Stanfoord

Pondere na Balança


— Está tudo normal com você, querida.

Alicia rapidamente desceu da maca da enfermaria com a ajuda de Christan — que não saiu de seu lado um só segundo desde que entraram ali. Em silêncio, os dois saíram, encontrando o monitor do corredor.

— Já para sala de aula, principalmente você, Christan.

Ele revirou os olhos e por milagre, foi em direção a sua sala de aula. Alicia fez o mesmo, mas foi interrompida por seu celular vibrando em seu bolso. Era outra mensagem:

Me espera na hora da saída. – Mit

Ela tratou logo de responder:

Não posso, estou indo para casa. Passa lá depois.

Guardou o celular novamente no bolso e caminhou até seu armário. Estava com a cabeça latejando e curiosa para saber o que seus pais queriam. Querendo ou não, imagens daquele vídeo caseiro ainda surgiam em sua cabeça, provocando-lhe nojo cada vez mais. Sua amiga tinha muito que lhe explicar.

Após pegar seu material, ligou para a mãe buscá-la. Teve sorte de ter vindo com a carona de Mitsky, caso contrário, teria que deixar seu carro na escola. Aguardou sua mãe na portaria e meia hora depois ela estava lá. Chegaria mais cedo se não tivesse pegado um mini engarrafamento, já que sua casa era apenas quinze minutos da Fitcher.

— Por que está com dor de cabeça?

— Comi algo que não me fez bem no almoço e acabei vomitando — omitiu, franzindo o nariz.

As casas passavam rápido ao seu lado, fazendo-a se sentir enjoada mais uma vez. Ela mudou o olhar para um ponto fixo dentro do carro, antes que vomitasse em cima da estofaria recém lavada de sua mãe.

Ao parar em um semáforo, sua mãe aproveitou a oportunidade para ajeitar seus cabelos no retrovisor. As duas eram extremamente parecidas; ambas tinham cabelos cor de mel e olhos tão azuis quanto o céu. O cabelo de sua mãe era repicado no queixo, enquanto o seu era longo e ondulado — como o do seu pai. Seus lábios eram cheios e o corpo esguio.

Katie não conhecia o verdadeiro Chad. Ela apoiava veemente o relacionamento dos dois; o garoto parecia ser de boa família. Tanto é que se espantou quando sua filha anunciou o repentino fim do namoro, alegando que cada um queria seguir seu caminho.

— Essas comidas da escola — murmurou, um tempo depois. — Já disse para levar comida de casa, mas não me escuta! — O sinal abriu e ela pôs o carro em movimento.

— Que coisa ridícula! — rebateu, indignada. — Não tenho mais 5 anos!

— Problemas intestinais não têm idade — completou.

Alicia apenas revirou os olhos e um silêncio confortável se instalou no carro. Ao pegar seu celular na bolsa, lembrou-se da mensagem de sua mãe mais cedo.

— O que queria falar comigo?

— Conversaremos em casa — respondeu, diminuindo a velocidade e virando a esquerda.

Ela engoliu em seco, preocupada. Odiava surpresas, e era isso que teria. Ao chegar em casa, foi diretamente para seu quarto tomar um bom banho morno, para ver se sua dor de cabeça melhorava. Entrou no banheiro acoplado ao seu quarto e decidiu lavar os cabelos. Ao terminar, vestiu-se com um moletom confortável e desceu as escadas, procurando seus pais.

Sua casa não era grande, tampouco luxuosa. Os tons eram pretos e brancos, dando um ar contemporâneo ao ambiente. Ao notar a sala vazia, rumou para o escritório de seus pais, encontrando-os jogando uma partida divertida de xadrez — o jogo preferido de seu pai.

— Finalmente! — ele exclamou sorridente ao vê-la. — Xeque-mate — comemorou mais uma vitória.

Alicia sentou-se no sofá de couro preto próximo a parede.

— Droga! — praguejou sua mãe.

