~*~


— Igraine, você está sangrando!!!
A constatação de Javier fez com que todos os presentes voltassem a atenção para a garota, que olhou para a própria mão. O sangue cobria algumas partes da palma, dedos e costas das mãos e só quando viu é que Igraine começou a sentir a mão latejar de dor.

— Oh...sim. A raposa me mordeu.
— Precisamos limpar e desinfetar isso...e fazer um curativo também. Venha!

Ele segurou a outra mão de Igraine, conduzindo-a para dentro da ONG. Yumie pegou a gaiola onde estava a raposa, sendo auxiliada por Jair, um dos funcionários. Ao notar que todos se encaminhavam para dentro da ONG, Cruello resolveu se manifestar.

— Onde vocês pensam que estão levando ela?
— ...quem?
— As duas! – ele apontou para Igraine e em seguida para a raposa. – Ela tem que ser levada a ao hospital para tratar isso devidamente a fim de não ter infecção, gangrena ou qualquer tipo de coisa desse naipe e esse animal raivoso tem que ser sacrificado!
— Que absurdo, Cruello! – ralhou Igraine verbalizando a indignação dos presentes. – Esta raposa não merece e nem deve ser sacrificada!
— Ela te atacou! Me atacou! Destruiu meu carro! Esse animal está descontrolado, é um perigo para todos!
— Ela só estava assustada, é um animal selvagem, não habituada com a cidade e pessoas! E ora essa, seu carro está ótimo.
— Ótimo?! Ele está repleto de pêlos e o vidro riscado!
As pessoas já haviam entrado na ONG e percebendo que estava sozinho na calçada, Cruello os seguiu.
— Igraine, volta aqui! Você precisa ir ao médico!
— Não foi nada grave. – ela falou, examinando a mão. – Foi só uma mordida de leve.
— Mordida de leve?! Tá jorrando sangue!
— ..não está, não. É só lavar.
— Só lavar?! Tem baba de raposa na sua mão! Você pode contrair raiva! Vamos para o hospital que eles já lhe dão um coquetel de remédios e se quiser fazem uma cirurgia plástica na sua mão, eu pago!

Eles já estavam entrando na sala veterinária da ONG, e com destreza, Javier já pegava a caixa de primeiros-socorros enquanto Igraine lavava a mão em água corrente. Ela se sentou em uma cadeira e com cuidado Javier pegou sua mão, secando-a e se preparando para passar o anti-séptico.

— Vai arder um pouco, tudo bem?
— ...tudo bem.

Igraine observou a facilidade com que o rapaz desinfetava seu ferimento e aplicava o curativo. Em poucos minutos, sua mão já estava devidamente enfaixada.
— Bom, já está tudo ok.
— Tudo “ok”? – Cruello se pronunciou. – Acha que Igraine vai ficar só com isso? Ela vai é para o hospital!
— Ela pode ir até uma farmácia, mas pelo que vi, o machucado foi superficial. Caso sinta dor, pode tomar um remédio básico para isso, disponível em farmácias.
— Prefiro remédios naturais.
— Eu também! Existe uma farmácia natural ótima ali na...
— Como pode garantir que Igraine não foi infectada por algum vírus maligno daquele demônio laranja?
— A raposa está devidamente vacinada, senhor Devil. Lhe garanto, como veterinário e biólogo especializado na fauna britânica, que a raposa goza de perfeita saúde e não irá passar qualquer tipo de doença para Igraine.

Cruello olhou com desdém para Javier, que sustentou o olhar.
— Levante-se, Igraine. Vamos ao pronto-socorro.
— Acho que não há necessidade. - ela comentou, examinando a mão enfaixada. – Se eu sentir alguma dor ou notar inchaço, vou ao médico.
— Faça o que quiser, então! – ralhou Cruello. – Quando essa sua mão inchar, infeccionar e apodrecer, não venha choramingando pedindo ajuda do meu plano de saúde! Melhor: já que não quer ir no médico, vai lá oferecer sua mão para aquele demônio laranja lamber passando mais bactérias ou quem sabe comer seus dedos!
— Ora Cruello, eu sou vacinada contra raiva e outras coisas... e foi só uma mordidinha, o Javier fez muito bem os primeiros socorros... não se preocupe! - ela sorriu terna para Cruello que trincou.
— Que seja...fique aí. Eu já não fico mais um minuto neste lugar! - ele resmungou. - Preciso ir á Devil's, tenho muito mais o que fazer!
— Eu o acompanho até a saída.

