“This untouched

and starry path,

I long to cross on my own.”

Sound of Winter— Park Hyo Shin

Um dia, por volta das seis da manhã, Catherina tinha batido na porta do quarto de Aleksei até que ele acordasse e o arrastado, ainda meio dormindo, para o lado de fora do palácio. Na época, o rapaz jamais teria adivinhado que a ideia da irmã que o fizera cair da cama, praticamente, viraria uma tradição que ainda estariam realizando cinco anos depois.

Verdade seja dita, a primeira execução fora meio patética. Catherina tinha conseguido sua carteira de motorista há alguns meses e, depois de uma ronda noturna, decidira que levar Aleksei para um passeio no comecinho do dia seria o presente de aniversário perfeito, mesmo que ainda faltassem quase duas semanas para a data. Ela só não contava que Aleksei mal sabia como conduzir uma das motos sofisticadas dos Caçadores e que as estradas estariam bem mais cheias do que ela esperava. Resultado: acabaram os dois tendo que se esconder entre as árvores do acostamento para esperar o trânsito diminuir depois de Aleksei ter quase caído umas três vezes. Brigaram o tempo inteiro, claro.

Por que repetir uma coisa que dera tão errado, então? Ora, porque, no fim, longe do palácio pela primeira vez em bastante tempo, Aleksei acabou rindo da cara emburrada de Cat, de repente achando humor em estarem os dois tão desamparados e despreparados. Não era com frequência que podiam ser descritos com adjetivos como esses e saírem impunes, e havia algum conforto em poder fazê-lo, mesmo que por um punhado de horas apenas.

Acordavam bem mais cedo agora, quando ainda estava escuro do lado de fora. Levantar às quatro da madrugada era garantia de que se deslocariam por um mundo adormecido. De certa forma, as madrugadas tinham se tornado o território dos irmãos Kostroma há tempos: Catherina, constantemente em seu estado mais alerta durante as patrulhas noturnas e Aleksei que, além de não ser uma pessoa matutina, tinha se acostumado pouco a pouco com a escuridão das últimas horas de um dia e as primeiras do próximo, que passaram a acolhê-lo com a promessa de silêncio e segredo para os momentos mais agitados de sua “fera” particular.

Aleksei não pensava em nada disso enquanto se dirigia para a base dos Caçadores, na verdade. Seus pensamentos se ocupavam em reclamar do frio repentino dos jardins e agradecer ao vento gelado pelo trabalho efetivo em espantar os últimos fiapos de sono de seu corpo. Mesmo com o início da primavera, ainda estava bem frio. Era possível começar a ver brotos de flores corajosas despontando do solo, contudo.

Catherina, por outro lado, o esperava plenamente desperta e era bem possível que nem tivesse dormido. Ela não perdeu tempo em debochar da cara de sono de Aleksei:

— Tem certeza que você vai enxergar a estrada desse jeito? A gente pode esperar até o bebê conseguir abrir os olhinhos — disse, com uma expressão de preocupação caricata.

— Sinto muito se não herdei o mesmo dna de morcego que você — se limitou a responder, pegando o capacete que ela lhe estendia. — E você fala como se não chegasse nas reuniões do Conselho às três da tarde com cara de quem acabou de cair da cama.

— É por que esse morcego aqui realmente trabalha de noite e ainda faz o favor de aparecer nas reuniões — retrucou.

— Vou pedir para marcarem a próxima às oito da manhã, então — sugeriu, abrindo um sorrisinho malicioso. — Já que você é tão responsável.

— Não ouse — ameaçou ela, levantando o dedo na direção dele antes de se virar e subir na moto à sua esquerda. — Vamos hoje ainda, ou ‘tá difícil?

Aleksei, entendendo o recado, imitou-a. Incrível o quanto tinha ficado familiarizado com o veículo, nem parecia que mal conseguira se equilibrar por mais de dois minutos na primeira vez.

Saíram do palácio sem dizer nada mais, até porque nem era necessário. Aleksei conhecia pouco demais dos arredores para guiá-los até algum lugar. Mesmo se soubesse mais, conhecer aquelas estradas melhor do que Catherina era um feito para poucos. Confiava que, onde quer que fossem, valeria a pena.

Nem sempre iam a um lugar novo, mas dessa vez percebeu caminhos diferentes dos anos anteriores. Cat provavelmente tinha descoberto algum ponto digno de nota naquelas rodovias, e era para lá que iam.

Aproveitavam as estradas vazias para apostarem corridas. Era irresponsável, claro, mas era uma adrenalina deliciosa de sentir, mesmo que por cinco minutos, no ponto da rodovia em que tinham certeza de que ninguém apareceria de repente na próxima curva. O placar dessas corridas tinha se perdido há muito tempo, mas dessa vez quem ganhou foi Aleksei. Uma das poucas vezes, inclusive; precisara de cinco anos para se equiparar à irmã em suas habilidades de direção.

