The Queen's Path

Capítulo XXIII - 22 de Março de 1872


Nem mesmo as janelas fechadas ou as espessas paredes de pedra pareciam impedir que o frio característico de Odarin penetrasse o quarto, levando calafrios aos seus moradores. Todos aqueles meses não foram suficientes para que Edgar se acostumasse com a brisa gelada e a neve que costumava se acumular em blocos de 20 centímetros nos meses de inverno. Hallbridge não costumava lhe trazer boas memórias, mas ele estaria mentindo se dissesse que não sentia falta do Sol radiante e o cheiro de mar. No intuito de aquecer-se um pouco mais, o rapaz se aconchegou ao centro da cama, parando assim que pareceu esbarrar em algo. No caso, em alguém.

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Sarah dormia profundamente ao seu lado de modo bastante indefeso. A trança da noite anterior já não existia mais e os fios castanhos se espalhavam sobre os travesseiros e lençóis. Com um movimento suave, o jovem Avelar tocou uma de suas bochechas, confirmando sua tese de que ela tinha o sono pesado. Além disso, a princesa não demonstrava qualquer indício de que fosse se levantar tão cedo, o que não era de se admirar considerando a quantidade de bebida que ela havia ingerido.

Ao invés de voltar a dormir, o Duque preferiu levantar-se, caminhando pelo quarto de forma pensativa. Por alguma razão ela se sentia nervoso de estar ali. O que ele diria quando Sarah finalmente despertasse? Ou pior, o que ela diria quando despertasse? Esfregando os olhos com força até que ficassem levemente vermelhos, Edgar chegou a conclusão de que precisava de um pouco de ar fresco. Com aquilo em mente ele deixou o quarto para trás, evitando ao máximo produzir qualquer barulho exagerado que pudesse adiantar aquele encontro para o qual ele não se sentia preparado.

Ele vagou sem rumo pelos corredores vazios. Estava cedo demais para que houvesse qualquer movimentação significativa. Ao longe, era possível ouvir o burburinho dos empregados vindo do grande salão de festas. Certamente estavam limpando o ambiente, correndo para que tudo estivesse impecável antes que os moradores resolvessem pôr seus rostos para fora dos respectivos cômodos. “Não deve ser uma vida nada fácil. Me admira que eles sejam tão devotos por essa família”, ele pensou no exato momento em que percebeu estar diante da gigantesca biblioteca. Sem ponderar muito ele adentrou no local, na esperança de encontrar algo que o distraísse até o despertar de Sarah.

Apesar de ser a primeira vez que explorava aquele compartimento do castelo, Edgar sentiu uma leve nostalgia por estar ali. O ambiente o fez lembrar de um fato, ocorrido muitos anos atrás quando ainda residia em Hallbridge.



Oscar Lewinter era possivelmente o maior comerciante de animais de tração em muitos quilômetros, seja para realizar trabalhos rurais ou para a prática de esportes. Comercializar gado fora o ganha pão dos Lewinter por muitos anos e quando ele arriscou a acrescentar equinos ao seu currículo, o dinheiro pareceu se multiplicar como as areias na praia. Em poucos anos acumulou uma pequena fortuna, suficiente para comprar praticamente tudo que pudesse desejar. No entanto, Oscar não era um homem tão ambicioso quanto esperavam que ele fosse. Seu núcleo familiar era demasiadamente pequeno, consistindo apenas na esposa a quem era devoto, sua filha única e uma velha meia irmã que passou a residir com eles quando o marido morreu em um desastroso naufrágio. Não almejava adquirir títulos de nobreza ou mesmo castelos, pois sua extensa fazenda parecia lhe fornecer tudo que precisava para ser feliz. O vultuoso dinheiro servia tão somente para comprar mais gado e mais cavalos, acabando por se acumular indefinidamente sem uma destinação certa.

O mais famoso burguês de Hallbridge tinha amigos (e principalmente clientes) de todos os níveis hierárquicos, o que garantia algumas regalias que ele raramente utilizava. Em uma manhã ensolarada de Agosto, ele resolveu dirigir-se até a casa da Família Avelar, sem mandar cartas ou mesmo um mensageiro que anunciasse sua visita. Estava na hora de usar um de seus muitos privilégios adquiridos.

— Que surpresa mais agradável poder recebê-lo em minha casa, caro amigo Oscar. — mencionou Klaus Avelar de modo acolhedor. Tão logo fora informado que o comerciante se encontrava na sala de visitas o Conde foi ao seu encontro no intuito de recebê-lo. — Diga-me, que bons ventos o trazem até aqui?