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Javier se prontificou antes mesmo que Igraine dissesse qualquer coisa. A contra gosto, Cruello assentiu e ambos saíram da sala.


— Mas que mau humor hein, amiga? Faz quanto tempo que ele não dá uma? - Yumie comentou surpresa sentando-se ao lado da outra e trazendo uma xícara de chá para cada.
— É só o Cruello no bom-humor dele de sempre. E os acontecimentos de hoje além do susto da raposa o deixaram com um humor que é melhor não contestar. Ás vezes acho que o Cruello sofre de TPM masculina. Mas e como está a raposa?
— Ela está bem...um pouco assustada só. Mas creio que não vai prejudicar a soltura dela no final da semana.
Igraine amuou, lembrando-se que já era momento de devolver a raposa á liberdade.
— Nossa, parece que foi ontem que essa raposa apareceu para nós, sendo resgatada de um atropelamento. E cuidamos dela, ajudamos ela a se recuperar. Foi uma grande vitória para a ONG.
— Eu sei que você se afeiçoou muito á ela mas ela precisa voltar para o lugar em que ela deve estar.
— Eu sei disso! Inclusive ajudei a encontrar uma boa reserva para soltá-la. Já está tudo preparado.
— Sim. Javier irá conosco.
— Ele parece ser uma pessoa bem legal.
— Ah ele é sim. Tenho certeza de que você vai gostar dele!
— Ele foi super cuidadoso em me fazer esse curativo e também na forma de segurar a raposa. Como ele veio parar aqui na ONG?
— Bom, por que não pergunta á ele? Tenho certeza que vocês terão muito o que conversar. Inclusive ele é ativista do Greenpace. – Yumie tomou um gole de chá. - E o que rolou para você demorar tanto para vir pra cá e ainda vindo de carona com o Cruello?
— Nossa, eu nem te contei...a DoisTons teve um bebê!
Yumie cuspiu o chá em cima da mesa de surpresa.
— Como assim?! Por que não me contou que ela estava grávida?! Eu a teria trago aqui na clínica pra fazer todo o acompanhamento da gravidez de graça.
— É que eu...não sabia...
— Como você não percebeu que ela...
— Eu sei, eu sei! É que...eu sou uma péssima dona! Estava tão ocupada com as outras coisas, que não notei que DoisTons estava diferente! E ela teve apenas um bebê, então ela não engordou nem ficou com as tetinhas salientes.
— Eu sei bem qual coisa ocupou você nos últimos tempos..e começa com C.
Igraine corou.
— N-não vou negar mas..é que foi algo tão...
— Novo? Inesperado, inimaginável, delicioso?
— É, um pouco de tudo isso fora os problemas que vieram com isso que no fim...
— E quem fez o parto dela?
— Eu...e o Cruello.
— O QUÊ?! Mas você vai me contar isso em detalhes e é agora!

~*~


Cruello caminhou para fora da ONG, seguido por Javier. Assim que este abriu o portão para que Cruello passasse, o empresário respirou o ar aliviado, livre do barulho de latidos. Acendeu um cigarro, dando uma tragada antes de olhar algo no celular.

— Droga, está atrasado!
— ..o senhor chamou um táxi?
— Eu não costumo usar táxi...tenho meu motorista particular. Pedi que ele viesse até aqui.
— Mas por quê? O carro do senhor está ali.
— Repleto de pêlos de uma raposa ensandecida. Eu que não vou entrar naquele carro e ter um monte de pelos grudado em minha roupa.
— ...mas o senhor não é o herdeiro da Devil’s, marca famosa por uma tradição em criar roupas utilizando peles de animais? Não deveria se preocupar com alguns pelos em seu carro.
Cruello o encarou, sério.
— São situações diferentes.
— ..claro. Matar animais por puro capricho estético é uma atrocidade muito menor do que um animal assustado tentando se proteger dentro de um carro.
— ...você está tentando ser irônico para cima de mim? Não é porque você tem toda essa pinta de galã latino da cor do pecado que está á altura de ficar querendo arrumar briga comigo.
— Calma, senhor Devil! Não quero brigar com você. – falou Javier. – Peço desculpas se pareci meio rude mas é que eu sou um protetor da vida animal e luto constantemente pela preservação e fim da caça e exploração animal. E sou inteiramente contra qualquer tipo de crueldade aos animais, principalmente na exploração desnecessária praticada pelos humanos.