Quando Catherina sinalizou que deveriam parar, o céu já começava a clarear. Tinham ido longe dessa vez e Aleksei não poderia deixar de ficar curioso com o canto do mundo que a irmã lhe mostraria dessa vez.

— Vamos ter que ir a pé daqui — informou Catherina, encontrando um bom lugar entre as pedras para parar. — Não é muito longe.

Apesar de não estarem a muito mais do que uns 20 metros de distância da estrada, era fácil esquecer disso. Sem o movimento dos carros, o que reinava era o som das árvores estalando, os pássaros numa cantoria indistinta e o vento carregando todos esses ruídos num assobio gélido.

Aleksei seguiu Catherina por um caminho que só ela enxergava, até se depararem com os vestígios de uma escadaria de pedra que levava a lugar nenhum, aparentemente.

— Não sabia que ainda existiam ruínas nessa região — comentou Aleksei, tomando cuidado para não pisar nos trechos congelados ou destruídos da escada.

— Também estranhei, até porque parece ser a única — respondeu ela. A subida era consideravelmente longa. — Não sobrou muita coisa, mas parece com algum tipo de pavilhão. De acordo com o Isaach, podia ser uma praça ou a parte de algum jardim.

Aleksei já ia perguntar a quanto tempo Catherina sabia daquele lugar para ter tido tempo de falar sobre ele com Isaach, quando subiu o último degrau e a visão dos arredores apagou o que ia dizer de sua cabeça por um momento. Diante de seu silêncio, Catherina abriu um sorriso:

— Impressionante, não?

Realmente não sobrara muita coisa. Havia um ou dois pilares de pedra tombados e o que deveriam ser os restos de um piso, agora reduzido aos blocos que não tinham sido cobertos ou rachados pela vegetação. Como estavam em um ponto alto, dava para ter uma visão bastante clara da floresta ao redor que, entre o branco e cinza do inverno, começava a apresentar pontos marrons e verdes, vivos, o que, por si só, já era de encher os olhos.

O que era impressionante, porém, eram as snowdrops que floresciam em massa em cada rachadura da pedra antiga. Fora do jardim bem cuidado do palácio, Aleksei nunca tinha visto tantas flores daquele tipo em um lugar só, enchendo o chão de verde e branco das suas pétalas frágeis. A sensação era de que a primavera decidira começar, ali, sua reconquista gradual do que o inverno havia adormecido.

— Pela sua expressão, nem preciso perguntar se gostou do presente desse ano — comentou Cat, sentando-se em uma das pilastras caídas. Aleksei sentou-se ao lado dela, ainda sem conseguir desgrudar os olhos da paisagem. Agora, com o sol nascendo, a neve e o orvalho reluziam sob o toque dos primeiros raios de luz. Se Aleksei ainda acreditasse em contos de fadas, poderia afirmar que esse seria o local perfeito para os fae aparecerem.

— Como você achou esse lugar?

— Precisei encontrar um ponto alto para ter uma visão melhor da região durante uma patrulha e acabei aqui — respondeu ela, dando de ombros. Talvez fosse ainda mais interessante que tivesse acabado ali sem querer; tropeçar num lugar como aquele só podia ser descrito como um golpe de sorte. — Mas as flores são um presente especialmente para você, não tinha sinal delas quando estive aqui há duas semanas… Acho que dá para chamar isso de bom presságio.

Aleksei abriu um sorrisinho sem humor.

— Se um punhado de flores forem o suficiente para impedir a guerra, eu juro que volto aqui todos os anos para agradecer o que quer que tenha mandado esse presságio.

— Te mataria ficar mais alguns segundos no clima de “vamos apreciar a natureza e esquecer do mundo lá fora”? — exclamou Catherina, e Aleksei acabou rindo e murmurando um “desculpa, desculpa” diante da frustração dela. — Agora que você já acabou com nosso momento de contemplação, quer tomar café da manhã?

— Por favor — respondeu prontamente, se levantando para ajudar a irmã a tirar a toalha e os vários potes de alimento da mochila que trouxera. O buraco em seu estômago, que estivera ignorando, ficou bem evidente à menção de comida.

A toalha logo foi se cobrindo de bolos, pães, café, biscoitos e tudo mais que tinham separado da cozinha na noite anterior. Tudo ainda quente graças à tecnologia térmica dos potes. Tinha comida o suficiente para parecer um café da manhã do palácio - isso é, se não fosse a falta de qualquer coisa saudável ali no meio. Já estavam saindo do palácio às escondidas, o que era um detalhezinho a mais, não?

— Então — disse Catherina, depois de alguns momentos de silêncio satisfeito dedicado à apreciação da comida à frente deles —, como foram os primeiros encontros com as selecionadas?

A paz de espírito que Aleksei vinha sentindo até o momento vacilou, o bolinho que comia descendo seco em sua garganta. Era óbvio que conversariam sobre isso, mas saber não o impedira de querer ignorar a questão por quanto tempo pudesse.

