Subversão

Capítulo Um


Ele não era muito amigável.

Logo após eu ter dito meu nome, seu lábio inferior se curvou numa expressão estranha, sua sobrancelha se levantou.

– A filha do cientista? – perguntou ele com certo desgosto na voz.

A imagem do meu pai sendo atacado me veio à mente. Seu corpo sendo completamente devorado, o sangue manchando o chão branco de mármore, seus gritos, seus gritos de dor incessantes... E eu fugi.

Abaixei a cabeça rapidamente, engolindo a seco.

– Pode esperar ali, Mercy, logo ele vai leva-la até seu quarto, tudo bem? – Phil disse gentil enquanto fazia um carinho no meu braço. Não estava acostumada com aquele carinho, era algo novo pra mim, pelo menos vindo de um homem. Concordei com a cabeça, caminhando até o banco do qual ele havia apontado, me sentando ali com as mãos sobre minhas pernas.

– A encontraram na cúpula, mas ainda não sei sobre seu pai, preciso de algumas informações ainda.

Pude ouvir a voz de Phil sussurrando, era difícil ouvi-lo, mas não impossível. Parte de mim pensava que ele pediu pra que eu me sentasse aqui, significava que talvez não quisesse que eu ouvisse o que precisa conversar, mas a outra parte queria ouvir, queria ouvir o que ele diria sobre minha estadia aqui, sobre meu pai, sobre o que aconteceria comigo, com tudo.

Acabei sendo vencida pela curiosidade.

– Quer que eu faça o que? Interrogue ela?

O outro homem, Blake, perguntou com sarcasmo na voz.

– Obviamente não, ela não está nada bem, pelo visto o que passou não foi nada agradável, quero que você cuide dela.

– Não sou uma babá.

Meu olhar se direcionou até ele naquele momento, observando sua feição dura. Logo desviei novamente, fechando os olhos por alguns segundos, pensando em escutar o resto da conversa.

Não vou voltar atrás no que disse, você será o responsável por ela, vai ensina-la as regras, vai garantir que ela esteja bem e vai ensina-la a lutar, principalmente ensina-la a lutar.

Sua voz era firme, um comando direto.

– Porque eu?

Podia ouvir certo tom de indignação em sua voz, ele estava nervoso.

–Você é o único que não estava ajudando com os iniciantes. Temos ao todo treze novos, e você não estava com nenhum. Se pensou que ficaria sem ninguém, estava errado, agora chegou sua hora de fazer alguma coisa sobre isso, trate de fazer bem.

E então, as vozes se tornaram distantes, meu olhar se perdeu pelo campo a minha frente, ninguém parecia realmente ter me notado ali. Eles conversavam animadamente, algumas faziam brincadeiras entre eles, pareciam se divertir.

– Ei, novata - uma voz grossa me chamou, logo ao meu lado. Levantei minha cabeça levemente, somente pra poder encarar a pessoa. O moreno de antes se mantinha parado, mãos nos bolsos, rosto fechado, serio. Pisquei algumas vezes esperando que ele se pronunciasse. – Vem comigo.

Me levantei do banco assim que ele passou por mim, caminhando com calma atrás do mesmo que parecia inquieto.

Seus passos eram apressados e fortes, enquanto eu me mantinha quieta, lentamente o seguindo pelo lugar.

Quando passamos pela porta, um longo corredor com paredes de aço de fez... Era frio, vazio, num tom cinza, as luzes eram fracas e algumas piscavam com frequência.

Cada paço ecoava pelo lugar, e eu observava as paredes com atenção. Era estranho, diferente, e bom ao mesmo tempo.

Me sentia triste por meu pai.

Me sentia cansada pelo ataque.

Me sentia terminantemente acabada pelas horas trancada na sala secreta.

Mas mesmo assim, eu me sentia livre.

Pela primeira vez em muito tempo, eu finalmente me sentia livre!

Seguimos até encontrar uma pequena porta prateada, o moreno levou as mãos até o bolso traseiro de suas jeans, tirando dali um cartão completamente branco, pressionando-o num pequeno quadrado preto na porta, fazendo-a se destrancar. Eu finalmente estava mais próxima, com os braços envoltos de mim mesma, numa tentativa frustrada de me aquecer. Eu estava encharcada pela chuva, meu cabelo estava molhado, minhas roupas grudadas e o frio daquele corredor me afetava mais do que devia.

Ele me encarou por alguns segundos, analisando meu corpo. Pigarrei levemente, me sentindo realmente incomodada com aquilo. Ele soltou um grunhido baixo, voltando sua atenção às gavetas verdes a sua frente.

Só então fui reparar no cômodo, era um grande armário, com diversas portas e repartições, todas no mesmo tom de musgo. Ele tirou dali uma calça jeans e uma blusa, logo em seguida apagando a luz do lugar e fechando a porta atrás de si, praticamente jogando as roupas em cima de mim, as segurei contra meu peito.

– Deve servir – comentou serio, voltando a andar. Logo o segui, ainda segurando as peças contra mim.

No caminho, me pego lembrando de meu pai.