— Oh, temos um ativista aqui então. – Cruello o encarou. – Então na certa eu sou uma pessoa que você adoraria problematizar com argumentos em prol de direitos animais, usando gírias para lacrar e fazer textão militante na internet. Ah sim, e também iria ate minha empresa com mais outros ativistas com cartazes e protestos...e tentaria pichar casacos de pele. Mas só um conselho...se fizer isso, terá que enfrentar um pesado processo judicial no qual eu, com meus contatos, iria vencer. Então lhe aconselho a deixar essa ONG e pegar algum barco para perseguir baleeiros nos mares do Japão.
— ...o senhor parece ter um desprezo bem grande pelos ativistas.
— Eles tem seus motivos para odiar minha empresa e eu tenho os meus motivos para detestá-los. E antes que comece com discursos, saiba que a Devil’s não está mais produzindo casacos de pele e acessórios do tipo.
“Pelo menos não por enquanto...”

— Então quer dizer que a Devil's está pensando em mudar sua produção e focar em algo atual e de acordo com o meio ambiente? - Javier sorriu - Isso realmente é maravilhoso de se saber! Tenho certeza que o senhor lucraria ainda mais abrindo oportunidades para novos estilos e materiais.
— O mercado está em constante mudança, faz necessário acompanhá-lo. Mas claro, sem perder a qualidade e uma certa tradição. - Cruello deu um sorriso provocador. - Não precisará tentar pichar meus casacos.
— Jamais fiz isso, senhor Devil. Sou totalmente contra o uso da violência e depredação como formas de argumentação. Sacrificar animais de forma cruel unicamente para fins estéticos e consumo desenfreado é algo que abomino inteiramente e luto constantemente contra isso. Mas opto por sustentar uma abordagem através de atitudes de conscientização, campanhas, militância e educação de divulgação e debates saudáveis nas mais diversas mídias sociais. Não nego que algumas vezes participei de ativismo radical mas foram momentos estritamente necessários e que tiveram o apoio da opinião pública.

— Além de ativista militante ainda tem argumentos de viés político? O que mais sabe fazer? Já vi que possui habilidades para controlar bestas selvagens e cuidados médicos, ainda que eu ache que seja melhor levar Igraine á um hospital. Por mais que saiba cuidar de um animal, cuidar de uma pessoa é diferente.
— Eu tratei o ferimento dela com cuidado, tive treinamento com o exército brasileiro... em minhas pesquisas tivemos que tratar muitos índios durante as expedições ... e ajudar o outro é algo que qualquer um faria. - ele sorriu e Cruello pode ver a brancura daquele sorriso. - Igraine é uma boa moça, o mínimo que poderíamos fazer é tratá-la com atenção.
— E sendo um ativista tão filantropo...pretende ficar aqui em vez de estar, sei lá, salvando gorilas no Congo?
— Eu estive em uma jornada com outros ativistas para a proteção de gorilas no Congo ano retrasado, mas precisamos desistir de ir lá por conta da política militar de lá. O pouco que vi é algo assustador mas que seria necessário apoio da ONU e a Onu...

Cruello desistiu de prestar atenção ao que Javier dizia. Pelo visto ele era do tipo que gostava de falar, principalmente de assuntos que Cruello não tinha o mínimo interesse.
— Se esteve militando pelos animais em tantas partes do mundo, o que o trouxe aqui para Londres? Até onde sei não há nada relevante para ativistas dos direitos animais ficarem militando por aqui.

“Será que esse pseudo galã de novela mexicana ficou sabendo do leilão da Devil’s? Impossível! Foi totalmente sigiloso!”

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— Yumie me convidou para conhecer a ONG e, como eu tinha vindo para cá depois de um conflito com uma empresa de cosméticos que fazia testes cruéis em animais decidiu me processar...meu advogado achou melhor eu ficar um pouco ‘quieto” como ele mesmo diz enquanto o processo está correndo. Mas certamente ganharei a causa porque eles agiam de forma ilegal e indo contra os direitos dos animais que...

Cruello quase revirou os olhos. Aquele cara não parava de falar e onde diabos estava Alfred que nunca chegava?
Para seu alívio, o carro preto de Alfred surgiu na esquina, parando atrás do carro de Cruello.