— Mal. Eu sou tão ruim nisso, Cat — suspirou, pensando se deveria dizer a frase seguinte. Era tão estúpido que lhe dava até um pouco de vergonha. — Criar relações com estranhos não é realmente difícil, mas conhecer essas mulheres de fato, de um jeito que eu consiga decidir uma coisa tão grande quanto um casamento… Nunca me treinaram para isso.

— Não seja tão duro consigo mesmo — respondeu ela, num tom conciliador que Aleksei não estava esperando. Talvez estivesse soando soturno o suficiente para Catherina deixar as piadas e broncas de lado por um instante. — Quão ruim pode ter sido?

Aleksei quase quis rir da descrença na voz de Catherina. Aparentemente ela botava mais fé nele do que imaginara - o que lhe incitava uma mistura esquisita de contentamento e vergonha. Decidiu contar sobre o último encontro para ela ter ideia com que estava lidando: Katherine Maxeviche fora a prova de que só não tinha sido um desastre até o momento porque tivera a ajuda de um salão cheio de gente ou da personalidade mais extrovertida da selecionada com quem conversara. Quando a responsabilidade de estabelecer uma conversa e fazer a outra pessoa se sentir confortável era dele, sozinho, seus limites ficavam mais expostos do que nunca. Também era absurdo que tivesse depositado nas selecionadas esse fardo; em teoria fora “ele” quem as convidara a deixar suas rotinas e ir ao palácio. Era esperado que o esforço inicial de conhecê-las fosse dele.

— Alek, eu acho que você está se precipitando — disse ela, quando ele terminou seu relato. — Pensar em todas essas coisas a cada interação deixaria qualquer um apavorado.

— Não vejo como poderia encarar isso de um jeito diferente.

— É uma questão de perspectiva, Alek — começou, entre uma mordida e outra do sanduíche que tinha nas mãos. — É lógico que o objetivo final da Seleção é que você se case, e é claro que você tem que considerar muitas coisas na hora de tomar essa decisão. Mas, agora, nenhuma daquelas mulheres são nada além de estranhas. Seu trabalho é, primeiro, fazer com que elas se tornem conhecidas suas. Depois, quem sabe, amigas. E depois uma possível noiva e czarina.

De fato, pensar assim tiraria um peso das costas de Aleksei. Tentar equilibrar a análise constante das habilidades das selecionadas para decidir se tinham capacidade de governar um país com uma atitude cordial para fazê-las sentir bem-vindas era uma tarefa e tanto. Imaginava que não seria impossível para todas as pessoas, mas, para ele, era muito. Apesar do efeito positivo que esse conselho teve em sua maneira de encarar as coisas, havia uma única questão martelando na cabeça de Aleksei:

— Você fala como se eu fosse muito bom em fazer amigos, em primeiro lugar.

— E não é? Isaach, Andrey e Aberash estão ao seu lado há anos, não por conveniência ou interesse, e eu sei que você sabe disso. — Ela abriu um sorriso convencido. — E eu inclusa. Não é só porque somos família que eu gostaria de passar tempo juntos se você fosse insuportável.

Aleksei cedeu, rindo um pouco. Ainda que fosse reconfortante, não era totalmente. Não duvidava das amizades que tinha no momento - na verdade, prezava por elas mais e mais a cada ano que passava -, mas não conseguia evitar de pensar que aqueles eram os amigos de antes. Conhecera Isaach aos cinco anos e Andrey aos quatro. Antes da magia e do processo gradual para se tornar como era no momento. Aberash, que já conhecera mais velho, já tinha sido uma surpresa que ele mal podia explicar, quanto mais replicar. De algum jeito conseguira manter as relações que cultivara quando aquilo ainda lhe parecia natural, mas agora… Agora não conseguia mais lembrar de como começar.

— Não sei se vai funcionar, mas vou tentar ter isso em mente. — Decidiu responder, simplesmente. Não havia propósito em compartilhar aqueles sentimentos com Catherina, não tinha como ela entender. Não que houvesse alguém em sua vida que entendesse de fato - talvez por isso não soubesse nem como começar a articular o que lhe passava pela cabeça. Enfim. Era mais do que hora de mudar de assunto. — Faz quanto tempo que você não dorme, Cat?

— Muito sutil, Aleksei — respondeu ela, repreendendo-o com os olhos, mas aceitando a deixa. — Umas 20 horas, nada fora do comum. Por quê?

— Porque seus olhos estão praticamente fechando. — Era verdade que tinha mudado de tópico propositalmente, mas fazia tempo que estava reparando nas piscadas cada vez mais longas que a irmã dava. — Me diga que você tem planos de tirar um cochilo aqui antes de voltarmos.

— Já tive dias muito piores, não tem necessidade. — Aleksei levantou as sobrancelhas, descrente. — Sério, Alek, como eu posso dormir justo nas míseras horas que temos para passar juntos?