“Isso é para o seu próprio bem, já perdi sua mãe, não posso perdê-la também”.

Era o que costumava dizer.

Eu continuo aqui Pai, continuo viva, eu sobrevivi.

Mas você se foi.

– Vamos, entre e tome seu banho, roupa intima e toalhas ficam no armário ao fundo – ele disse enquanto parava de repente, abrindo outra porta prateada.

Ele não havia levado seus olhos a mim há nenhum instante, e sua feição só parecia piorar.

Assenti com a cabeça, entrando no banheiro. Era completamente branco, com doze boxes com portas de metal, doze pias, e alguns bancos. A luz era amarelada, e no fim dali, como o moreno havia me dito, havia um armário. O abri pegando as peças me eu precisava, e logo me voltei até o resto das roupas, estendendo no banco. Segurei na barra da minha blusa, me preparando para subi-la.

Foi quando a porta se abriu.

– Só queria te falar mais uma coisa – a voz do homem ecoou pelo banheiro, me fazendo abaixar novamente o pouco que havia subido da blusa, mantendo meu olhar centrado no dele, que encarava o pequeno pedaço que sobrava da pele exposta, logo depois voltando-se para meu rosto, com uma sobrancelha arqueada. – Não demore. Não tenho o dia todo pra esperar.

E assim como apareceu, se foi.

Permaneci encarando a porta por alguns segundos, parada. Balancei a cabeça, liberando minha mente, logo antes de finalmente arrancar as roupas do corpo, jogando-as num cesto próximo e então indo até o chuveiro. A água não era quente, mas não podia reclamar, também não era impossível de se suportar. Deixei que as gotas simplesmente rolassem livremente por meu corpo, me preenchendo pela sensação boa daquilo.

De repente, uma gota mais quente rolou pela minha bochecha.

Levei minha mão até o local, sentindo-a morna em meus dedos.

Mais trilhas quentes por minhas bochechas, rolando cada vez mais, eu estava chorando.

Um soluço saiu de minha garganta, e foi realmente só nesse momento que pude perceber como eu me encontrava.

Perdi minha mãe.

Perdi meu pai.

Eu estou sozinha. Simplesmente sozinha.

Me encolhi sob a água, abraçando minhas próprias pernas, como se tentasse me proporcionar algum conforto, mas não adiantava. Eu estava sozinha.

Então este era o preso pela minha liberdade? Eu não sabia se estava disposta a paga-lo.

Mas eu não tinha muita escolha.

Quando finalmente consegui me acalmar, desliguei o chuveiro e sai dali, enrolada na toalha, me troquei rapidamente, percebendo em como as roupas ficaram largas em mim, mas eu já estava acostumada com aquilo. Fui até a pia, onde um único espelho largo se estendia por toda a parede, penteei meu cabelo, deixando o arrumado. Me encarei por alguns instantes, meus cabelos tinham um tom loiro escuro, meio apagado e opaco, se estendia até o meio das minhas costas, e estavam molhados e com alguns nós. Tentei achar alguma escova por ali, para poder penteá-lo, mas sem sucesso, decidi deixa-lo daquele modo.

Nunca liguei muito para o meu cabelo, como ele estava, sua cor, seu corte. Ninguém me via, porque me importaria?

Agora as coisas começavam a ficar um pouco mais complicadas em relação a isso.

E eu não sabia como lidar com isso. Não sabia mesmo.

Meus olhos se encontravam inchados e vermelhos, nariz do mesmo tom, rosto pálido, lábios tanto quanto rachados ainda.

Está ótima, para uma zumbi.

Fechei meus olhos respirando fundo, assim caminhando até a porta e abrindo-a, percebendo que Blake se encontrava encostado na parede, de braços cruzados e expressão emburrada. Quando abriu seus olhos, me encarou com certa raiva.

– Da próxima vez, aprenda o que quer dizer: Banho rápido, ou juro que vou te deixar ai.

Ele exclamou logo em seguida andando pelo corredor, como se esperasse que eu o seguisse.

Eu não queria segui-lo.

Mas eu segui.

Dizer que gostava dele seria mentira. Dizer que ele estava sendo simpático ou agradável, ou se quer educado, seria outra maior ainda.

Eu queria parar e ficar sozinha queria deixa-lo ir embora sozinho, mas eu não podia, talvez não por falta de vontade, ou de coragem de enfrenta-lo... Talvez por simplesmente não saber como faze-lo.

Ou de saber que eu estaria perdida no segundo que ele fosse embora.

– O que aconteceu com você, a filha do cientista? Resolveu se rebelar? – ele perguntou com sarcasmo na voz.

Senti minha mandíbula se travar, fechei meus punhos automaticamente, sentindo uma pontada de irritação crescer dentro de mim. Me mantive quieta tentando expulsar aquela sensação do meu corpo, mas era quase impossível.

Me lembro de ter sentido raiva somente uma única vez antes disso. Eu tinha nove anos, era noite de Halloween.

As crianças caminhavam pelas ruas vestidas com fantasias divertidas e ao mesmo tempo assustadoras, brincando e rindo uma das outras, recolhendo doces de casa em casa. Eu queria ir, queria sair, queria estar com elas, queria ser como elas.