— A conversa está produtiva mas preciso ir agora. – ele indicou o veículo.
— Obrigado pela conversa, senhor Devil! - ele ofereceu a mão – Foi um grande prazer conhecê-lo e ajudá-lo contra a raposa. – ele deu um sorriso curto. - Espero poder encontrá-lo novamente.
— Hãn...prazer. É, valeu por ter ajudado a deter aquele bicho... - falou Cruello aceitando o cumprimento. - Até mais.

Cruello apagou o cigarro, jogando a bituca em uma lixeira ali perto e se aproximou de Alfred, que mascava um chiclete.


— Aconteceu alguma coisa? O carro pifou?
— Está cheio de pêlos de animal! Não entrarei nesse carro. Antes de limpá-lo corretamente e dar um jeito no vidro que foi arranhado!
— Caramba maso que aconteceu?
— Não quero falar sobre isso agora senão vou voltar naquele canil e pegar aquele bicho pra transformar em uma estola! Entre no meu carro que eu vou para a empresa no carro que você trouxe.
— Tá certo... E aquele cara com sorriso e pinta de galã bronzeado de novela mexicana?
— Hum? É o novo ativista da ONG. O que ele tem de pinta de galã tem de matraqueiro. Vamos logo antes que ele decida retomar o monólogo.

Cruello não percebeu que Javier o observou cuidadosamente até que ele entrasse no carro e saísse cantando os pneus.

~*~

Quando chegou na Devil’s, tudo que Cruello queria era se trancar em seu escritório e trabalhar sozinho no completo silêncio. Ter feito todo o percurso até a empresa ao som de Cock Sparrer não apenas o conseguira ficar com mais raiva dos percalços como aumentara sua necessidade de socar alguém. Talvez devesse trocar uns socos contra o saco de areai quando chegasse em casa.
Não. Socar um saco de areia para extravasar a raiva era coisa que seu passado como Devs faria. Seu presente como Cruello Devil exigia que aliviasse sua raiva quebrando inúmeros objetos pelo casa. Ainda que desse trabalho para os empregados limparem, ainda era melhor do que descontar nos funcionários, como a falecida Cruella Devil fazia.

Mas quando abriu a porta de seu escritório esperando o completo silêncio e solidão, teve certeza que isso era algo que ele não teria ali.
— Até que enfim apareceu, estrupício!

Scarlet estava sentada na cadeira dele, os óculos em cima da cabeça e papéis em mãos. Ao seu lado, ajeitando a pilha de papéis, estava Valder.

— Onde já se viu, você desaparecer assim quase o dia todo sem dar notícias?!
— Eu mandei uma mensagem no whats avisando o que ia fazer.
— Ir encontrar com aquela caipira te levou o dia todo?! Se poupe, me poupe, nos poupe! Temos muito o que fazer! Vá ficar o dia todo com ela no final de semana! - ela se levantou da cadeira para Cruello sentar. - Onde já se viu Cruello Devil deixando o trabalho em segundo plano? Desonra pra tu, desonra pra tua família....
— Ah, não é tão trágico assim! Eu vou ficar trabalhando aqui a noite toda. Nenhum trabalho ou decisão ficará atrasado.
— Olha, eu só não falo o que deveria falar porque incrivelmente Igraine conseguiu conquistar a opinião da mídia no desfile!

Ela fez sinal para Valder, que prontamente pegou uma pasta vermelha no meio de outras pastas e entregou a ela, que repassou para Cruello. Ao pegar a pasta das mãos do funcionário, Cruello indagou.

— O que você está fazendo aqui? Hoje era sua folga!
— Então...era para ser minha folga...
— Mas como você não aparecia, precisei ligar para Valder vir até aqui me ajudar a organizar as coisas já que sua secretária não serve pra isso! – revelou Scarlet.
— Fiz até questão de imprimir o que era mais relevante. Os links estão em um arquivo no seu computador.

Cruello pegou a pasta que Valder lhe entregava e antes do funcionário se afastar, falou.
— Valder, amanhã e sábado você fica de folga.
— S-sério?! Dois dias seguidos?
— Sim. Vá no RH e peça para que marquem esses dias de folga.
— Muito obrigado, obrigado mesmo! Vou poder levar ela para jantar já que ela ficou chateada de hoje não termos podido nos ver.
— Ela? Você está de caso com alguém?