— Querida, não fique triste — consolou-a, dando-lhe um beijo rápido. — Sabe que sou fera nesse jogo, ninguém me vence.

— Já esperava por isso — disse, dando de ombros.

— A conversa está boa, mas estou aqui — resmungou Alicia, apontando para si mesma.

— Calma, filha. Esperamos você no banho por duas horas e não pode nos esperar por dois minutos? — indagou seu pai, fazendo-a revirar os olhos.

— Ok, já esperei, podem começar?

Katie suspirou pela impaciência da filha, vendo traços de seu marido nela. Os dois se entreolharam por um breve momento, sabendo que a notícia seria difícil, mas esperavam que ela entendesse.

— Recebi uma promoção no hospital. Ganharei o dobro e trabalharei menos — anunciou seu pai, guardando as peças do jogo. — E você sabe o quanto precisamos desse dinheiro.

Ela sorriu e esperou seu pai continuar. Apesar de estudar em um dos melhores colégios de San Francisco, sabia o duro que seu pai dava para conseguir pagar a mensalidade todos os meses e sustentar a casa. Sua mãe o ajudava, ela era tradutora e passava grande parte do seu tempo em casa, na frente do computador. O dobro do salário significava mais viagens, mais bolsas Gucci e o limite de seu cartão de crédito aumentado.

— Agora vem a parte que você provavelmente não irá gostar — continuou, avaliando-a.

— Sabia! — cruzou os braços dramaticamente, soltando um muxoxo. — Estava perfeito demais.

— Iremos para Stanfoord.

Alicia franziu o cenho sem entender.

— Stanford? Mas ainda estou no segundo ano, por que irei para faculdade?

Seus pais riram de uma piada interna e ela os encarou, mais confusa ainda. Será que estão ficando caducos?

— Não é a faculdade. É Stanfoord, com dois “os”, uma cidadezinha do condado Hale, no norte do Texas — explicou seu pai, calmo.

— O quê? — gritou exasperada. — Não posso sair de San Francisco! Não posso deixar minha vida aqui!

— Traga-a com você, oras! — sugeriu, como se fosse óbvio.

— Muito engraçado, pai! — ironizou, desesperada. — Estou falando sério! Não posso largar meus amigos aqui, minha escola, minha casa… tudo!

— Também estamos falando sério — disse sua mãe, tentando acalmá-la. — A ideia nos agradou, seu pai irá trabalhar menos e ganhar mais, terá mais tempo para nós.

— Claro! — continuou gritando. — Quem quer ir morar no fim do mundo? Não é a toa que estão oferecendo tanto dinheiro, aposto que nem tem lugar para gastar a grana!

— Alicia Futcher, você está sendo imatura! — proferiu Luyd, em tom firme.

— Imatura porque estou impondo minha opinião? Ok, façam o que quiser, só não me metam nisso!

— Alicia, volte aqui! — gritava seu pai furioso, mas ela já tinha saído em direção ao quarto. Ele soltou o ar com força e passou a mão pelos cabelos. — E agora, Katie? O que faremos?

— Vamos dar um tempo a ela — sugeriu, afagando-lhe as costas. — Ela entenderá.

Mitsky caminhava rebolando ao lado das amigas em direção a saída, já que as aulas do dia haviam finalizado. Seu nome soava oriental, mas ela passava de longe do país; era descendente de europeus. A pele pálida e os cabelos louros platina, os lábios finos e o nariz arrebitado; sua bochecha era magra e rosada, e seu corpo igualava-se ao de sua amiga, Alicia.

— Aquilo no almoço foi tão tosco! — comentava Amanda, ajeitando sua bolsa Kelly daHermès nos ombros. — Como conseguiram aquele vídeo?

Sheilla olhou para suas unhas, entediada. Ela se divertia com as pessoas que ainda achavam que ela não podia fazer de tudo. Mitsky deu um leve riso ao seu lado, já sabendo o que sua amiga pensava.

— Certas pessoas tratam apostas como metas de vidas — respondeu, sorrindo torto.

