintado em seu rosto.

— Perdoem-me pelo meu atraso. A chuva fez com que eu perdesse completamente a noção do tempo.

Nenhum dos presentes se dignou a responder, mas a ruiva não pareceu incomodar-se com isso. Alcançando a mesa, um servente prontamente puxou uma cadeira, de frente para o irmão da hóspede, onde ela deveria se sentar.

— Na verdade, eu gostaria de sentar aqui. —Apontando para a cadeira ao lado, a ruiva indicou tinha preferência por sentar-se ao lado esquerdo do rei, o que causou imediata estranheza ao empregado. Aquele assento já pertencia a alguém, ainda que a pessoa não se fizesse presente.

— Este assento pertence a Beatrice — Sarah pontuou pesadamente, dirigindo um olhar feroz na direção da filha do Conde Avelar. — Não ouse apossar-se do lugar dela.

— Eu não estou vendo a Beatrice em lugar algum — Charlotte respondeu, com o desdém transbordando em sua voz. Era possível ver um maldoso sorriso acompanhado de um brilho incomum presente em seus olhos. Estava claramente desafiando-a naquele momento.

— Se você acha que vai… — a princesa parecia prestes a perder o controle, mas uma mão pesada sobre seu ombro fez com que ela interrompesse sua fala.

— Charlotte, por favor, não seja desagradável — Edgar interviu, direcionado um olhar significativo para Sarah, passando a encarar a irmã logo em seguida. Tentava a todo custo manter a paz naquele instável ambiente. O Duque quase conseguia sentir as faíscas pairando a mesa e ele se sentia na obrigação de apagar o menor indício de incêndio. — Sente-se e coma, antes que a comida esfrie.

Resignada, a ruiva sentou-se no local indicado pelo servente, passando a comer silenciosamente. Sarah retornou ao seu estado de torpor anterior, como uma chaleira de água quente reclinada sobre o fogo. A refeição seguiu debaixo do mesmo clima pesado de antes.

Por vezes, o jovem Avelar olhava de soslaio para Allen, mas o monarca continuava absorto em suas próprias reflexões. Haviam trocado muito poucas palavras naquele dia e ele daria a vida para descobrir que tipo de pensamento era capaz de deixá-lo tão distante e alheio ao ambiente em seu redor. Tudo que sabia é que coisas terríveis costumavam acontecer sempre que o rei se retraía naquele estado de meditação profunda. Se ao menos ele pudesse impedir o desastre que se formava dentro daquela cabeça, mas Edgar raramente conseguia antever os passos daquele a quem devia obediência e lealdade.

— Espero que Beatrice fique boa e retorne ao nosso convívio o quanto antes. Digo isto porque sua ausência muito tem me afetado nos últimos dias — a voz da atual hóspede foi responsável por quebrar o silêncio. Servia uma taça de vinho a si mesma enquanto falava, não sendo capaz de ocultar o próprio cinismo a cada palavra proferida. — Pensei até mesmo desejar-lhe meus melhores votos de recuperação, mas da última vez que nos vimos ela começou a chorar descontroladamente. Eu sinceramente não faço ideia do porquê, mas espero que esteja tudo bem.

As taças e os pratos sofreram um perceptível abalo quando Sarah empurrou a mesa com toda a força, descarregando ali seu descontentamento com os comentários provocativos de Charlotte. Erguendo-se da mesa de forma muito decidida, ela abandonou a sala de jantar com passos largos e apressados. Se permanecesse no mesmo ambiente que a ruiva por mais um minuto que fosse, certamente voaria em seu pescoço com um garfo em mãos.

— Sarah, por favor!

O Duque ergueu se sua cadeira no mesmo instante, no ímpeto de correr atrás da princesa e tentar incutir-lhe um pouco de razão, mas foi impedido pela autoritária voz de Allen, que se manifestou pela primeira vez desde que iniciaram a refeição.

— Deixe-a ir.

Sem desviar os olhos de sua comida, o monarca não pareceu minimamente afetado com a ausência da mais nova. Degustava de sua refeição com a mesma expressão impassível e distante. Cerrando os punhos e trincando os dentes, Edgar relutou por alguns segundos ao ardoroso desejo de contrariar aquela ordem. No entanto, sabia bem que aquela não seria uma decisão nenhum pouco sábia e logo deixou de lutar contra seu ímpeto, voltando a sentar em seu assento.

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— Por que você sente a necessidade de agir dessa maneira? — questionou o Duque, visivelmente aborrecido agora que a princesa havia deixado o ambiente sem praticamente ter encostado na comida.

— Porque, meu irmãozinho querido... — ela proferiu em meio a um sorriso zombeteiro. Girando a taça de vinho em mãos, ela degustou de um longo gole, antes de finalmente concluir sua frase. — … isso tudo é muito divertido.



A jovem rainha permanecia sentada no chão, de modo desconsolado, enquanto encarava os próprios pés. A despeito da figura inerte, sua cabeça trabalhava de modo incessante, martelando as mais improváveis ideias. Tinha de haver uma saída para a situação em que se encontrava. Ela bem sabia que ficar era o mesmo que aceitar o sofrimento eterno. Jamais haveria de ser minimamente feliz, ao menos não enquanto estivesse ao alcance das mãos e das intenções insanas de Allen. “Por outro lado, não é como se houvesse qualquer lugar onde eu pudesse ir”, constatou tristemente.

Evangeline havia deixado o quarto há algum tempo. Fora levar a sopa de volta para a cozinha e prometeu-lhe que logo estaria de volta para lhe auxiliar durante o banho. Havia encontrado nos braços da governanta algum conforto em seus últimos dias de angústia. Apesar da postura rígida, era uma senhora muito prestativa e carinhosa, ainda que à sua própria maneira. Ela sabia que Sarah tinha muita sorte em tê-la consigo, mas não acreditava que a governanta pudesse ajudá-la.