Ao perceber que falara demais, Valder corou.
— É bem...sim...
— Quem diria! – Scarlet se intrometeu. – Pensei que por conta do trabalho na empresa não te sobrasse tempo para essas coisas.
— É meio difícil conciliar mas ...
Scarlet se aproximou, segurando Valder pelos ombros, o obrigando a olhar não para o decote dela.
— Olhe nos meus olhos.
—S-Sim! Desculpe!
— ...se eu souber que essa pessoa com quem está saindo é na verdade uma espiã enviada pela mídia ou pela concorrência...você quem irá arcar com as consequências!
— Fi-fica tranquila, madame Scarlet! – Valder falava trêmulo. – Essa pessoa é alguém honesta e confiável, posso garantir!
— Realmente, eu não sei o que acontece com os homens! – Scarlet largou o funcionário e encarou Cruello, ambas mãos na cintura. – Que começam a perder o foco e pensar com o pênis quando encontram uma mulher. Claro, isso para mulheres como eu é ótimo pois podemos manipular vocês facilmente mas isso é um desastre para mulheres que, como eu, tem que lidar profissionalmente com vocês por conta de comprometimento com o trabalho! Se não sou eu para manter isso nas estribeiras – ela apontou para Cruello. – A Devil’s já estaria com grandes problemas e até mesmo perdendo investidores valiosos que poderiam alegar falta de comprometimento com o trabalho!

— Como se só nós pensássemos com os impulsos de acasalamento!– rebateu Cruello, colocando também ambas mãos na cintura. – Eu vi como você estava se insinuando para aquele filho do sheik com cara de terrorista galã!
— Moustafah não tem cara de terrorista! Ele é um homem de linhagem e boa criação. Sequer é casado!
— Ah, agora já o está chamando pelo primeiro nome? Bem que achei suspeito ele dar “Amei” em todas as suas fotos e postagens!
— Está me stalkeando? E eu faço o que eu quiser da minha vida! Desde aquele seu amigo embuste decidiu fazer o que ele queria da vida dele, eu faço o que eu quero da minha vida!
— Falando nele, viu que está fazendo mochilão por safáris africanos? Ele andou postando algumas fotos em tribos indígenas de lá, junto com o casal de amigos que ele conheceu anos atrás.
— Eu não quero saber onde aquele mancebo anda! Já o bloqueei de todas as minhas redes sociais!
— Rancorosa...fala de mim mas você também se apegou ao passado.
— Eu não me apego ao passado. Pra mim, o que passou, passou! Não há necessidade de querer qualquer coisa do passado de volta! Ainda mais quando é coisa que não presta! E você estava indo muito bem nessa linha de raciocínio até encontrar a caipira!
— Ah chega de perder tempo falando de besteira! – ralhou Cruello puxando alguns papéis para si. – Preciso agilizar o trabalho. Valder, volte aos seus afazeres, sua folga só começa depois de bater o cartão aqui na empresa!

Aturdido, Valder recolheu as pastas que deveria devolver ao arquivo, quase bateu continência e saiu da sala.
— E você também. – ele falou para Scarlet. – Pode ir fazer o seu trabalho que eu dou conta aqui.
— Espero que sim. Tenho muito o que fazer. Não esqueça que você precisa verificar os índices financeiros mensais.
— Sim, sim...eu sei!

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~*~

Igraine tinha de admitir que Javier Jandras fazia um trabalho incrível. Após conversar com Yumie, ela se preparou para ajudar a organizar os preparativos para a soltura da raposa em seu habitat natural, que iria ocorrer dali há dois dias.
Após separem as coisas a serem levadas, focaram a atenção em alimentar os cães, gatos e outros animais que viviam na ONG.

— Há vários animais aqui... – comentou Javier. – Todos bem cuidados, vermifugados e castrados. Eles estão totalmente preparados para a adoção!
— Sim, mas não é fácil conseguir donos conscientes para os animais. Costumamos anunciar os animais em adoção na nossa página do Facebook e no site, com informações e fotos de cada um. Ás vezes colocamos cartazes em comércios que permitem, normalmente lojas de rações e pet shops, avisando sobre a ONG. Mas estamos pensando em fazer um evento aqui na ONG, um evento de adoção e doação, sabe? Mas precisamos de patrocinadores para que possamos fazer uma grande divulgação.
— Contem com minha ajuda! Se precisarem de patrocínio e divulgação, tenho conhecidos em várias áreas! Posso entrar em contato com eles, conversar, mostrar a ONG. ...acho que ficaria legal se pudéssemos fazer algo bem chamativo, a ONG é de fácil acesso e podemos também distribuir brindes! Acredito que isso poderá atrair muitas pessoas aumentando as chances de doação! Uma vez ajudei a organizar um evento beneficente nos quais os lucros seriam revertidos para ajudar o projeto Tamar para proteção das tartarugas marinhas nas praias brasileiras.