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— É sempre um prazer revê-lo. — o burguês mencionou de maneira cortês, ainda que não conseguisse retribuir aquelas palavras com a mesma empolgação. Os últimos meses haviam sido de luto, mas a maioria das pessoas de Hallbridge ignorava aquele fato. — Perdoe meu ímpeto de vir aqui sem antes lhe enviar qualquer comunicado.

— Bobagem. — o Conde Avelar balançou as mãos, demonstrando que formalidades como aquelas eram desnecessárias entre eles. — As portas de minha casa estão sempre abertas para você. Em que posso ajudá-lo?

— Para ser preciso e objetivo, eu não vim até aqui para falar com você. — o comerciante introduziu sem maiores rodeios e aquele prelúdio atiçou a curiosidade do nobre diante de si. — Na verdade, vim porque gostaria de trocar algumas palavras com o seu filho, o mais velho deles.

— Edgar? — a pergunta retórica evidenciou sua curiosidade. Ele não tinha qualquer conhecimento de que seu primogênito estivesse a negociar animais de tração, o que tornava aquela situação ainda mais curiosa. — Se bem o conheço, deve estar enfiado na biblioteca mofando com o restante dos livros. Pedirei que o chamem até aqui.

— Não se incomode com isso, não será necessário. Eu mesmo irei ao seu encontro.

— Como quiser. — o Conde respondeu com prontidão, dando um passo para o lado e concedendo passagem ao seu visitante para os demais cômodos da casa. — Oscar, se me permitir gostaria de fazer uma pergunta indiscreta: que assunto você teria para tratar com Edgar? Afora de investir na bolsa de valores, vadiar pela cidade e consumir literatura barata, o garoto não faz mais nada da vida.

— Queira me desculpar, meu amigo. — Oscar mencionou de modo sombrio, sem tornar o rosto ou interromper sua caminhada escadaria acima. — Este é um assunto que só diz respeito a nós dois.

Edgar estava de fato na biblioteca, tal como seu pai havia previsto. Sentado de modo desleixado sobre uma poltrona larga, havia um livro repousado sobre seu torso. No entanto, a mente do rapaz vagava longe demais do conteúdo daquelas páginas. Aquele dia completava cinco meses do desaparecimento de Anya. Não encontraram bilhetes, cartas ou recados deixados nas casas vizinhas. Ninguém parecia saber de nada acerca de seu sumiço. A própria família da jovem desconhecia as circunstâncias daquele fato. “Eu não compreendo! Jantamos na noite anterior juntos e Anya retirou-se cedo para dormir. Pela manhã, havia desaparecido sem deixar qualquer rastro”, foi tudo que ouviu de Edeline Lewinter no dia seguinte.

O jovem Avelar escutou batidas na porta, mas não se preocupou em responder. Tinha a esperança de que quem quer que estivesse procurando-o, iria desistir muito em breve caso não obtivesse nenhuma resposta. Aquele pensamento poderia ser aplicado sem margem de erros para qualquer morador daquela mansão, no entanto, a regra não se aplicava a Oscar. Ele não sairia de lá até dizer o que pretendia desde que saíra de casa.

— Eu sei que você está aí dentro, Edgar. — a voz do comerciante soou alta e imponente, ainda que ele não estivesse irritado. Na verdade, ele postergou aquela conversa por muitas semanas, pois gostaria de ter certeza de que sua decisão era inteiramente racional, sem intervenção de suas emoções, que encontravam-se abaladas desde o desaparecimento da filha. — Você terá a decência de me receber ou terei que transmitir minha mensagem daqui? Porque, de um jeito ou de outro, você irá ouvir o que eu tenho a dizer.

Sua mente estava lenta, mas não tardou muito para que Edgar percebe-se quem era o dono por trás daquela voz rouca e intimidadora, ainda que seu interlocutor não tivesse se apresentado. Erguendo-se de modo levemente desastrado, ele caminhou com pressa até a porta, abrindo-a e confirmando sua teoria.

— Obrigado por me receber. — Oscar respondeu de forma polida, ainda portando o mesmo ar de seriedade habitual.

O jovem Avelar respondeu com um menear positivo. Estava intrigado e tentava a todo custo imaginar a razão pela qual o comerciante lhe procurava. Durante o tempo em que se relacionou com Anya, poucas foram as vezes que se encontraram. O o pai da jovem sempre o tratou bem, apesar de evitar qualquer tipo de intimidade. A Sra. Lewinter costumava dizer-lhe para não se incomodar com aquele tratamento evasivo, pois esta já era uma característica própria da personalidade do burguês em questão. Ela mesmo precisou de muitos de convivência para se habituar aquilo, comentava em meio a uma risada.