Na maior parte do tempo, Aleksei mal se lembrava que era irmão mais velho de Catherina. Dividiam um número de funções parecido, e há muito Catherina deixara de necessitar dele para qualquer coisa. Mas houve uma época - tão, tão distante - em que ela vivia o seguindo por aí, pedindo suas opiniões, querendo saber o que ele estava fazendo, puxando-o para suas maquinações. Os dois eram crianças, mas ele sentia uma espécie de “responsabilidade por ser o mais velho” nessas horas, um dever de ampará-la ou algo assim. Ver a irmã lutando para permanecer acordada para poderem conversar lhe causou uma pontada de nostalgia no coração, e ele não conseguiu conter o sorriso terno que lhe ocupou o rosto.

— Não são nem sete horas da manhã, dá para você tirar um cochilo e ainda termos tempo de sobra antes de voltar. — Ele viu, agradecido, que ela parecia inclinada a concordar. — Ou você acha que vamos sair daqui sem que você me conte o que foi aquela discussão que você e Anastasia estavam tendo outro dia?

O puro ultraje que ocupou o rosto de Catherina foi a prova de que ela não esperava que ele se lembrasse daquilo. Não costumava se meter na vida da irmã, mesmo numa situação tão esquisita quanto aquela: a expressão frustrada de Cat ou o fato de que ambas se calaram comicamente rápido quando ele entrou na sala eram o suficiente para deixar qualquer um curioso. Nem pretendia pressioná-la por respostas de fato - era só um jeito de sinalizar que ainda tinha bastante para conversar com ela. E um pouco de encheção de saco saudável também, claro.

— Não sei do que você está falando — disse ela, e Aleksei só conseguiu rir diante de tamanha cara de pau. — Mas ok. Só preciso de uma hora, nada mais. Me acorde.

Aleksei concordou, feliz de ter conseguido convencê-la. Não demorou muito para que ela tivesse caído num sono pesado do lado dele, a cabeça encostada num travesseiro improvisado feito com a mochila e um casaco sobressalente.

O czareviche deixou os olhos vagarem pela paisagem, envolvido numa paz peculiar. Apesar dos desconfortos dos últimos dias e de ter que acordar tão cedo, se encontrava num bom humor. Considerando os próximos encontros que deveria orquestrar e o baile de seu aniversário - que seria muito maior e mais chamativo dessa vez, aparentemente -, Aleksei não podia evitar de pensar naquilo como a calmaria antes da tempestade. Isso lhe causava menos ansiedade do que seria esperado, contudo: tinham sido poucas as vezes em que conseguira identificar os momentos de paz enquanto eles ocorriam, então aquela percepção era uma dádiva; não teria que perceber sua felicidade em retrospecto e se arrepender de não ter dado mais atenção.

Com a mente vagueando por tais pensamentos plácidos, Aleksei demorou a reparar no som. A princípio ele pensou que era o vento, mas o murmúrio continuava mesmo quando a floresta deixava de se movimentar. Não era um som normal. Era como se estivesse longe e ao redor dele ao mesmo tempo, um tilintar e um burburinho indistinto de vozes. Aleksei alcançou a arma que trouxera na bolsa, num esforço de ser racional. Porque, apesar da estranheza da situação, não se sentia alarmado ou amedrontado. Sabia, de alguma maneira, que nem ele nem Catherina corriam perigo.

Bem-vindo.

Do emaranhado de sons, Aleksei escutou essas palavras com tanta clareza que foi como se tivessem falado bem à sua frente. Olhou ao redor. Nada, apenas os mesmos arredores esbranquiçados e a brisa suave balançando as flores. Olhou para Catherina, que dormia sem esboçar qualquer reação diferente. Estava delirando de sono?

Você está acordando, príncipe. Ouvindo. Czareviche Aleksei. Aleksei Kostroma. Bem-vindo.

Aleksei largou a arma, sentindo as palavras passando à sua volta. Já tivera sonhos com vozes assim e agora tinha lapsos de memória das vozes enquanto estivera acordado. Não entendia como podia ter esquecido. Era por isso que não sentia medo; porque era absurdamente familiar.

Logo você estará acordado. Não tenha medo, Aleksei, vossa alteza. Há muito tempo esperavam por você. Não tenha medo. Não os faça esperar mais.

Entre o sussurro de vozes, Aleksei começou a escutar uma música longínqua. Contrariando todo seu bom senso, fechou os olhos para escutar com mais atenção.

Desperte com coragem Aleksei Kostroma.

O czareviche viu a canção se formando à sua frente. Não tinha aberto os olhos, mas conseguia ver os sons das vozes, dos instrumentos de corda e tambores ao seu redor, na sensação mais inexplicável que já tivera na vida. Havia riso, gente dançando. Parecia uma comemoração, naquele lugar mesmo, quando as colunas ainda se erguiam, firmes, e as pedras formavam uma praça grande, repleta de símbolos desenhados na rocha. Havia o cheiro rico da floresta em plena primavera, viva e frondosa.