— Nossa, que show! Devia ser algo maravilhoso poder cuidar das tartarugas de lá. Aposto que você conheceu muitos lugares incríveis!
— Sim, conheci muitos lugares e pessoas incríveis, você pode olhar no meu instagram depois! - ele comentou animado. - Ser biólogo ativista e protetor dos animais é algo muito gratificante. Você deveria se aventurar a conhecer outros lugares também! É uma experiência de vida única!
— Eu já pensei em conhecer, mas não tive oportunidade..bom confesso que além de não ter tido a oportunidade, tenho um pouco de receio de sair assim, viajando pelo mundo e desafiando tudo. - ela olhou para o céu, satisfeita que hoje parecia que não iria chover. - Mas acho incrível quem encara e luta para proteger a natureza e os animais. Uma vez vi um vídeo sobre um grupo de ativistas que enfrentaram um baleeiro japonês para salvar um bando de baleias Minke que havia sido cercado e seriam cruelmente mortas por arpões...tinha um cara que nossa! Ele tomou a frente, enfrentou os baleeiros sem medo e chegou até mesmo a arrancar o arpão das mãos de um dos homens!
— ...por acaso se refere á um ocorrido no começo do ano passado? No qual um navio baleeiro na Antártica estava matando baleias, inclusive baleias grávidas?
— Sim, isso mesmo! Eu fiquei horrorizada com tamanha crueldade! Queria eu mesma poder pegar aqueles homens e bater neles por estarem fazendo aquilo! Por isso admirei tanto a coragem daquele ativista que os enfrentou! Depois soube que foi graças aos esforços daquela equipe e certamente dele que tomaras a frente inclusive depois disso, que o baleeiro foi detido e os responsáveis punidos.

Javier riu e quando percebeu que Igraine o olhava sem entender, tratou de se justificar com um sorriso constrangido.
— Então é que...o tal ativista que você fala...era eu.

A expressão de Igraine foi igual a do quadro O Grito, de Munch.
— Você?! Mi-minha nossa, sério?!

— ..sim... – ele coçou a nuca. - Não foi a primeira vez que tomei a frente de um caso de proteção aos animais...até hoje tenho amigos que perguntam como eu ainda não fui vítima de vingança desses criminosos de animais por conta do meu ímpeto mas..é que quando me deparo com crueldade a seres puros e indefesos, não consigo ficar calado ou sem poder fazer nada! Sempre fui assim, por isso decidi seguir essa vida. Claro, teve algumas vezes que fiquei com medo, como quando enfrentei um casal de caçadores no Serenghetti. Pensei que eles iriam atirar em mim quando me interpus entre o veículo que eles estavam e o grupo de zebras metros á frente...pensando agora, acho que atirariam em mim se não fosse o casal que eu havia conhecido lá que surgiu acompanhado de guerreiros de uma tribo e guardas florestais. Você acredita que os caçadores estavam agindo dentro de uma reserva? Foi muito revoltante!
— Sua atitude é admirável! Não, mais do que isso, é louvável! – em um ímpeto, Igraine pegou as mãos do rapaz entre as suas. - Muito obrigada por fazer o que faz, você é um verdadeiro exemplo!
— Eu confesso que não sei como reagir diante desses elogios mas obrigado. – ele riu simpático mas um pouco constrangido.
— Eu já participei de algumas passeatas e manifestações mas nunca de algo grande assim.
— Algum motivo para não ter ido?
— Acho que...um pouco de medo. Medo de sair do país, não me adaptar...eu nasci e cresci em uma fazenda do interior, vim para Londres uma vez como adolescente e depois já adulta para estudar e trabalhar. Eu penso que meus pais super apoiariam mas tenho pouco contato com eles então acho que de certa forma isso contribuiu para eu não ter tanta coragem de sair assim pelo mundo....é meio estranho.