— Eu imagino que deva estar ocupado, assim como eu também estou, de modo que serei breve. — o negociante mencionou enquanto capturava a imagem do livro jogado sobre a poltrona. Mentalmente, ele se questiona sob quais artifícios o rapaz adquirira uma fortuna superior a de seu pai, uma vez que jamais prestara um único dia de serviço em toda sua vida. Entretanto, o pensamento não tinha nada a ver com o assunto que o levara até ali. — Sei que você vem investigando o desaparecimento de Anya. Conseguiu algum avanço desde então?

— Infelizmente, não. — o rapaz respondeu em meio a um suspiro cansado. Ter de admitir aquilo o fazia se sentir mais inútil que um peso de papel. — Ninguém sabe de nada, ninguém viu nada. Já cheguei nos portos, nas estradas, nos hospitais e conventos. Às vezes tenho a impressão que as pessoas agem como se ela jamais tivesse existido.

— Não me admira. — Oscar respondeu de imediato, o que gerou um olhar nada simpático advindo do jovem Avelar. — Compreenda, é mais fácil agir com ignorância do que sofrer a dor da perda.

— Eu jamais esqueceria a Anya para “tornar as coisas mais fáceis”. — Edgar respondeu levemente transtornado com a mera prospecção daquilo. — Mas não se preocupe com isso, o que quer que tenha acontecido a ela não pode permanecer oculto para sempre. Mais cedo ou mais tarde eu irei descobrir a verdade.

— É justamente sobre isso que vim tratar com você. — a voz do comerciante atingiu um tom sombrio e sua expressão tornou-se ainda mais fechada do que antes. — Eu quero que pare de investigar o desaparecimento de Anya.

— Desculpe, como? — o rapaz exaltou-se no mesmo instante.

— Edeline tem sofrido demais com isso e confesso que eu também. É como disse: agir com ignorância é mais fácil do que sofrer a dor da perda. Talvez seja… — Oscar fez uma pausa, ponderando as palavras que usaria e sentido o peso de sua decisão sobre os ombros. — O mais prudente a se fazer agora é deixar essa história para trás. Tenho a sensação de que quanto mais investigarmos, mais sofrimento será causado e isso é tudo que minha família não precisa agora.

— Muito pelo contrário! — Edgar exclamou com certa raiva, esquecendo-se até mesmo de medir seu tom de voz. — Encontrá-la irá acabar com o sofrimento de todos, trazê-la de volta é o único meio de deixar este incidente para trás.

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— Este é o seu pensamento, baseado exclusivamente na sua dor e eu o respeito por isso. — a voz de Oscar parecia ainda mais imponente do que antes. Aquela era uma batalha que ele não estava inclinado a perder. — Mas esta é a minha família e eu arcarei com a responsabilidade de qualquer decisão que diga respeito a ela.

O rapaz não pode deixar de soltar uma risada recheada de ironia. Aquilo era simplesmente inacreditável. Ele estava movendo céus e terras para ajudar aquela família (não que ele não tivesse seus próprios interesses naquela busca incessante) e agora o comerciante surgia com toda a arrogância possível ordenando que ele parasse de investigar. Pior, querendo que ele deixasse toda a situação para trás, como se nunca tivesse ocorrido! Oscar observou a indignação de Edgar em silêncio.

— Eu achei que quisesse tê-la de volta. — o jovem respondeu após um suspiro, de repente sentindo-se muito cansado. De tudo e de todos. — Ela é sua filha no final das contas.

— Se todo este esforço me resultar tão somente em um corpo para enterrar, então eu realmente prefiro não encontrá-la.— suas palavras soaram ferozes e só a mera prospecção de que Anya pudesse estar morta gerou calafrios em Edgar. Oscar estava convicto de que a família Avelar tinha sido responsável pelo desaparecimento de sua filha, mas a falta de indícios o obrigava a engolir suas desconfianças. Agora tudo que restava ao seu alcance era proteger o restante de sua família da nobreza impiedosa antes que outra tragédia ocorresse. — Diante das circunstâncias atuais, eu prefiro não saber o que houve. Espero que você respeite a minha decisão.

O jovem Avelar passou longos minutos em silêncio. Ele sentia medo. Interromper as buscas e investigações seria o mesmo que abrir mão de seu sentimento por Anya e com isso havia a possibilidade de seu amor acabar se esvaindo, deixando para trás somente as dúvidas e incertezas que pairavam sobre aquele desaparecimento. Era uma decisão difícil e independentemente da sua escolha, alguém sairia ferido e possivelmente traumatizado daquela situação.

O curioso de tudo residia no fato de que aquilo que Oscar necessitava para superar o desaparecimento de sua filha era exatamente o que faria Edgar ficar preso aquele fato para sempre.