Aleksei não seria capaz de repetir a letra das canções, mas escutou cada uma como se já as soubesse de cor. No meio das músicas havia histórias, que agora ele não era capaz de discernir, mas enquanto as ouviu, cada uma soou clara e singular. Escutou-as como sentiu a dança expansiva à sua frente nos músculos, mesmo sem se mexer um milímetro.

E, tão de repente quanto começara, terminou.

Quando Aleksei abriu os olhos, duas percepções conflitantes caíram sobre ele: que, encostado de mal jeito no pilar às suas costas, tinha dormido. E que estava chorando.

Desorientado, ele se sentou direito, sentindo as lágrimas descerem livremente por seu rosto. Não havia soluços ou qualquer som para acompanhá-las, porém. Lágrimas fantasmas para um sentimento invisível. Ainda aéreo, o czareviche ficou ali, esperando que parassem, o que, ainda bem, eventualmente aconteceu.

Aleksei passou os olhos para o relógio em seu pulso, tomando um susto ao perceber que tinham se passado quase 50 minutos. Esse absurdo fez com que ele voltasse à realidade de vez. O que diabos tinha acontecido? Fora tudo um sonho? Quando tinha adormecido?

O mais inquietante era a “coisa” estar absolutamente quieta - Aleksei não sentia a tensão com que se acostumara dentro de si e era quase como se estivesse satisfeita, saciada. Aleksei convivia com aquela fera há anos, e sabia que por trás daquela quietude não existiam armadilhas dessa vez. Estava, de fato, tudo bem. Essa constatação o acalmou um pouco, o que era bizarro. Era a primeira vez que a “coisa” lhe trazia algum tipo de acalento. Era tudo estranho, como tudo que acontecera nos últimos minutos. E se…

— Alek? — Ao ouvir a voz de Catherina, Aleksei literalmente pulou de susto. A humilhação só não foi tanta porque ela não viu. — Que horas são?

— Cinco pras oito. — Ele procurou reencontrar sua compostura depressa enquanto Catherina se sentava, esfregando os olhos. — Que relógio natural acurado.

— É um dos meus incríveis talentos — brincou ela, abrindo um sorriso ainda sonolento.

— Você… Você sonhou com alguma coisa? — perguntou Aleksei, esperando soar desinteressado. Graças a Deus Catherina ainda estava meio dormindo e não percebeu a atitude um tanto mal articulada dele.

— Hum… Acho que sim. — Ela franziu as sobrancelhas, tentando recordar o sonho que já escapava de sua memória. — Alguma coisa com sinos e vento… E tortas de framboesa? Nenhuma revelação incrível, se é isso que você queria saber.

Aleksei respondeu com um riso fraco, decidindo não pensar no quanto “sinos e vento” poderiam ter a ver com o que ele mesmo tinha sonhado. Na realidade, ignoraria tudo que acontecera até voltar ao palácio. Por mais que ele não acreditasse nisso de fato, tinha sido só um sonho estranho. Além do mais, Catherina não era a única a querer fazer bom uso do tempo que tinham juntos, e gastá-lo remoendo algo tão inexplicável não daria em nada. Enfim. Depois de elencar justificativas o suficiente, Aleksei conseguiu se deixar prestar atenção na conversa com a irmã, relaxando aos poucos.

No fim, quando já desciam pela escada destruída, tudo o que restara em Aleksei era uma curiosidade pungente e a sensação de que tivera uma experiência muito mais bonita do que conseguia se dar conta. Talvez fosse o cochilo repentino enevoado seus pensamentos, e assim que passasse ele ficaria inquieto e preocupado como seria esperado. No momento, porém, ele só estava feliz, e se permitiria ficar assim enquanto pudesse.

***

— Os únicos registros são depois de o lugar ter sido destruído — informou Andrey, indicando as fotos que tinha conseguido reunir. — Deve ter acontecido nos momentos finais da guerra civil, por volta de 2111 e 2113. Que foi depois da coroação do Czar Ivan, isso é certo.

Aleksei não estava surpreso com a falta de informação, mas ainda assim estava um tanto frustrado. Isaach poderia entender de arquitetura como ninguém, mas era Andrey quem conhecia pequenos detalhes sobre a história de Aldan, e o czareviche tivera a leve esperança de que o amigo poderia lhe dar alguma resposta sobre as ruínas que visitara com Catherina no dia anterior. Claro, poderia pedir ajuda de algum bibliotecário ou arquivista, mas fazê-lo seria abrir espaço para perguntas que ele não gostaria de responder.

— Nenhuma pista sobre o que era antes de ser destruído? — perguntou, folheando um dos tantos livros que Andrey tinha espalhado pela mesa que estavam usando na biblioteca.

— Bem poucas. Aparentemente era um lugar isolado mesmo antes de ser abandonado — respondeu ele, apontando a região em alguns mapas mais antigos. Realmente, a cidade nunca chegara até ali. — Meu melhor chute é que era usado para alguma celebração sazonal. Existiram pequenas vilas ao redor, perto o suficiente para ser um ponto de encontro.

