(POV June)

Chegamos a um ponto em que não preciso mais que Burton vá comigo para a escola dos gêmeos, seja para levar ou buscá-los. Às vezes, os espero em frente à sala de aula, com direito a conversas jogadas fora com mães de alunos vez ou outra. Em uma manhã em particular, porém, acabo dedicando alguns minutos de meu tempo para uma conversa com Kryanna, professora dos meninos.

Não é segredo que ela não seja a pessoa de quem mais gosto no mundo; já até conversei com Burton a respeito disso. Estávamos a caminho da casa de Constance depois de deixarmos Mathew e Daniel na escola pela primeira vez quando ele trouxe o assunto à tona.

– Então, o que achou de Kryanna? - perguntou de repente, sem um contexto prévio. Não pude deixar de estranhar o tópico.

– Espero que ela cuide bem dos meninos. - Foi o que respondi, disfarçando o leve e proposital desvio do assunto. Sabia que não era isso que Burton queria que eu dissesse, mas também sabia que minha resposta direta à pergunta dele com certeza não era o que ele gostaria de ouvir. Logo de início não fui muito com a cara da tal professora. A maneira confusa com que olhou para mim, dizendo “E você é June Haylon, não é? A Vitoriosa?” e então “Uau, eu realmente não estou entendendo nada por aqui.”… Era quase como se estranhasse o fato de Burton ter uma garota ao seu lado. Quase como se me estranhasse.

Burton parou de caminhar depois que terminou de ouvir minha resposta. Em vez de exigir que eu realmente dissesse o que achei de Kryanna, ele riu.

– Você consegue ser muito previsível, sabia?

Confesso que seu comentário me incomodou um pouco. Cruzei os braços sobre o peito e levantei o olhar.

– E como exatamente eu fui previsível? - perguntei, ao mesmo tempo cheia de orgulho e curiosidade.

Burton não demorou nada para me responder.

– Qual é, June, ciúmes? Sério? - Ele apertou os olhos quase em desafio, e seu semblante me provocava. Ele parecia querer que eu mesma falasse o que senti naquele momento em que conheci Kryanna, mesmo que já tivesse entendido qual foi o problema. Queria ouvir uma explicação saindo de minha boca.

Não que eu estivesse admitindo que fiquei um tanto enciumada, mas me recusei a dar a ele demais explicações.

– Não importa - afirmei, voltando a andar logo em seguida. Só queria que mudássemos de assunto. Porém, não demorou muito até que eu voltasse a falar sobre algo não muito diferente. Não consegui evitar. - Mas como vocês se conhecem, afinal?

Vi com o canto dos olhos que ele esboçava um sorriso orgulhoso, realizado agora que suas suspeitas se mostraram verdadeiras. Mesmo assim, Burton não disse nada a respeito; apenas respondeu ao que eu lhe perguntara.

– Nós estudamos juntos. É claro que não numa mesma sala, já que Kryanna é mais velha que eu. - É, Burton, só que eu não perguntei se ela é uma mulher crescida, independente e blá, blá, blá. - Ela terminou a escola ano passado e era uma das melhores da turma, então acabou como professora das crianças logo depois. - Uau, uma mulher crescida, independente e inteligente, quase uma deusa, não é?

É, foi difícil ficar quieta enquanto ele falava.

– Entendi. - Foi o que respondi, enfim. Ficamos o resto do caminho em silêncio e acho que acabei mantendo uma expressão um tanto emburrada sem perceber, porque Burton ria sozinho cada vez que me olhava e eu não retribuía seu olhar. Talvez seja realmente culpa do maldito ciúme. Só talvez.

E é por isso que a manhã em que Kryanna acompanha os gêmeos até a frente da escola - e, consequentemente, até mim - não é das mais agradáveis.

– June! - ela exclama, abrindo tanto um sorriso no rosto como ambos os braços ao lado do corpo. Estranho o gesto; não é como se fôssemos grandes amigas ou algo parecido. Na verdade, nos vimos pouquíssimas vezes até agora.

Apesar de tudo isso, porém, forço um sorriso tão grande quanto o dela e a cumprimento com um abraço amigável, mas não muito longo ou intenso. Cuido para que tudo tenha a medida certa de falsidade.

– Bom dia, Kryanna - eu a desejo de forma educada, então estico os braços para segurar os gêmeos, um de cada lado de meu corpo. - Como esses pestinhas foram hoje na escola, hein?

Mathew ri com minha pergunta e Daniel sorri para a professora. Percebo que ele realmente espera uma resposta dela que possa me deixar orgulhosa.

– Ah, eles estão indo tão bem! - Kryanna exclama, sorrindo de volta para os gêmeos. - Espero que estejam gostando das minhas aulas.

– Pode apostar que sim. Os dois só falam de você em casa!

Eu queria muito poder dizer que minha última fala foi parte da falsidade.

Mathew e Daniel são meus amores, meu porto seguro, meu chão. Vê-los sorrir sempre alegra meu dia, e o som de sua risada me traz gratidão por estarem felizes sob meus cuidados. Porém, ultimamente, o motivo da tal felicidade são - por incrível que pareça - Kryanna e suas aulas. Parece mentira, uma mera obra do destino para me provocar. Talvez seja a maneira que as forças do Universo encontraram para compensar toda a sorte que tive durante os Jogos. Talvez até mesmo a fortuna de Burton esteja incluída; talvez eu esteja pagando por ela ultimamente também.