— Eu jamais poderei concordar com uma atitude como essa. Mas ao mesmo tempo, não quero ser responsável por gerar uma dose de sofrimento extra a sua família. — com muito pesar e suspirando fundo para que não desistisse daquilo, Edgar sentenciou. — Eu deixarei de investigar o desaparecimento de Anya.



Edgar encarava a infinidade de livros, sem conseguir processar com clareza os títulos de cada um. Não tinha certeza do motivo que o levou a recordar-se daquilo. Já fazia nove anos desde sua conversa com Oscar. Ele tinha consciência de que já deveria ter superado todo essa história, acatando o conselho de Oscar, que optou abandonar os problemas no passado. A paixão por Anya minguou com o tempo, tal como a chama de uma lareira agoniza até ceder por completo a partir do momento em que deixam de alimentá-la. Apesar disso, o mistério e a incerteza que envolviam aquele desaparecimento sempre o mantiveram presos aos seus fantasmas do passado.

“O Silêncio dos Condenados” foi o título que captou sua atenção. Ele não era grande como os demais e possivelmente lhe garantiria algumas horas de distração. Sem mais nada a fazer ali, seus pés o guiaram de volta para seu quarto. “Talvez este casamento não seja de todo ruim. Esta pode ser a oportunidade que eu estava esperando de deixar todos os outros problemas para trás”, ele pensou de modo otimista, sentindo-se inclinado a viver de uma maneira diferente a partir daquele momento.

Adentrando em seu cômodo novamente, Sarah permanecia desacordada sobre a cama. Sua posição havia mudado levemente, mas o sono aparentava estar tão profundo quanto antes. Sentando-se sobre o estufado bem ao lado da princesa, ele iniciou sua leitura. A mão direita era responsável por manter o livro aberto e erguido, enquanto a esquerda passava as páginas sempre que necessário. Inconscientemente, os dedos da mão esquerda brincavam com uma mecha castanha entre o avanço de cada página.



Uma parte considerável de visitantes sulistas costumavam reclamar do vento gélido de Odarin. A rainha não sustentava quaisquer objeções quanto ao clima, que era bastante similar ao próprio reino de Mivre. O frio não lhe incomodava e jamais havia sido responsável por tirá-la da cama mais cedo que o habitual. Entretanto, enquanto despertava lentamente de seu sono, a manhã já lhe pareceu atípica de imediato somente pelo fato sentir-se aquecida, um pouco além do necessário inclusive.

Beatrice abriu os olhos e quando estava prestes a soltar um grito de espanto, suas mãos foi rápidas em cobrir-lhe a boca. O calor que sentia era proveniente de um corpo jogado sobre o seu. Gilbert dormia silenciosamente com a cabeça repousada sobre seu torso. Demorou longos minutos para que a rainha processasse os acontecimentos da noite anterior, finalmente chegando a conclusão de como havia ido parar ali.

Isso não pode estar acontecendo”, ela pensou com certo desespero, tentando com toda a delicadeza afastar o rapaz sem acordá-lo. A tarefa foi concluída com algum esforço e a jovem rainha não perdeu tempo em afastar-se da cama em busca de suas vestes. Era difícil de acreditar que havia sido capaz de cometer adultério, ainda mais naquelas condições. Ela não estava apaixonada por Gilbert e isso estava claro como a luz do dia. Havia bebido mais que o usual, isso era necessário reconhecer, mas não o suficiente para deturpar-lhe assim sua personalidade. Logo a imagem de Charlotte retornou a sua mente e Beatrice não pôde deixar de se sentir pequena, estúpida e muito envergonhada por ter deixado sua curiosidade levá-la a algo tão extremo. Não que Allen não merecesse algo assim. Mas ela não gostaria de ter se rebaixado tanto.

Já estava impaciente de ter que fechar todos os botões de seu vestido sozinha. Concentrada em fechar a enorme fileira de botões sem nem mesmo vê-los, a jovem rainha não percebeu o momento em que foi forçosamente puxada para trás, sendo imediatamente amparada por um par de braços bronzeados.

— Bom dia, minha rainha. — Gilbert falou enquanto enterrava o rosto no pescoço da loira. Beatrice debateu-se tanto quanto pôde para libertar-se daquele abraço forçado.

— Solte-me Gilbert, fique longe de mim! — ela praticamente gritou enquanto se afastava. Não pretendia repetir aquela loucura novamente, ao menos não enquanto a vergonha estivesse presente em sua memória.

— Qual o problema? Eu não mordo, a menos que você peça como fez na noite passada. — ele respondeu com um sorriso obsceno estampado no rosto, causando um rubor imediato na jovem. Beatrice poderia dizer e fazer o que quisesse com ele naquele momento e mesmo assim ele continuaria se sentido tão cheio de si quanto o próprio rei.