Bom, essa era uma informação que o “sonho” lhe dera. Queria algum tipo de explicação racional para o que tinha acontecido, qualquer coisa, até a existência de uma câmara subterrânea que exalava gases alucinógenos e concediam grandes visões. Mesmo as informações básicas que Isaach e agora Andrey lhe deram, porém, apontavam para o inexplicável. E, infelizmente, o inexplicável costumava implicar em magia.

— Ah… Entendo. — Aleksei suspirou. — Desculpe por ter te dado esse trabalho sem sentido, Drey.

— Assim você me insulta — respondeu ele, finalmente levantando os olhos dos livros com um sorriso. — Eu amo pesquisar esse tipo de coisa, ainda mais se for difícil. Estou me divertindo horrores, se você não percebeu.

Aleksei soltou um riso curto, sabendo que era verdade. O amigo era assim desde criança; aos doze anos, criaram um clube do livro unicamente para que Andrey tivesse com quem conversar sobre os livros que lia, alguns dos quais Aleksei nem ouvira falar. No começo tinha sido difícil acompanhar os gostos e rapidez do outro, mas foi, provavelmente, um dos momentos em que Aleksei absorveu mais conhecimento, e depressa. Até hoje o czareviche não entendia porque Andrey não seguira uma carreira acadêmica, optando pela Caçada. Não duvidava de suas decisões, mas não podia deixar de ponderar se o amigo escolhera a profissão pensando no irmão mais novo e no tio-avô, não em si mesmo.

— Mas por que tanto interesse nesse lugar? Não é como você nunca tivesse visto as ruínas de alguma coisa nas saídas com a Cat. — Aleksei tinha esperado que a curiosidade de Andrey pela pesquisa o distraísse dessa pergunta por mais tempo. Que mentira seria boa o suficiente?

Aleksei foi poupado de responder pela chegada silenciosa e repentina de Nastya Morozova no canto que estavam ocupando. A selecionada não demorou a se recuperar da surpresa mútua e cumprimentá-los:

— Boa tarde, alteza e… — ela terminou a reverência reticente, sem saber como se referir a Andrey.

— Andrey Isayev, caçador e meu amigo — se adiantou Aleksei, se virando para Andrey em seguida. — Essa é Nastya Morozova. Boa tarde, senhorita… Acredito que temos um encontro marcado logo, não?

Ela anuiu, com um sorriso diminuto. Aleksei raramente esbarrava com as selecionadas fora das refeições, então era no mínimo irônico se deparar com Nastya justo quando tinha um encontro marcado para dali 20 minutos. Ela estava diferente da primeira vez que tinham se encontrado, muito mais contida, mas tal coisa era esperada. Naquele momento ele era um guarda, afinal, e isso demandava muito menos cautela.

— Perdão pela interrupção, a bibliotecária me indicou que o livro que eu queria estava por aqui — justificou ela, mostrando o livro em sua mão como prova. Aleksei não sabia muito bem o que fazer. Deixar que Nastya seguisse seu caminho? Adiantar o encontro dos dois? Antes que ele pudesse se decidir, Andrey se adiantou:

— Imagine. Estávamos fazendo algumas pesquisas a caráter de curiosidade. — A última palavra foi dita olhando expressivamente para Aleksei, reafirmando a pergunta que fizera antes. Talvez fosse porque o czareviche queria muito fugir daquela conversa, que se viu dizendo para Nastya:

— Tem interesse nesse tipo de coisa, senhorita? É sobre uma ruína histórica que encontramos.

Devagar, Nastya chegou perto da mesa, deixando os olhos correrem pelos mapas, fotos e livros ocupando cada centímetro do tampo largo. Aleksei não esperava que seu olhar se acendesse em reconhecimento, mesmo que muito momentâneamente:

— Onde encontraram esse lugar?

— Na região leste da capital, quase na divisa com Volsk — respondeu Aleksei, apontando no mapa. — Não sabemos quase nada sobre.

Andrey se encarregou de informá-la do que já tinham até o momento, e seguiu-se um silêncio longo por parte dela.

— Não sei sobre esse local exatamente — começou —, mas a arquitetura é característica de locais de festival. Costumavam construir um em cada ponto cardeal da região ou cidade, um para cada estação.

Aleksei trocou um olhar com Andrey. Era informação boa, um ponto a mais para considerarem ao pesquisar. Dava quase para ouvir a mente de Andrey trabalhando, incentivada pela novidade.

— Sim sim, como não pensei nisso? — murmurou o outro, pensando alto. — Tem um nome para isso, é bem antigo…

— Festivais Chetyzre — completou Nastya. — É russo arcaico, significa…

— Festivais das Quatro Vidas — traduziu Aleksei automaticamente. Tão rápido que ele mesmo estranhou; seu conhecimento de russo antigo era rudimentar demais para tal. A questão aparentemente passou despercebida por seus companheiros, que continuaram a discutir sobre os Festivais. Logo, Andrey saiu em busca de mais uma leva de materiais, dessa vez prometendo avanços bem mais relevantes.

