Somente à noite

Davi, olhe para cima!


— Nossa, que lindo! — era a voz de Conchito.

— É profissional? — reconheci a entonação macia e engraçada de Jeferson.

— Não sei. Mas está realmente IN.CRÍ.VEL!

— Onde será que ela mandou fazer isso, Bee?

.

— Posso saber o que as duas gralhas estão fazendo no meu quarto? — perguntei, ou melhor, gritei. Cruzei os braços e bloqueei a porta, impedindo a passagem, e meus dois amigos se assustaram, dando gritinhos agudos. Conchito pôs a mão no peito, fingindo um infarto, e Jeferson se abanou.

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— Ô, mania que essa garota tem de assustar os outros — Conchito reclamou. — Parece aquelas criaturas do além que aparecem atrás dos espelhos nos filmes de terror, cruzes!

— Vocês ainda não responderam a minha pergunta. O que estão fuçando aqui?

— Viemos atrás disto — Jeferson estendeu os braços e me mostrou que carregava meu cesto de roupa suja. — Maaas... acabamos nos deparando com isto e ficamos muuuuito admirados — ele apontou para a parede e percebi sobre o que falavam.

— Ah, isso — eu fiquei desconcertada e Conchito percebeu. — Não é nada.

Eu havia colado o desenho que Davi havia feito de mim na parede do meu quarto e agora os dois estavam olhando para ele feito bobos. Eu não podia negar que o desenho era simplesmente incrível, era como olhar para uma fotografia minha. Lembrei que Davi havia dito que o fizera depois de termos esbarrado no primeiro dia e fiquei pensando no porquê dele ter me desenhado quando nem me conhecia...

— É, e quem fez? — Jeferson perguntou, me tirando de meus devaneios ridículos.

— Um amigo.

— Que amigo? — Conchito se aproximou e sorriu, malicioso como só ele podia ser. — Aposto que foi o bofe de cabelos negros e olhinhos puxados — ele disse se referindo a Davi e corei.

— Já falei para você parar de dizer que ele é meu bofe! — gritei.

— Jeferson, alguém aqui disse que ele era o bofe dela? — Conchito zombou. — Eu só disse: aposto que foi “o” bofe, não o “seu” bofe. Se ele é o seu bofe ou não é você que está dizendo...

— Quem é o bofe de quem? — minha avó perguntou pondo a cara na porta e imaginei como seria lindo ser órfã, desamparada e viver na rua ao invés de passar o dia com um bando de gente doida e purpurinada. Eu amava minha família, mas isso não me impedia de me imaginar esganando cada um deles.

— Pelo amor de Deus, saiam daqui! — fui empurrando todo mundo para fora enquanto os três simplesmente riam de mim.

— Saquê e sushi são ótimos para curar a TPM — Conchito disse e bati a porta com força na cara dele. — Acho que você precisa comer comida japonesa para acabar com esse teu mau-humor! — ele gritou do outro lado da porta e minha avó gargalhou alto. Desejei no mesmo instante que naquele exato momento fosse iniciada a terceira guerra mundial e torci para que a primeira bomba caísse bem em cima da minha casa, explodindo tudo e acabando com todo mundo.

Mas é lógico que eu não tinha tanta sorte assim e por isso me conformei com meu triste destino. Respirei bem fundo para me acalmar e só depois é que comecei a rir, imaginado que em nenhuma outra casa a vida poderia ser tão boa e ao mesmo tempo tão maluca...

*

Não existe nada melhor do que um feriado em plena quarta-feira. Você pode dormir até tarde, recarregar as baterias e depois voltar para apenas alguns dias de rotina a mais antes de um ocioso fim de semana. É o paraíso dos preguiçosos e por isso a tarde de terça estava tão prazerosa, pois eu sabia que no dia seguinte não precisaria madrugar para ir para a escola.

Fiz um balde de pipoca amanteigada e fiquei sentada no sofá sem fazer nada, apenas esperando que a programação da TV melhorasse com o fim da tarde. Troquei de canal inúmeras vezes procurando algo decente para assistir, mas como nada me agradou relaxei e resolvi dar um cochilo.

— Anna, querida, suba aqui no palco comigo — Bryan Adams disse me olhando nos olhos e minhas pernas ficaram bambas. Ele estava com a mesma roupa apertada que usara no clipe de “Heaven” em 1985 e fiquei ainda mais apaixonada. Subi no palco enquanto ele me acompanhava com os olhos e enfim ficamos frente a frente.

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— Bryan, posso pegar nos seus lindos cabelos loiros? — proferi apaixonada e ele pegou em minha mão. Suspirei com o toque quente.

— Você pode fazer o que quiser comigo — ele respondeu em português, com sua voz rouca. — Mas para isso você terá que ficar presa para sempre aqui comigo nos anos oitenta.