— Ouça bem, o que aconteceu aqui ontem foi um erro e não vai se repetir, que fique muito claro.

— Isso é o que você diz, mas tenho certeza de que você virá correndo para mim novamente na próxima vez que sentir-se frustrada com algo. — Gilbert mencionou com um sorriso de canto debochado enquanto recuperava sua blusa de linho, jogada em algum ponto aleatório do quarto. — Eu sei bem que você se divertiu muito ontem a noite.

O rosto de Beatrice queimava por conta de seu embaraço, mas sabia bem que se fosse formular qualquer resposta o rapaz não iria parar jamais. Com aquilo em mente, ela permaneceu em silêncio enquanto jogava os cachos dourados para trás, no intuito de esconder a parte aberta de seu vestido que havia conseguido abotoar.

— Estarei esperando por você em breve. — o rapaz gritou ao perceber que ela se esgueirava porta afora, tentando fugir dali o mais rápido possível. Uma longa risada acompanhou aquela fala. Havia alguns anos desde a última vez que ele se sentira tão confiante. Estava até mesmo pensando se deveria aproveitar aquela maré de sorte e investir em algumas apostas naquela tarde.

Beatrice tentou caminhar com pressa de volta para seu quarto, mas logo percebeu que não poderia fazê-lo. Suas pernas estavam trêmulas e ela se sentia sem forças. “Eu só preciso de um banho. E algumas horas extras de sono”. Logo ela pôde adentrar em seu quarto, quase forçando o corpo para dentro. Sua mente ainda borbulhava em pensamentos, de modo que a jovem sequer percebeu a aproximação de uma empregada.

— Deseja alguma coisa nesta manhã, minha senhora?

— Um banho bem quente, por gentileza. E não precisa se incomodar com meu desjejum, eu não tenho fome. — ela requisitou com a voz baixa, temerosa de que alguém as ouvisse. Apesar do pedido, Beatrice estava faminta, mas não poderia arriscar descer e esbarrar com Allen na sala de jantar.

A empregada fez uma breve reverência, antes de se retirar para preparar o ordenado. Vendo-se finalmente sozinha em seu quarto, a senhora daquele castelo caminhou lentamente em direção ao espelho de seu cômodo. Seus usuais cachos dourados estavam extremamente emaranhados e sem uma forma definida. Sua expressão estava levemente abalada e ela sentia o corpo todo pesar.

Apesar de ter somente dois terços dos botões fechados, ela suspirou ao imaginar o trabalho que ela teria para desabotoar todos eles novamente. Infelizmente, considerando o estado em que ela se encontrava, pedir ajuda a qualquer empregada do castelo seria um verdadeiro escândalo. Teria de lidar com a tarefa sozinha.

Depois de ver-se livre do volumoso vestido, suas mãos se ocuparam em desfazer os muitos nós e laços que prendiam seu espartilho. A empregada aproximou-se da porta, abrindo apenas uma pequena fresta desta para informar que seu banho estava pronto. Beatrice agradeceu, sem atentar que a porta permaneceu entreaberta.

Suspirando em função de seu cansaço, a jovem abaixou a cabeça para terminar de despir-se e ao tornar o rosto novamente para o espelho, teve seu sobressalto acompanhado por um grito ao perceber a ameaçadora imagem de Allen prostrada logo atrás de si. Antes que ela pudesse esboçar qualquer reação a loira foi surpreendida por duas mãos fortes imobilizando-a. Uma das mãos do monarca adentrou em seu cabelo, tomando um punhado de mechas entre os dedos e erguendo-a pelos fios. A outra segurava os dois braços atrás das costas, tornando-a refém de seu próprio consorte.

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— Pare com isso, Allen, está me machucando! — ela implorou enquanto balançava o corpo na vã tentativa de se livrar daquelas mãos. Allen o segurava com muito mais força e brusquidão que Gilbert o fizera naquela manhã.

— Eu? Machucando você? — a voz do rei estava encharcada de ironia, sendo o tom de voz que ele empregava suficiente para fazê-la perceber o quão encrencada estava. — Está enganada, minha cara Beatrice. Eu não me recordo de ter deixado essas marcas em você.

O monarca fez com que jovem girasse, sem perder o controle sobre ela. Ao torná-la na direção oposta, ele expôs as costas de sua rainha em direção ao espelho. Bastou um breve olhar sobre o ombro para que ela vislumbrasse a quantidade de marcas vermelhas e arroxeadas que encontravam-se dispostas em todo o seu dorso. Já não fosse situação aterrorizante o suficiente, ela sentia as mãos que lhe prendiam levemente trêmulas. O sangue de Allen borbulhava de ódio debaixo da própria pele.