— Você trabalha com algo relacionado a História, senhorita? — perguntou Aleksei, procurando entender de onde todo aquele conhecimento específico vinha.

— Na realidade, sou advogada — respondeu ela, o sorriso que tivera no rosto durante a conversa sumindo para dar lugar à expressão séria de antes. — Mas gosto de ler sobre esse tipo de assunto, acabei aprendendo uma coisa aqui e outra ali.

Aleksei assentiu, decidindo fazer o que tinha em mente de uma vez, antes que perdesse o momento - e a coragem:

— A senhorita gostaria de continuar a pesquisa conosco? Poderia ser nosso encontro. — Apesar de não parecer desgostosa com a sugestão, Nastya também não parecia muito animada. Aleksei bem sabia que era difícil recusar algo para a realeza, então se apressou em explicar suas intenções. — Não há nenhum problema em fazermos o que estava planejado antes, entendo se preferir que não haja uma terceira pessoa logo na primeira vez que conversaremos, mas parecia que você estava interessada.

— Eu… Eu estou — respondeu ela, incerta. — Mas não sei quão efetivo isso seria, me ouvir tagarelar sobre Festivais não parece um bom jeito de ser apresentada à vossa alteza.

— Se é algo de que você gosta, na realidade me parece muito efetivo — disse, se lembrando da conversa com Catherina. — É o tipo de coisa que compõe uma boa apresentação.

Desde que começara aquela conversa, Aleksei tinha a sensação de estar andando sobre gelo fino e, quando Nastya abriu um sorriso sutil, finalmente colocou os pés sobre terra firme. Não tinha notado que estava tão tenso até então.

— Se é esse o caso, eu adoraria ajudá-los — disse ela, bem a tempo da chegada de Andrey com mais documentos. — Por onde começamos?

Deveria agradecer Andrey depois, pensou o czareviche enquanto ajudava a separar tudo o que o amigo trouxera, junto com Nastya. A ideia de realizar o encontro ali era bastante egoísta, na realidade: perto de Andrey, Alek se sentia menos pressionado a conduzir a conversação o tempo inteiro. Claro que era um pouco de trapaça, ainda estava contando com outras pessoas para lidar com a Seleção. Contudo, também percebia que se continuasse dando passos maiores que as pernas, cometeria mais erros do que podia arcar com, ainda mais em um momento tão delicado quanto o das primeiras impressões. Se tinha a chance de começar bem com Nastya, fazendo algo de que ela parecia gostar, então trapacearia dessa vez.

***

Não pela primeira vez, Evelina conteve a vontade de passar o arco pelas cordas do violoncelo com força para descontar a frustração pela execução meia boca que realizou. Não o fez por respeito ao instrumento e, claro, porque o ruído desagradaria a outra pessoa dividindo a sala com ela.

Entre as semanas iniciais de adaptação no palácio e o tempo de atenderem seu pedido pela disponibilização do instrumento que tinha em mãos, Evelina tinha ficado quase três semanas sem tocar, e os resultados eram visíveis. Tinha sido desesperador, perceber a falta de destreza nos dedos, o amolecimento dos calos que fazia o movimento de tocar as cordas mais graves dolorido. Em vez de ficar furiosa, ela andava usando cada segundo livre que tinha para praticar, o que a tornou a pessoa que mais usava aquela sala de música.

Era por isso que a bruxa suportava a presença de Finn Gleeson ali sem reclamar. Ela tinha bastante certeza de que ele tinha outros lugares para ensaiar - a casa de sua família, por exemplo -, mas aquela sala não era propriedade dela, no fim das contas, e ele só aparecia ali de manhã muito cedo. Claro que ela poderia evitar a sala nesse horário, mas já passava muito tempo matando as horas iniciais do dia em seu quarto, quando ainda era cedo demais para sair da ala das selecionadas e o sono a abandonara para nunca mais voltar. E, ainda que fosse em uma escala microscópica, não queria deixar que um caçador limitasse o que ela queria fazer mais uma vez.

De repente, Evelina se deu conta do silêncio. Finn não era uma companhia silenciosa: nos momentos entre as músicas, quando revezavam quem tocaria daquela vez, - numa ordem que acabou se estabelecendo pela repetição - ele puxava assunto, parecendo inabalado pelas respostas educadas e secas de Evelina. Dessa vez não, contudo. Será que ele finalmente tinha desistido de sua postura amigável?

Intrigada, ela inclinou a cabeça para ver o que ele fazia, encontrando-o na cadeira em que se sentava toda vez, lendo uma partitura com tanta atenção que era óbvio que não estava escutando o que se passava ao seu redor. A capa e páginas eram gastas, amareladas. Não pertenciam à biblioteca de partituras do palácio, isso era certo.