A pequenina gata cinzenta aproximou-se e roçou a cabeça contra suas pernas. Beatice tentou esboçar um sorriso para sua companheira, mas não conseguia. Parecia até mesmo que as últimas semanas fizeram com que ela tivesse desaprendido a sorrir. Mas não só isso. “Creio que já não sei mais o que é a felicidade”. Erguendo-se do chão, a jovem tentou caminhar até a cama, mas sentia-se demasiadamente fraca até mesmo para percorrer aquela pequena distância.

Em meio ao seu andar cambaleante, ela acabou por esbarrar em seu móvel de cabeceira, derrubando no chão um pequeno livreto. Apanhando-o, percebeu que tratava-se de um apanhado de textos bíblicos que recebera do Bispo de Hallbridge, quando estava de partida para Odarin. Beatrice sempre fora uma pessoa bastante religiosa e comparecia sempre às missas nas manhãs de domingo. Seus olhos percorreram o papel com desinteresse, até captar em meio a tantas palavras uma frase que lhe chamou imensamente a atenção.

“Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade.”

Liberdade. Não havia nada no mundo que Beatrice desejasse mais em sua vida do que a agradável sensação que aquele conceito abstrato lhe trazia. Intrigada, ela leu e releu a frase algumas vezes, sua mente trabalhando mais rápido do que nunca. Em instantes, ela recordou-se das muitas aulas que tivera, ainda pequena, com catedráticos das igrejas de Mivre. “Se o Espírito do Senhor habita os céus então quer dizer que talvez haja uma saída”, ela pensava enquanto sentia-se invadida por um estranho sentimento de excitação e de força, que há muito não era capaz de experimentar.

Abandonando o compilado de textos sobre a cama, ela dirigiu-se até a porta do quarto. Teve dificuldade em girar o trinco, em função das mãos cobertas de ataduras. Com impaciência, arrancou as bandagens que limitavam os movimentos de seus dedos e as jogou furiosamente no chão. Não permitiria que nada a interrompesse, não agora que ela havia descoberto o caminho secreto para ser livre. Empregando uma nova tentativa, ela girou o trinco com força, ignorando completamente a dor das queimaduras. Sua carne exposta já não a incomodava mais.

Pondo os olhos grandes e sedentos para fora do quarto, empolgou-se ao constatar que não havia ninguém nos corredores. Deixando seu quarto para trás, esquecendo até mesmo de fechar a porta, ela caminhou ansiosamente pelos muitos cômodos do castelo, em busca de um local minimamente reservado onde pudesse sair. O Hall Principal era vigiado por guardas durante todo o tempo e, a julgar pela hora, todos os demais moradores deveriam estar jantando, tornando aquela área inviável para aquilo que estava prestes a fazer. Como um estalo, a rainha recordou-se dos corredores que levavam até o lado oeste. Era um ambiente pouco utilizado, salvo durante os grandes bailes e comemorações.

Beatrice caminhou longos minutos, que pareceram uma eternidade, até finalmente encontrar o espaço isolado que tanto procurava. A luz era escassa e julgou estar muito próxima de uma das entradas da biblioteca. “Por favor, uma janela destrancada, é tudo que preciso”, pensou com urgência enquanto tateava cada uma das vidraças. Todas pareciam muito bem fechadas, alguns ferrolhos até mesmo bastante enferrujados. Não se atreveu a tentar, não era difícil antever que não conseguiria abri-los sozinha.

A gata cinzenta a seguia por todo o trajeto. Os olhos felinos rapidamente se acostumaram com a escuridão e ela olhava para sua dona, intrigada com as suas ações, miando insistentemente, como se tentasse lhe chamar a atenção. A jovem, no entanto, não lhe deu ouvidos. Parecia até mesmo alheia à sua presença.

A loira não pôde impedir um suspiro aliviado até finalmente encontrar uma janela destrancada. A vidraça era fortemente ricocheteada pelas grossas gotículas de água e, ao abri-la, a jovem rainha sentiu as rajadas de vento forte rugirem contra seu rosto. A chuva jorrava em sua face e ela podia sentir como tivesse a alma purificada naquele momento. Que sensação mais sublime! Mas aquela era apenas uma pequena amostra. Precisava de muito mais do que aquilo.

A chuva irá me ajudar”, ela animou-se com o mero vislumbre de poder finalmente alcançar sua tão almejada liberdade. Seus olhos estavam vidrados, como estivesse em meio a uma alucinação. O rosto bordava um sorriso largo, como há muito ela já não era capaz de reproduzir. Sentia-se consumida por completo por aquela experiência mágica. Já não era mais capaz de empregar qualquer juízo de valor sobre seus atos. E, pela primeira vez em sua vida, não se importava nenhum pouco com isso. Como era libertador não ter que considerar com os detalhes inoportunos!

Atrás de si, Margot soltou um miado esganiçado, soando até mesmo desesperado. Visivelmente preocupada, a pequena estava alheia as reais intenções de sua dona e, mesmo assim, sentia instintivamente que algo terrível estava prestes a acontecer.

— Por que choras, minha adorável amiga? — Beatrice questionou, sua voz soando leve pela primeira vez em muito tempo. — Compartilhe essa alegria comigo, afinal, poderemos enfim sermos livres.

Dito aquilo, a jovem rainha saltou com dificuldade sobre a soleira da janela e disparou pelo jardim, seu corpo esguio encoberto pela chuva e suas reais intenções ocultas pelo escuro véu de uma noite sem lua.