— Com você eu fico presa em qualquer lugar — suspirei e ele veio em minha direção. Me preparei para receber o beijo dos meus sonhos quando de repente alguém gritou na plateia.

— Acorda, preguiçosa!

— Acorda, preguiçosa!

.

— Acorda, preguiçosa!

— Conchito, seu... seu... miserável! — eu proferi enfurecida ao perceber que ele havia atrapalhado o meu lindo sonho. — Como você ousa me impedir de beijar a versão jovem do Bryan Adams de 1985? — joguei um travesseiro nele, mas ele se esquivou.

— Garota, você é esquisita — ele disse. — Enquanto todas as meninas da sua idade estão apaixonadas por essas boy bands Starbucks com calças apertadas e coloridas você nutre essa paixão platônica por um cantor que sequer é da sua época. Vou marcar um psicólogo para a segunda de manhã. Melhor, vou marcar um psiquiatra.

— Falou aquela que escuta Xitãozinho e Xororó — respondi de mau humor. — Enfim, por que me acordou? Espero que tenha um bom motivo.

— Porque o seu celular não para de tocar no seu quarto!

Subi as escadas morrendo de raiva, amaldiçoando que quer que estivesse ligando para mim. Procurei o aparelho no meio da bagunça até que o encontrei embaixo de uma pilha de roupas limpas para guardar. Havia algumas chamadas de Andressa, outras de empresas de telemarketing, mas apenas uma chamou a minha atenção. Inesperadamente, Davi havia ligado para mim.

Geralmente nossas conversas eram estranhas e nunca falávamos de coisas normais, então fiquei apreensiva quanto a retornar ou não. Porém, antes que eu chegasse a alguma conclusão, o telefone tocou novamente.

— Como vai o seu pré-feriado? — Davi perguntou antes mesmo de dizer “oi”. Eu achava interessante isso, a maneira como ele não me cumprimentava. Mas parecia que ele fazia isso não por falta de educação, mas sim porque era desnecessário. Além do mais, geralmente quando se diz “oi” antes de falar algo acabamos ficando sem saber o que dizer.

— Uma bela duma porcaria — respondi e lamentei pelo sonho interrompido.

— Estava fazendo o quê? — Davi perguntou e notei que sua voz estava apreensiva.

— Vendo um documentário sobre a vida social e sexual dos coalas da Tailândia — brinquei e o ouvi gargalhar do outro lado da linha. — E estou muito deprimida por saber que eles se divertem muito mais do que eu.

— É, realmente os coalas estão bem melhor do que nós dois — ele respondeu e rimos. Esperei ele dizer mais alguma coisa, mas a linha ficou muda.

— Davi?

— Sim, Anna.

— Precisa de algo? — insisti e ele suspirou.

— Você vai fazer alguma coisa hoje à noite? — ele enfim perguntou, tão baixinho que eu tive que me esforçar muito para ouvir.

— Eu ia ver a migração dos coalas em busca de água para os seus filhotes. Mas se você tiver algo melhor para fazer não se esqueça de me convidar — falei e senti que ele parecia estar ganhando tempo para dizer o que realmente queria.

— Sobre o que conversamos aquele dia... quer dar uma volta comigo? — ele disse e não sei porquê mordi os lábios e fiquei sem saber o que responder. Respirei fundo antes de conseguir falar novamente.

— Claro — me peguei proferindo com uma alegria exagerada demais. — Aonde você gostaria de ir?

— Bom, acho que isso é por sua conta, lembra? — ele se desarmou e a conversa ficou menos tensa.

— É verdade — eu ri e ele me acompanhou. — Então, acho que já sei aonde vamos hoje. Que tal as oito?

— Onde?

— Isso você só vai descobrir quando chegar lá. Você sabe onde fica aquela praça perto da escola? Aquela que tem um coreto azul?

— Sim — Davi respondeu e agora a sua voz soava ansiosa.

— Me espere lá no horário que te falei. Tudo bem para você?

— Acho que sim.

— Mas não se atrase como da última vez, eu não sou uma pessoa tão legal quanto pareço ser — brinquei e Davi gargalhou novamente.

— Quanto a isso não se preocupe — ele respondeu. — Prometo ser tão pontual quanto um britânico.

— Acho bom, Davi — falei e ficamos em silêncio. — Bom, então é isso.

— É... — foi a única coisa que ele respondeu.

— Então tchau. Nos vemos daqui a pouco.

— Tchau, Anna. Até.

— Espere! — eu chamei antes que ele desligasse. — Obrigada pelo desenho que você fez de mim, ele é realmente incrível.

— Ah, não foi nada — sua voz voltou a ser tímida como no começo da ligação. — Que bom que você gostou.

— Eu adorei. Mesmo. Agora tchau, Davi.