— Senhor Gleeson? — chamou ela. Se recusava veementemente a chamá-lo pelo nome, como ele havia pedido na primeira vez em que se encontraram. Na época ela já estava avisada, por Yanna, que ele era um Caçador do pior tipo: um de Elite.

Ele levantou a cabeça, demorando alguns segundos para substituir a expressão compenetrada pelo sorriso largo de sempre:

— Nossa, fazia tempo que eu não me distraía desse jeito, desculpe — ele se levantou, colocando a partitura puída na estante à sua frente e pegando seu violino. Ele deu uma piscadela para ela — Prometo compensar o inconveniente com uma boa performance.

— Veremos — respondeu ela, recostando-se na cadeira para assistir. Desde o primeiro dia, o único momento em que Evelina realmente apreciava a presença do caçador era quando ele tocava. Sua música era boa demais para qualquer outra atitude.

Ele tocava um pouco de tudo, e não tinham sido poucas as vezes que fora algo ligado às suas raízes irlandesas - coisa que ela descobrira numa das várias conversas que ele começou, apesar de ela não ter perguntado. Diferente das outras vezes, porém, aquela canção era tão triste que soava como um lamento. Chegava a soar fúnebre. Por que ele escolheria tocar algo assim? Não que ela não imaginasse que ele tinha suas tristeza, mas… Mas achara que não tinha mesmo. Como poderia pensar diferente, com aquela personalidade tão radiante que chegava a cegar?

Em algum momento ela parou de pensar sobre isso e só escutou, o que foi um erro, claro. Evelina era uma pessoa solitária, e não sem motivo. Não era como se ela se emocionasse a cada música triste que chegasse ao seus ouvidos, mas aquela… Encontrou um eco em seu coração que ela não acessava por vontade própria, muito menos na presença de outra pessoa. Quando a canção acabou e ela tinha lágrimas descendo pelo rosto, sentia raiva de Finn, por ter puxado aquele tipo de emoção de dentro dela. Estava a ponto de se levantar e ir embora antes que ele visse o estado em que ela se encontrava e fizesse algum comentário estúpido, quando ele olhou em sua direção. Ela realmente não esperava que o caçador tivesse os olhos marejados:

— É bonito, não é? — disse, sem tentar esconder as lágrimas e a melancolia do sorriso que abriu. Alguma coisa nessa atitude fez a raiva de Evelina esfriar.

Ela assentiu, limpando os olhos e o rosto com as costas da mão.

— Para quem é? — perguntou, e ele levantou as sobrancelhas, surpreso. Ela não voltou atrás na questão: não se tocava esse tipo de música sem pensar em alguém.

— Meu avô. — Não demorou para ele perceber a implicação da resposta, e se apressou para corrigir o que queria dizer, gesticulando quase comicamente — Ah, ele não morreu nem nada! Ele só está indo embora hoje à noite, e essa é uma das músicas de que ele mais gosta. Foi a primeira que me fez aprender.

A primeira? Foi a vez de Evelina de exprimir surpresa, franzindo as sobrancelhas. Era uma música avançada demais para um iniciante. Finn percebeu isso e riu:

— Loucura, eu sei. Passei os primeiros anos do violino assassinando a música com minhas habilidades de principiante, mas em algum momento eu comecei a acertar — disse, dando de ombros. — Acho que ele vai ficar feliz em escutá-la corretamente na sua despedida.

Havia muita coisa que ele não estava dizendo, e Evelina detestava o fato de que queria saber o suficiente para perguntar. Aquela maldita música tinha cutucado sentimentos demais.

— Você disse que ele vai voltar… Para onde?

— Greystones, a cidade natal dos Gleeson — respondeu ele, com uma sombra daquela melancolia de antes passando por sua expressão. — Depois que minha avó morreu, ele decidiu que quer viver seus últimos anos e morrer no país em que nasceu. É bem a cara dele escolher algo assim, mas isso torna as chances de eu não estar com ele quando acontecer ainda maiores… — ele piscou algumas vezes, recobrando a postura brincalhona de sempre. — Mas chega desse assunto deprimente. O que você está estudando hoje?

Evelina não queria ter enxergado aquela rachadura na personalidade irritantemente animada de Finn, algo com que ela podia se relacionar. Todo caçador tinha uma vida própria, ela sabia disso, não deveria mudar nada. Não deveria, mas mesmo assim parecia que fazia alguma diferença. Merda, merda, merda.

— Concerto em mi menor, Opus 85, de Elgar — respondeu, mostrando a parte em que estava na partitura.

— Ah, você vai começar o Adagio, é minha parte favorita. — disse, e se sentou novamente, olhando para Evelina com expectativa. — Toque, por favor!

Ela deixou os dedos correrem pelas cordas, tentando emergir na música para esquecer as emoções conflitantes que estava tendo. Principalmente a de se sentir um pouquinho lisonjeada que ele estivesse animado para ouvi-la tocar.