— Ao que me parece, a gata borralheira resolveu sair para brincar ontem a noite, não é mesmo? — ele sussurrou muito próximo ao seu ouvido. — O que você achava? Que poderia passar a noite se divertindo por aí sem que eu soubesse de nada?

— Eu não sei que diversão é essa a que você se refere. — Beatrice tentou fingir ignorância, mas logo percebeu que aquela não havia sido uma escolha inteligente. Sua cabeça foi fortemente chacoalhada e ela sentia alguns cachos sendo forçosamente arrancados de sua cabeça.

— Quanto mais você fala, mais estúpida aparenta ser. — Allen respondeu visivelmente irritado desta vez. O rosto de Beatrice foi fortemente comprimido contra a parede e ela gemeu baixinho com o impacto. — Quem sabe uma pequena retrospectiva da noite passada não lhe refresque a memória.

Sem muitas opções, Beatrice trincou os dentes e fechou os olhos com força.



Se não havia neve, sempre costumava chover em algum momento da noite em Odarin. Elliot sabia que naquele dia a chuva rápida aconteceu minutos antes do amanhecer, pois não conseguiu dormir mais que um par de horas. Sentado no chão do quintal de Delia, ele observava enquanto duas galinhas fugiam desajeitadamente das investidas de um galo. Sua cabeça doía fortemente e ele estava convicto de que jamais iria beber novamente. “Não vale a pena me rebaixar ao nível dele”, pensou o rapaz com certa amargura.

— Delia disse que você estava aqui. — a voz carecia da animação habitual e seu dono sentou-se no chão, bem ao lado do tratador de cavalos. — Como você está?

— Prefiro não entrar em detalhes. — Elliot respondeu com certa amargura, enquanto apoiava o queixo em um dos joelhos. — Já tem um tempo desde a última vez que o vi. Onde esteve?

— Em casa. Mamãe piorou bastante desde o inverno e já não pode mais ficar longos períodos sozinha. — Marco explicou em meio a um suspiro cansado. Lhe partia o coração ver a própria mãe naquele estado, logo ela que sempre fora uma mulher tão ativa durante toda sua vida. Por vezes chegava a se questionar se já não estava na hora dela ter seu tão esperado descanso.

— Entendo. — Elliot respondeu levemente constrangido com a situação. Ele conhecia a cozinheira desde que se entendia por gente e ela muitas vezes era responsável por separar os dois garotos que brincavam de esgrima com suas facas de fatiar. — Por isso não tem aparecido muito aqui?

— Na verdade não. — a resposta vaga gerou um olhar de incógnita por parte do tratador. — As coisas não estavam indo bem entre a Delia e eu. Achei que talvez fosse melhor me afastar para evitar maiores desgastes.

— Por que você não me disse isso antes? — ele inquiriu com certo aborrecimento. Eram tantas coisas acontecendo que até parecia que o mundo a sua volta havia decidido desabar no mesmo instante.

— Você estava muito ocupado com seu romance de verão. — Marco retrucou em meio a uma risadinha. Ele dizia aquilo sem nenhuma mágoa, pois simplesmente não achava justo despejar seus problemas sobre o amigo quando este vivia possivelmente o melhor momento de sua via. — Nós deveríamos viajar. Sabe dizer que aqueles serviços de transporte ainda estão de pé?

— Não sei dizer e também não quero saber para ser sincero. — o tratador virou o rosto, visivelmente emburrado por ter estado alheio por tanto tempo ao restante do mundo. “Foi isso que ela fez comigo. Ou melhor, foi isso que eu permiti que ela fizesse comigo”.

— Ah, vai dizer que você não se divertia em levar cabeças e mais cabeças de ovelhas até a fronteira de Mivre? — o moreno retrucou em meio a uma risada animada. Era assim que Marco era: nem mesmo os piores problemas do mundo o faziam perder o bom humor. Tratava-se de uma companhia agradável, ainda que irritante.

— Nem um pouco. Você ficava dormindo agarrado a elas e sempre voltava para casa com cheiro de bode. — alfinetou o filho do jardineiro.

— Claro, claro. Até mesmo porque você jamais adquiriu o cheiro dos cavalos que cuida, não é mesmo? — o filho da cozinheira devolveu a afronta com um sorriso zombeteiro no rosto.

— Por favor, me lembre qual a razão para que eu continue falando você?

— Porque eu sou a luz da sua vida. — Marco respondeu enquanto passava o braço direito pelo pescoço de seu amigo, puxando-o para um abraço fraternal.