Ela riu, mas foi um riso sem divertimento.
— E o seu namorado? Já conversou com ele sobre isso?
— Hãn...não é o tipo de coisa que ele gostaria de conversar.
— Por quê?
— Bom, você pôde conhecê-lo um pouco...digamos que natureza, animais e coisas do tipo não é algo que Cruello tenha qualquer apreço.
— Entendo...é complicado quando temos ao nosso lado alguém que não compartilha e compactua com nossas opiniões e visões de vida. – ele se voltou para Igraine e sorriu. – Mas eu tenho contatos em diversas ONGS e estou sempre atento a qualquer tipo de coisa que possa aparecer para combatermos a crueldade contra animais e contra o meio ambiente então, se quiser, posso te informar.
— Ah, eu adoraria!
— E se um dia você quiser, posso lhe mostrar como funciona todo o processo de ativismo do qual participo. O pouco que já vi de você sei que adora os animais e poder participar de algo para protegê-los propicia uma sensação de felicidade incomparável.
— Disso não tenho nenhuma dúvida!

~*~

O relógio marcava 03:00. A Devil’s encontrava-se silenciosa e praticamente vazia, exceto por alguns seguranças que mantinham-se por ali, vigiando o local. Mas no último andar, onde ficava o escritório da presidência, tudo estava vazio, escuro e silencioso.
Na grande mesa, Cruello mantinha-se compenetrado em comparar as informações dos documentos que tinha em mãos com os documentos na tela do computador. Embora possuísse um setor administrativo para cuidar de toda a parte financeira da empresa, mensalmente ele fazia questão de conferir tudo. Isso era uma regra que Cruella Devil o obrigara a seguir e o forçara a aprender.

“Em se tratando de dinheiro, precisamos saber exatamente tudo que entra e saí da Devil’s, nem que seja um centavo! Nunca deixe que nenhum contratado possa saber mais da situação financeira da empresa do que você!”

Para sua satisfação e alívio, tudo parecia estar fluindo corretamente. E os cálculos feitos pelo pessoal da contabilidade estavam batendo com seus próprios cálculos e com os cálculos feitos por Scarlet. Mas era preciso ficar atento e não deixar passar nada. Qualquer erro, ainda que pequeno agora, poderia se tornar algo gigantesco no futuro.
Com um suspiro, Cruello largou os papéis e se afastou da tela do computador, encostando as costas na confortável cadeira e tirando os óculos de leitura para esfregar os olhos. Percebeu então uma presença na sala e ao abrir os olhos, todo o calor do seu corpo pareceu evaporar.
Ali, sentada á sua frente, encarando-o com o rosto cadavérico sério, estava Cruella Devil.

Cruello retesou o corpo, olhos fixos na imagem da tia. Suas respiração ficou pesada, mas ele procurou não demonstrar o nervosismo, tratando de manter as mãos sobre os braços da poltrona.

- Vai ficar calado o tempo todo me encarando com esses olhos arregalados como se eu fosse uma alma penada?
— ...e não é? – Cruello perguntou, com voz fina e fraca.
—Isso não vem ao caso, seu inútil! -Cruella ralhou, sua expressão se contorcendo em uma careta -Posso estar morta, mas não estou cega!
— Como assim, t-tia? Não há nada de errado na empresa...
— E porque você está gaguejando então? Sempre que gaguejava quando eu te pressionava, era porque estava escondendo algo! -Cruella estreitou os olhos, inclinando levemente para frente.
— Eu...não estou...gaguejando...a senhora apenas me pegou desprevenido! Mas...do que gostariad e conversar? Aceita um cigarro? - ele murmurou, puxando o maço decigarros da mesa e oferecendo a tia, que se enfureceu.
—CRUELLO, VOCÊ ESTÁ TENTANDO ZOMBAR DA MINHA CARA O QUÊ? Faz mais de dez anos que estou morta, sem poder fumar e espíritos não fumam!
— Desculpa, tá! - ele choramingou. - Só queria agradar a senhora!
—Você não saberia me agradar nem que tivesse vivido mais cinquanta anos ao meu lado! -ela respondeu, reencostando na poltrona novamente
— ...bom, se a senhora apareceu pra mim...- murmurou Cruello, ele mesmo acendendo um cigarro, fazendo Cruella estreitar os olhos em um misto de raiva e vontade. - É por que na certa gostaria de falar alguma coisa.

Os olhos de Cruella estreitaram novamente e sua boca se tornou uma fina linha


—Onde...estão...meus...preciosos...casacos? -ela sibilou pausadamente

O calor sumiu novamente do corpo de Cruello e ele engoliu em seco.