“June, quer ouvir a música que a Kryanna nos ensinou hoje?”

“Ei, melhor não colocar isso aí dentro do forno. A professora Anna disse semana passada que pode explodir!”

“A escola foi ótima hoje! A Anna elogiou uma história que eu escrevi, disse que eu levo jeito”

O nome da professora dos meninos é a coisa que mais ouço dentro daquela casa e, por mais que eu adore ouvir todas as novidades do dia deles, não consigo evitar mudar de assunto quando sinto que o mesmo gira em torno de Kryanna.

E, ainda assim, aqui estou eu: sorrindo para ela enquanto seguro as mãos dos gêmeos com força e luto comigo mesma para manter esse sorriso minimamente alegre no rosto.

– Ei, meninos, por que não vão brincar com as outras crianças enquanto eu converso um pouco com a irmã de vocês? - ela sugere, e tanto Mathew quanto Daniel assentem. Estranho durante um momento. Não sei o que raios temos para conversar, só nós duas.

– Você deveria tentar falar com ela um dia - Burton me disse uma vez depois de uma reação um tanto exagerada minha à questão dos gêmeos e das menções repetitivas a Kryanna em casa. - Prometo a você que ela é uma pessoa legal, June, você não vai se arrepender.

Eu realmente espero que não, Burton. E você também não quer que eu me arrependa, pode ter certeza disso.

Estou andando junto a Kryanna em meio às crianças e aos jovens espalhados pelo terreno escolar. É estranho ver pessoas da minha idade em uma realidade tão diferente da minha. Mesmo que essa seja a vida que eu levava há não muito tempo.

– Te vi na TV outro dia, sabia? - ela comenta, e volto a reconhecer o propósito da caminhada ao longo da escola. - Você estava ótima.

– Obrigada. - A princípio, o agradecimento educado é o que basta para mim. Depois dos Jogos, não é surpresa ter minha imagem presente nas telas de toda Panem. Mas a indiferença permanece só enquanto não presto muita atenção no que ela disse, pois não demora muito até que eu perceba do que Kryanna está falando. Minha recente aparição na televisão não é como qualquer outra: foi a entrevista sobre mim e Burton, sobre nossa relação. Até então eu não havia percebido que tive a chance de expor para ela que não tem chances, de mostrar o que realmente há entre nós dois. Não consigo conter um sorriso por causa disso. - Mas foi difícil, sabe? Falar sobre tudo aquilo abertamente, me expor daquela maneira… Expor nós dois, na verdade.

– Ah, mas você já deve estar acostumada - Kryanna diz em resposta, provavelmente sem ter notado a ênfase que fiz questão de dar à expressão “nós dois”. - Quero dizer, depois dos Jogos deve ser fácil para você ficar em frente às câmeras. Eu pelo menos já me acostumei em te ver na televisão.

Ela ri com seu próprio comentário, mas eu não faço o mesmo. Seja lá qual o propósito da conversa para ela, parece ser diferente do meu. E eu quero deixar meus objetivos claros de qualquer maneira.

– De certa forma, é. - Resolvo começar comentando sua fala, então tiro alguns segundos para pensar em como encaixar alguma frase sugestiva na minha. - Mas é que eu e Burton estamos tão bem que parece errado falar sobre nossa relação para o resto do país.

Kryanna para onde está. Gosto de pensar que interromper caminhadas para dizer coisas importantes é um costume das pessoas do Distrito 6 mais do que uma semelhança entre ela e Burton.

– June, eu já entendi o que você quer dizer - afirma, e o tom doce de sua voz se esvai. Ela está agora séria, total e claramente. - Percebi desde o começo que você não foi com a minha cara, mas deixei passar como se fosse coisa boba de primeira impressão. Mas agora sei que não é, e quero deixar bem claro que não quero nada com Burton. Eu nunca quis, acredite em mim.

Algo em sua fala me incomoda; “Eu nunca quis. Será que entendi direito? Ela está tentando me dizer que Burton foi quem tentou dar um passo a frente, que ela foi quem o rejeitou?

Ah, eu não vou comprar essa. E como não vou.

– Sabe, Kryanna - se ela não teria mais doçura na voz, eu teria muito menos que nenhuma -, você me deve satisfações tanto quanto eu devo a você. Não acho que temos mais o que conversar aqui.

Saio andando sem olhar para trás. A única coisa que quero é levar os meninos para casa e não ter que pensar mais naquela professora.

– June! - Ouço Kryanna gritar atrás de mim, mas sua voz não me chama a atenção. - June, o que foi isso?! June!

Quando seguro as mãos dos gêmeos e me afasto da escola o mais rápido que posso, Mathew indaga:

– Então? O que você acha da Kryanna?

A pergunta dele é extremamente parecida com a que Burton me fez dias antes. Porém, eu não respondo a ela do mesmo jeito, desviando da objetividade, fugindo do assunto que está realmente em questão.

– Ela é um amor de pessoa! - exclamo em resposta.

Como odeio mentir para meus irmãos.