— Isso é falta do que fazer! — Katy rebateu. — Não me submeteria a uma humilhação daquelas por uma aposta idiota!

Os corredores estavam cheios devido ao horário, mas ainda assim o atrito entre os saltos finos das quatro meninas no piso liso eram audíveis. Enquanto caminhavam graciosamente, os garotos as encaravam com interesse, e as meninas — grande parte — com inveja. O grupo de Sheilla tinha destaque na Fitcher; isso não queria dizer que todas compartilhavam amizades, alguns estavam ali apenas por interesse, como Katy Houston e Amanda Shilber.

— Na verdade quando fizemos essa aposta, Chad não imaginou que o vídeo poderia ser usado contra ele. Tolinho — bufou. — Mas quem se importa? O otário foi ele achando que mexeria com uma de minhas amigas e sairia ileso — cuspiu com ódio.

Amanda e Katy entreolharam-se. Nunca entenderam o ciclo de amizade que ocorria entre Mitsky, Sheilla e Alicia. As três eram completamente diferentes, principalmente a terceira, mas algo as unia fortemente. Isso incomodava as duas garotas.

— Ainda bem que somos amigas — piscou Amanda, falsamente.

— Onde pensam que vão, Sra. Linn e Sra. Lits? — perguntou o monitor do corredor, irônico, barrando as duas meninas. — Pelo que sei, estão de detenção depois das aulas. Por acaso iam faltar?

Droga, pensava Mitsky. Seu plano de sair escondido — ou não tão escondido — havia fracassado. Ela apenas apertou a alça de sua mochila em seu ombro e virou-se brutalmente, empurrando quem estivesse em sua frente pelo caminho. Sheilla a seguia, mas apenas com a expressão fechada.

Amanda e Katy sorriram internamente.

O monitor assistia a cena com descaso. Balançou a cabeça negativamente e saiu no intuito de pegar mais um aluno em flagra.

Assim que as duas garotas entraram na sala, elas logo vislumbraram a presença de Chad e sua tropa. Três figuras louras, apenas diferenciados pela cor dos olhos. Chad em um azul acinzentado, Zack em um verde-água e Alex num tom amêndoa. Suas massas musculares não eram muito diferentes.

— Finalmente deram a honra da presença! — zombou o diretor. — Façam o favor de sentar logo.

Sheilla entrou revirando os olhos e Mitsky bateu a porta na parede. Sr. Harts praguejou baixo, já sabendo como era o comportamento da menina. Visitas quase semanais a diretória só davam nisso. Enquanto elas sentavam — longe dos meninos —, o diretor foi até a porta e a fechou. Em sua mão continha alguns papéis que logo foram dados a Sheilla e Mitsky.

— Quero que façam uma dissertação sobre o bullying. Elas serão usadas na nova campanha da escola — explicou. — Mínimo de trinta linhas.

Mitsky olhou de soslaio para Chad, que estava com a cabeça apoiada em sua mão. Seus dois amigos estavam, aparentemente, fazendo rabiscos no papel. Essa será uma longa tarde.

Alicia não poderia deixar San Francisco. Havia batalhado tanto para estar onde estava. Seu passado não era divertido, sempre fora o tipo de garota fechada, em que todos queriam puxar graça. Seus colegas adoravam chateá-la, mas como era tímida, apenas aguentava calada. Não era difícil vê-la no banheiro da escola chorando.

Esse triste fato durou até o sexto ano, quando mudou de escola e consequentemente conheceu Mitsky. Ninguém a queria, enquanto Mitsky era querida por todos, sempre rodeada de amigos. Apesar disso, ela — de algum modo — gostava de Alicia, e queria ser sua amiga, mas temia o que seus amigos iriam dizer.

Em mais um fim de aula, Alicia guardava seus materiais e se dirigia a porta de sua antiga escola. Diferente dos outros dias, seus colegas de classe a seguiram, e antes que pudesse virar o corredor para a saída, um deles segurou-a pela alça de sua mochila.