— Eu...bem...os casacos?
—Sim, Cruello. -Os MEUS casacos que estavam guardados na mansão Devil.
— Hah os casacos...é...eu...eu os vendi....
—VOCÊ O QUÊ?

Cruella se levantou de súbito e pareceu deslizar de forma rápida até a frente de Cruello, apoiando as mãos na escrivaninha a sua frente, o rosto macilento e fantasmagórico parando a centímetros do rosto do sobrinho que se encolheu na cadeira.
— Como você ousa vender as minhas roupas?!
— Eu posso explicar!
— Não tem explicação! Ema peças únicas e exclusivas! Desenhadas por mim e várias deles me deram um grande trabalho de conseguir as peles na ilegalidade!
— Deixa eu expli...
— Eu no fundo sabia, sabia que estava cometendo um erro deixando você cuidar das minhas coisas....minhas peles, minhas lindas peles...tão bem guardadas durante tanto tempo!
— Eu só...
— Eu tenho vontade possuir seu corpo e te fazer se jogar dessa janela! Mas você é o único Devil remanescente que presta e não posso fazer isso! Para quem você vendeu minhas roupas?!
— Eu as vendi em um leilão...
— Você tratou as minhas peças como se fossem peças de brechó?!
— Eu fiz um lelilão com eles na Devil’s!
— Como você teve a coragem de vender aquelas pessoas de altíssima qualidade para pessoas que não saberão apreciá-las devidamente?!
— Calma tia, deixa eu falar!
Cruella deu um violento soco na mesa o que, em se tratando do fato dela ser um espírito. Não deveria acontecer.
— Pois então...tenta se explicar!
— Bom.. – Cruello se endireitou na poltrona. – Para começar, a decisão de vender os casacos foi tomada após eu pensar muito...eu sei o quão apreço a senhora tinha pelas peças. Mas estavam todas guardas ali, incapazes de serem admiradas. Então eu organizei um leilão com a alta sociedade e com os melhores clientes da Devils, posso garantir! Até o sheik Abdulah Al Sahim estava presente e foi ele quem mais arrebatou as peças no leilão! AS senhora sempre gostou dele e da família dele!

Cruella ainda mantinha um olhar assassino.
— Eu...eu tenho aqui a lista de tudo o que lucramos nesse leilão, venha dar uma olhada!
Ele digitou algo no computador e Cruella se aproximou, descrente.
— Aqui está um gráfico onde é mostrado ...
— Eu sei como funcionam os gráficos e os índices que usamos para calcular o lucro da minha empresa!

Cruello se calou e Cruella se debruçou, observando atentamente. Ao fim de algum tempo, ela se afastou e voltou a ficar do outro lado da mesa.

— ...e então...?
— Não é algo que se diga “nossa, que lucro que ele obteve com as peças” até porque aquelas peças tinham valor emocional inestimável! Mas...entre deixar elas guardas dentro do armário porque você não tem competência pra usá-las e vendê-los á altos preços para quem poderá usá-los devidamente, está relativamente tolerável.

Cruello suspirou disfarçadamente de alívio, mas então Cruella subitamente o agarrou pela gola da camisa, fazendo-o encarar seus olhos repletos de raiva.
— Eu estarei sempre atenta a tudo o que você faz. Não vou descansar até que tenha garantia de que você não irá manchar a empresa e a família Devil. Lembre-se bem disso!

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Cruello abriu os olhos assustado. Olhou ao redor, aturdido, percebendo que dormira em cima dos papéis que revisava, os óculos tortos no rosto. Levou uma mão ao peito, sentindo o coração acelerado e notou as horas na tela do computador. Já estava quase amanhecendo.
Recostou-se na poltrona, ainda sentindo o coração acelerar após o sonho com sua falecida tia. Mesmo após dez anos, ela continuava cobrando-o daquele jeito rude.

Mas era um sonho, só um sonho. Esse negócio de espírito não existia de verdade!
Cruello largou o óculos sobre a mesa, organizou os papéis em uma pilha e desligou o computador após salvar os arquivos.
Um arrepio percorreu seu corpo e ele olhou ao redor. Nada. Tratou de rapidamente vestir a jaqueta e sair da sala. Tudo estava silencioso.
“Besteira, estou com medo do quê?”

Com passos apressados, atravessou o corredor e entrou no elevador. Definitivamente, precisava descansar.

~*~