A ingenuidade do moreno o fazia ignorar o fato do quanto Elliot estava necessitado daquele tipo de apoio.



Por vezes quando o sono se perpetua por um longo período, a pessoa torna-se consciente de que está dormindo e que precisa acordar eventualmente, mas mesmo assim não consegue abrir os olhos. Isso aconteceu com Sarah e por mais que ela estivesse acordada e quisesse levantar, seus olhos e corpo pareciam não lhe obedecer como de costume. Por um instante, ela quase sentiu uma onda de pânico tomar conta de si. Mas ainda se sentia tão cansada e sem forças que nem mesmo um reação assustada ela conseguiu empregar.

Demorou algum tempo (que ela não soube precisar quanto) até que seus olhos se abrissem. O quarto já estava bastante claro, denunciando que ela havia dormido a manhã inteira. Ao seu lado, Edgar encontrava-se sentado na cama, lendo algum livro cujo o nome ela não conseguiu identificar de imediato. Seu cabelo estava levemente bagunçado e uma mecha caia desajeitadamente para o lado esquerdo.

— Finalmente acordada. — o Duque mencionou em meio a um sorriso simpático ao perceber que a princesa o observa a em silêncio. — Como está se sentindo?

— Bem, eu acho. — ela respondeu em um sussurro, sentindo a garganta arranhar por alguma razão. A jovem ergueu o corpo sobre a cama, mas o movimento brusco causou uma reação desconhecida e certamente indesejada. Ela levou ambas as mãos a cabeça, sentindo que poderia desmaiar a qualquer momento.— Retiro o que disse, minha cabeça está…

— Explodindo, eu sei. Onde pensa que está indo? Você precisa ficar deitada se não quiser passar por um desmaio. — Edgar jogou displicentemente o livro aberto sobre os lençóis, inclinando-se sobre a jovem para ajudá-la a deitar novamente na cama. Em seguida, puxou uma das cobertas até a altura de seu ombro. Ele já esperava aquele tipo de reação adversa. A “bebida da primeira noite” cumpria bem com o que prometia, o que não significava que ela estava livre de efeitos colaterais. — O que deu em você para beber aquela garrafa inteira? Estava tentando se matar ou algo do gênero?

— Que pergunta estúpida, é claro que eu não estava tentando me matar. — Sarah respondeu com irritação, sentindo como tivessem martelado sua cabeça a noite inteira. — Me disseram que eu deveria tomar e eu tomei, apenas isso.

— E desde quando você obedece as pessoas sem contestar? — o jovem Avelar soltou uma risada baixa e isso arrancou um olhar raivoso da princesa ao seu lado. — É brincadeira, não me leve tão a sério.

O pedido veio acompanhado de um afago. A mão de Edgar repousava sobre a sua, empregando algumas carícias irregulares. Eles permaneceram em silêncio, apenas degustando daquele estranho clima de intimidade. Nenhum dos dois sabia exatamente o que dizer e temiam falhar miseravelmente em seu primeiro diálogo.

— Suas mãos são macias… — “...enquanto as mãos de Elliot são demasiadamente ásperas”, ela completou mentalmente.

O Duque limitou-se a rir do comentário solto, sem dizer mais nada. Então era isso. “Eu não quero viver para sempre preso as amarras do passado. O desaparecimento de Anya sempre irá intrigar meus pensamentos e este é um fardo que sou obrigado a carregar. No entanto, eu não quero mais esperar para viver. Se este mundo ainda tiver algo de bom para ser explorado, então eu quero começar a fazê-lo ainda hoje”, ele pensou em verbalizar àquelas palavras, mas logo desistiu. Certas coisas não haviam a menor necessidade de serem ditas em voz alta. Ele pretendia mostrar sua decisão a Sarah com o tempo e com suas ações.

— Vou pedir para que providenciem seu desjejum aqui no quarto. Também pedirei que chamem Evangeline, acredito que você gostará de tomar um banho depois de comer. — Edgar mencionou enquanto se afastava da cama, seguindo em direção a porta do quarto.

— Eu adoraria comer algo agora. Mas, e quanto a viagem? — a jovem questionou com certa apreensão. Beatrice havia programado uma viagem de lua de mel para eles muito cedo na manhã seguinte ao casamento, mas a julgar pela altura do Sol estava claro que ambos estavam mais que atrasados.

— Não se preocupe, eu já pedi que adiassem nossa a saída até o início da tarde. — o jovem Avelar respondeu com muita calma e uma expressão serena no rosto. A princesa não se recordava de jamais tê-lo visto portando aquele tipo de expressão. — Não precisa ter pressa. Eu estarei esperando você.

