Amélia me apertou muito forte, apesar da aparência raquítica e braços finos, era uma mulher de força. Contou um dia para mim e para Léo que sua vó tinha vivido no período de escravidão, aqui no Brasil. Esta trabalhava o dia todo, todos os dias, sem receber remuneração, sob um sol escaldante, em regime de sono e de comida, mau alojamento e tratada como bicho. Ela me disse que muita coisa tinha mudado, e que hoje em dia ela sente mais gosto de trabalhar, mas que ainda há coisa a se fazer, em relação ao racismo. A senhora de 65 anos mora com eles há vinte anos, realmente já é da família, cozinha tão bem quanto conta histórias. Cada dia que eu dormia na casa do Léo ela nos contava uma fábula ou um conto diferente, criado por ela mesma. No hall da casa, na frente da lareira, ela sentada na poltrona vermelha de couro, gesticulava ferozmente, fazia caretas e nós mergulhávamos cegamente em cada palavra, vivendo cada personagem, cada emocionante aventura, sentados no assoalho, que brilhava com coloração alaranjada pelo fogo que trepidava e estalava doce e ritmicamente, com uma almofada e dividindo um cobertor passávamos a noite ouvindo a senhora e o delicioso ruído das chamas lambendo a superfície dos tocos de carvão.

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A senhora estava vestindo um avental vermelho com bolinhas brancas preso em sua cintura com dois finos fios que formavam um nó borboleta em suas costas, usava um chinelo Havaianas e uma espécie de lenço na cabeça também vermelho e amarrado na parte de trás da cabeça.

As próximas horas seguiram-se com um cardápio maravilhoso: de entrada ela fez uma porção de batatas fritas, sequinhas e de um amarelo vivo, chamativoe alguns bolinhos de queijo que derretiam na boca, por seguinte veio o prato principal: um pernil de porco muito bem condimentado com tomilho e açafrão, champignons banhados ao molho do estrogonofe, um arroz pálido e soltinho, do jeito que só ela sabe fazer. Como doce: leves figos cristalizados e uvas róseas maduríssimas.

Amélia optou pelas frutas, pois foi avisada que eu vinha, e já conhecia meu problema de peso. Fui ao consultório do doutor Ramon, com papai o último fim de semana. O médico disse que engordei sete quilos no decorrer do ano, e que esta quantidade era significativa para uma criança da minha idade, sugeriu o doutor que eu restringisse o açúcar rigidamente, mas não que abstivesse dele, na alimentação. Ingerisse frutas nos intervalos das refeições para saciar a fome compulsiva e os carboidratos, ele falou algo ao respeito, mas não lembro direito. O que lembro é que ele mencionou um distúrbio alimentar que tenho, a conversa foi mais focada com papai.

Os figos estavam divinos.

...

Não acompanhei o momento que papai adentrou a residência dos Domingues, mas ele estava lá na sala, com a roupa rasgada, sapato sujo, cabelo desarrumado, alguns rasgos no terno e dois ou três hematomas distribuídos pela face.

-Papai, o que aconteceu? –fui correndo até ele, rebolando por consequência do meu peso.

Papai foi em direção da poltrona vermelha e esparramou-se nela. Chegando mais perto consegui perceber que a parte lateral de sua cabeça estava sangrando.

Ele sorri para mim para tentar mostrar confiança, mas ele estava fraco demais, percebi isso com meus próprios olhos. Helena estava correndo de um lado para o outro como louca, com dois celulares, cada um posicionado em uma de suas orelhas, respondia um, focava a atenção no outro, Antenor estava tomado de uma tensão também enérgica, tirou um dos telefones da mão da esposa, falava alto no telefone.

-AMELIA! –Antenor gritou tapando o telefone. A senhora veio aos tropeços. – Por favor, ligue para uma ambulância... O senhor Mates foi ferido na parte lateral da cabeça, urgente.

Então a casa toda estava armada de celulares, se movendo da esquerda para a direita. O ar tranca em minha garganta. O que aconteceu com o senhor, papai? O senhor estava tão bem... O senhor estava no trabalho... Não pode ter acontecido nada tão grave lá no escritório...

Antenor estava abaixado na frente de Márcio repreendendo-o.

Papai estava com os olhos ardendo, e não era pelo reflexo das chamas da lareira, era de raiva, uma raiva enorme e não era do tio Antenor, ele olha para mim e enche os olhos d’água.

Papai.

Léo pegou minha mão e me levou á Amélia, para ouvir uma nova história. Ele me olhava sério, sem demonstrar sentimento, mas sem chegar a ser frio, uma junção de seriedade e compreensão.

Foi a pior noite de minha vida, acompanhei o breu da noite em seu agonizante desenvolvimento no céu, no quarto de Léo, este já dormia e eu mal pestanejava. Preciso ficar acordada para saber como meu pai está... Não posso dormir, e se ele precisar de mim? Então rezei, não sei que tipo de reza era, e nem quais palavras eram, mas pela primeira vez na minha vida, nada importou mais que meu pai.

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Apesar de eu não demonstrar, eu o amo com todo meu coração, e sei que ele sente isso por mim. Ele é toda minha família, salvo a tia Beta. Referimo-nos a ela desse jeito porque quando eu era pequena não conseguia pronunciar a letra “r” de seu nome, eu falava “Beta, Beta”.

Os raios entraram preguiçosos pela janela, passando pela cortina. Não dormi um instante sequer. Quando Amélia entrou, levantei da cama. Tomei um rápido café da manhã, Antenor nos levou ao hospital. O quarto do papai era de número cento e trinta e três, branco como todos os outros, no centro, uma cama hospitalar, Márcio deitado, olhando para o vazio. Quando entrei, ele não falou comigo, continuou no seu silêncio, submerso.

Poucos meses depois, meu pai disse que iríamos embora da capital, e nunca mais voltar, que eu não podia me despedir de nenhum amigo, ninguém poderia saber o exato momento de nossa partida. Fui embora sem dizer nada a ninguém, com exceção de minha melhor amiga, Anabella, trocávamos e-mails todas as semanas, mas parece que com o tempo a gente foi de distanciando. Alguma coisa crescia no meio de nós, e nossa ligação ficava fraca, até não passar de uma sombra esguia, uma deprimente e tênue linha. Na nova cidade, voltei a viver com a Beta e papai, mas nunca vou esquecer Bella.


Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.