Mas como sempre, aquilo não me foi permitido.

Sem me dizer o porquê eu não podia ir, ou me dar qualquer desculpas, ele me proibiu de ir pra fora de casa, pegou a fantasia que eu mesma fiz e a levou consigo, guardando-a em seu próprio quarto, para que eu não a pegasse e assim, de maneira alguma saísse de casa.

Me lembro de ter ficado realmente irritada com aquilo. Me tranquei em meu quarto por um dia todo, e quando sai, não falava com meu pai de maneira alguma.

O Silêncio não demorou muito, foi interrompido quando ele me trouxe um buque de margaridas depois de voltar de uma de suas reuniões. Eu não podia sentir a grama nos meus pés, ou a brisa e o sol sob minha pele, mas naquele dia, quando ele me entregou as flores, lembro-me da sensação maravilhosa que eu senti ao cheira-la, aquele aroma doce, as pétalas suaves, a cor forte. O perdoei logo em seguida, colocando o buque num vaso em meu quarto, logo ao lado da janela, elas me lembravam de como tudo podia ser bom, de que meu pai me amava e que eu seria feliz ali.

Elas morreram alguns dias depois.

– Fugiu porque a vida lá era chata? Ou foi seu pai que te expulsou de lá? – Ele continuava a falar, como se meu silêncio o encorajasse a prosseguir.

Eu me mantinha calada, caminhando logo atrás do homem, que com as mãos nos bolsos, não lançava se quer um olhar para trás. Quando finalmente chegamos a um dos últimos corredores, ele foi em direção à última porta a esquerda, tirando outro cartão do bolso, mas esse era diferente, era menor.

Ele passou o mesmo no sensor da porta, que se abriu de imediato, ele lançou um olhar na caminha direção, como se esperasse que eu entrasse no quarto, e assim fiz.

Era completamente branco e pequeno, com um guarda roupa de madeira no canto e uma cama da mesma cor e material na parede. Nenhuma janela, nem nada decorativo.

Num mundo apocalíptico, quem precisa de janela?

Meu subconsciente dizia insistente.

– Pronto, de acordo com Phil você tem que descansar um pouco antes de começarmos as atividades realmente, então, faça o que quiser. Se quiser sair use esse cartão aqui, é sua chave – falou, jogando o mesmo em cima da cama - Mais tarde eu provavelmente serei forçado a te buscar, até lá, sinta-se livre pra sair ou seja lá o que, eu não ligo. – ele explicava encarando o corredor a sua frente, como se quisesse sair dali o mais rápido possível.

Eu devo tê-lo encarado tempo demais, porque finalmente, ele levantou seus olhos até mim, com uma das sobrancelhas arqueada.

– Que foi? – perguntou.

Desviei o olhar sem pressa, passeando os olhos pelo quarto, ouvindo uma risada baixa e sem humor vinda dele.

– Ótimo, tantos iniciantes e eu fico com a única que não fala, me lembre de agradecer Phil depois.

E de repente, meus pés já se moviam por conta própria, e minha boca, pela primeira vez, conseguia dizer o que minha mente reprimia, respondendo todas as perguntas que antes haviam ficado perdidas.

– Blake, certo? – murmurei atraindo a atenção do homem, que agora me encarava surpreso – Não interessa como cheguei aqui. Não é da sua conta, não tem nada haver com você, o que importa é que eu estou aqui agora e eu não vou embora tão cedo, pelo que pude perceber. – Eu dizia controladamente, sem me exaltar, simplesmente deixando escapar tudo o que eu estava pensando no momento. – E sobre eu “não falar” – frisei bem a expressão usada por ele mais cedo – Simplesmente não gosto de gastar palavras com coisas que não valem a pena, vivi sabendo que só é preciso responder quando se é realmente necessário, e com você, eu realmente não vi nenhuma necessidade disso. Agora, se me da licença, eu gostaria de ficar sozinha um tempo, já tive muito da sua agradável companhia por um dia. Esperarei ansiosa pelo momento em que você vai vir me buscar amanha obrigatoriamente. Só queria que soubesse que, se você pensa que é o único que está sendo obrigado a algo aqui, está muito errado. Se eu pudesse escolher, acredite, estar aqui sendo tratada como lixo por alguém que mal me conhece, definitivamente, não seria minha escolha. Tenha um bom dia! – Com um sorriso educado, empurrei levemente o homem para fora do quarto, fechando a porta logo em seguida, finalmente, conseguindo o silencio que eu tanto esperava.

Eu deveria estar me sentindo com medo de tê-lo enfrentado, mas eu não estava.

Eu deveria me arrepender de ter deixado tudo aquilo sair, mas eu não me arrependia.

Se meu pai tivesse visto isso, diria que fui inapropriada, que deveria tê-lo obedecido e não reclamado, simplesmente seguido suas ordens sem questionar ou se exaltar, que foi errado. Eu deveria me sentir culpada por ter passado por cima de tudo o que meu pai havia me ensinado por anos num único segundo de raiva.

Mas eu não me sentia.