Com aquela frase, o Duque se retirou, deixando-a sozinha para se recuperar de sua enxaqueca. Sarah encarou a porta por alguns instantes, antes de virar o corpo para o outro lado, passando a encarar a parede do cômodo. “Obrigada por tudo, Edgar. Infelizmente, eu gostaria que houvesse outra pessoa esperando por mim”, ela pensou com tristeza enquanto as memórias da tarde anterior pareciam lhe atingir como bofetadas. Enquanto ela travava uma batalha pessoal, em um dilema se valeria a pena sacrificar sua vida pessoal em prol de seu povo, Elliot havia sido mais do que rápido em recorrer ao braços acolhedores e a voz melodiosa da ruiva.

Sarah tentava internalizar o pensamento de que estava melhor sem eles e que casar-se com Edgar era menos terrível do que se tivesse que fazê-lo com qualquer outro. Ainda assim, ela estaria mentindo se dissesse que não sentia falta daqueles dedos ásperos lhe segurando com força, aparentemente dispostos a tudo que pudesse ser feito para lhe proteger.

A princesa afundou o rosto no travesseiro e tentou chorar no intuito de aliviar o aperto que sentia em seu peito. No entanto, as lágrimas não vieram.



— Evangeline, estou com muito frio! Será que não pode me arranjar algum vestido mais quente. — a jovem protestou em um choromingo infantil.

— Muito me admira vê-la dizer que está com frio. — a governanta mencionou com a mesma rispidez de sempre. — Você sempre gostou deste clima gelado daqui.

— E gosto! Mas este vestido não está nenhum pouco apropriado para o clima de Odarin. — Sarah retrucou enquanto encolhia-se dentro de si mesma. O vestido amarelo era desprovido de mangas, era feito de um tecido mais leve e tinha um forro a menos que o habitual. — Dê-me um casaco de pele e luvas então, já que não está disposta a me ajudar a trocar de vestido!

— Casaco de pele e luvas! — Evangeline repetiu as palavras com certo asco, como se aquele fosse o maior absurdo que já tivesse escutado na vida. — Eu lhe conheço bem, Sarah. Vai atirar essas coisas para fora da carruagem quando a temperatura começar a aumentar.

— Gostaria de saber quem teve esta ideia brilhante de programar uma viagem. — a princesa resmungou entre os dentes, visivelmente inconformada com aquela situação toda.

— Beatrice, é claro! Você ainda pergunta?

— Por sinal, onde ela está? Não a vi o dia inteiro. — a menina questionou enquanto esfregava os braços com as mãos. — Eu gostaria de vê-la antes de partir.

— Você passou o dia dormindo, é claro que não a viu. Bom, mesmo que estivesse acordada, não a veria. Seu irmão disse que ela estava demasiadamente cansada da festa e que dormiria até mais tarde nesta manhã.

A senhora apenas repassou o que lhe fora dito, ainda que internamente duvidasse da veracidade daquela afirmação. Beatrice jamais teve o hábito de acordar tarde e ela se questionava se estaria tudo bem. Sarah pareceu aceitar aquela resposta e tornou a reclamar da baixa temperatura e de suas roupas inadequadas para o frio. Enquanto escutava os protestos da princesa, a governanta vasculhava seu armário em busca de algo que lhe pudesse ser útil.

— Tome, um xale para usar como agasalho. — Evangeline mencionou enquanto saía de dentro do enorme closet.

— Bom, é um começo. — a jovem suspirou em resignação, pois esperava muito mais do que apenas um xale.

— Newreen fica na divisa de Odarin com Greenwall. É muito verde e arborizado, mas longe de ser tão frio quanto aqui. Creio que você vá gostar. — comentou a governanta enquanto prendia o xale sobre os ombros de sua menina. Ao terminar, Evangeline parou por uns instantes para apreciar o resultado final de seu trabalho. — Mal posso acreditar que você está se arrumando para sua lua de mel. A menina a quem eu vi nascer!

Sarah não pôde segurar um largo sorriso. Sua governanta tinha um temperamento difícil e rígido, mas ela sabia que essas características não afetaram em nada seu lado maternal e zeloso. Era impossível definir o sentimento que sentia por ela, apenas sabia que sem Evangeline ela jamais teria chegado tão longe.

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Incapaz de conter aquele sentimento de gratidão, a princesa praticamente se atirou nos braços de sua governanta. Apesar do susto inicial, ela foi prontamente retribuída. A jovem permaneceu ali por alguns minutos, sentindo um afago maternal e protetor em suas costas.

— Vamos, está na hora de você ir. — Evangeline disse com leveza desta vez. — Não se preocupe, eu estarei lhe esperando aqui o tempo todo.