— Calma aí, esquisitinha — zombou um dos garotos.

O que segurava sua mochila a fez virar de frente para eles.

— Você tem que fazer um favor para nós — continuou. — Sabe que se não entregarmos um relatório ao Sr. Gloogs, iremos repetir essa matéria.

Alicia apenas tremia, silenciosamente.

— Vamos lá, garota — disse o garoto que segurava sua mochila, sacudindo-a, já irritado. — Quero ver os cinco relatórios prontos até o final dessa semana.

Ela assentiu, mas quando ia saindo, Mitsky aproximou-se, interrompendo-a.

— Você não irá fazer relatório nenhum — rosnou.

Todos ficaram em choque, menos Alicia, que achava melhor fazer um a cinco relatórios.

— Qual foi, Mit? A nerdzinha pode fazer todos os relatórios, sem briga! — sugeriu o garoto que estava segurando sua mochila há alguns segundos.

Mitsky soltou uma sonora gargalhada seca, e prosseguiu, irônica:

— Acha que quero que ela faça meu relatório? Tenho um cérebro, e não farelos podres como vocês. Alicia não fará o relatório de ninguém, apenas o dela. E escutem bem — ameaçou, colocando o dedo na direção dos cinco garotos estáticos —, acho bom deixarem essa menina em paz, ou irão se ver comigo!

Ninguém disse nada. As pessoas que caminhavam pelo corredor apenas olhavam, surpresos. Mas nenhum deles presenciava a cena com mais surpresa que Alicia. A garota que nunca foi defendida por ninguém, agora estava ali, sendo protegida por uma das garotas mais populares do sexto ano.

Após esse dia, ninguém mais ousou mexer em um fio de cabelo dela, tudo graças a Mitsky. As duas também começaram a se falar com frequência, Mitsky não tinha mais o velho medo de ser ignorada. Não demorou muito para as duas virarem as melhores amigas que eram hoje. No oitavo ano, Alicia mudou-se de novo, dessa vez para a Fitcher; Mitsky não pensou duas vezes em ir com a amiga.

Com seus anos de convivência com Mitsky, Alicia aprendeu a defender-se sozinha. Na Fitcher, Sheilla se aproximou de Mitsky — ela já estudava lá há alguns pares de anos. Logo as três ficaram inseparáveis, fazendo com que Amanda e Katy — antigo trio juntamente com Sheilla — ganhassem um ódio mortal pelas novatas. Porém, nenhuma das três suspeitou disso até hoje.

Alicia limpou as lágrimas solitárias que caíam pelo seu rosto, tentando imaginar como seria sua vida sem sua amiga. Ela temia ter que passar novamente pelo seu passado, quando não tinha um apoio para ajudá-la. Por outro lado, sabia que seria puro egoísmo dela querer ficar aqui. Sabia o quanto seu pai ficava apertado tentando mantê-la em uma boa escola e pagando as mordomias de sua vida. Essa promoção viria a calhar, já que seu pai há tempos queria começar a guardar dinheiro.

Ela tomou um susto quando escutou algo passando por debaixo de sua porta. Sentou-se na cama rapidamente e percebeu que era um papel. Ficou indecisa se pegava ou não. O que seria de tão ruim agora? Por fim decidiu pegar o conteúdo. Era um envelope branco, logo reconheceu a logomarca do hospital onde seu pai trabalhava.

Não demorou muito para abri-lo e tirar outro papel branco de dentro. Leu atentamente todas as linhas, nas quais explicavam sobre o novo trabalho, quanto ganharia e quando deveriam ir. 24 de abril. Seria a pouco menos de uma semana. Quatro dias para ser exato.

Ela jogou os papéis no chão, triste, e novas lágrimas escorreram-lhe a face. Tinha apenas quatro dias para dizer adeus a sua vida em San Francisco. Adeus aos seus amigos, a Sheilla… a Mitsky.