— Tchau, Anna — ele desligou o celular e fiquei pensando em como as coisas podiam ser tão estranhas. De todos os garotos daquele colégio para eu me tornar amiga eu estava falando justamente com o que havia esbarrado comigo no primeiro dia. Inexplicavelmente, ele de algum modo havia ficado marcado na minha memória, e por isso acabei querendo me aproximar. Mas o mais legal de tudo é que agora eu sabia que também havia ficado marcada na memória dele. Aquele desenho que Davi me dera era a prova disso.

*

— Está atrasado — reclamei quando Davi se aproximou de mim. Eu já estava na praça desde antes das oito e ele havia aparecido quinze minutos após o combinado. — Essa sua pontualidade está mais para paraguaia do que para britânica.

— Desculpe — ele pediu. — Mas ao menos eu me esforcei. Não sou muito amigo dos relógios.

— Pois eu tenho uma doença seríssima chamada pontualidade. Porém, vou te dar um crédito hoje — pisquei e ele sentou ao meu lado no banco da praça. — E, por favor, tire esses óculos escuros. Você não precisa usar isso, pare de esconder seus olhos — reclamei e ele retirou os óculos lentamente. — Ótimo, assim você fica bem mais bonito — soltei e só percebi o que havia dito quando já era tarde. — E então, sua babá sabe que você saiu? — desviei o foco da conversa antes que eu dissesse mais alguma pérola.

— Sabe — ele respondeu, sorrindo. — Mas ela não é minha babá. É mais uma espécie de... uma espécie de cuidadora da família.

— Para mim continua sendo babá — brinquei. — Ela parece gostar bastante de você.

— A Maria é uma ótima pessoa — Davi completou. — Um pouco esquentada, mas ainda assim uma ótima pessoa.

— Deu para perceber. Eu fiquei morrendo de medo dela naquele dia... — continuei e Davi fez uma expressão divertida. — Ela soltou que você disse a ela que eu era legal, mas também bem doida. É verdade? — perguntei e ele ficou surpreso. Demorou um tempinho até ele responder.

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— É, é verdade.

— É verdade que você disse isso a ela ou é verdade que eu sou realmente legal, mas meio doida? — perguntei sorrindo e ele me acompanhou.

— As duas coisas.

— É bom saber. Agora vamos pegar o ônibus logo antes que fique muito tarde — levantei e Davi me seguiu.

— Sua avó deixa você sair assim sempre que quer? — ele perguntou e pela primeira vez pensei no assunto.

— Sim. A minha avó é super tranquila com isso. Acho que ela sabe que, apesar de não parecer, eu tenho juízo.

— Isso é muito legal, Anna. Sinceramente, eu adoraria ter uma família como a sua — Davi deixou escapar e fiquei pensando em como a vida é meio maluca. Era a primeira vez que eu ouvia alguém dizer isso para mim, dizer que gostaria de viver em meio a toda minha loucura.

— A grama do vizinho é sempre mais verde, Davi.

— Eu acho que a minha grama já morreu faz tempo — ele sorriu, mas notei que havia tristeza em suas palavras.

— Então está mais do que na hora de você começar a regar esse bagulho — devolvi. Não foi muito bonito, mas foi a coisa mais filosófica que consegui dizer no momento.

Não ficamos muito tempo no ponto de ônibus, pois logo a condução que eu esperava nos apanhou. Eu e Davi sentamos lado a lado e apenas ficamos em silêncio, observando as pessoas que pareciam ter muita pressa em ir para seja lá o lugar que fossem. A viagem durou cerca de quarenta minutos e cutuquei Davi quando chegou a hora de descer.

— É aqui? — Davi questionou e percebi que ele estava decepcionado ao ver que descêramos em um lugar feio e mal iluminado.

— Ah, sim. Com certeza. Porque eu andei todo esse tempo só para te trazer para o meio mato. Quer saber a verdade: conheci um cara na internet que disse que me pagaria muito bem se eu arrumasse para ele um garoto jovem e bonito. Ainda hoje você vai viajar para o exterior e ter os seus órgãos extirpados. Mas não se preocupe, vou avisar para a sua família. Vou dizer a eles que você fugiu e não quer ser encontrado, para que nem mesmo procurem o que sobrar — respondi e ele arregalou os olhos.

Davi ficou imóvel até eu começar a gargalhar.

— Davi, pelo amor de Deus, quando é você vai parar de acreditar nas bobagens que eu digo?

— Acho que ainda preciso me acostumar com esse seu jeito peculiar de fazer amigos — ele engoliu em seco e respirou novamente, para só então dar um discreto sorriso.

— Você tem razão. Mas sabe o que é? Acho que estou um pouco enferrujada no “quesito” fazer amizades. Agora venha comigo, ainda temos que andar muito.

Subimos por uma ladeira de terra de um pequeno bairro bastante humilde e por sorte havia muita gente na rua, pois ninguém precisaria acordar cedo no dia seguinte para trabalhar ou estudar. Davi estava quase se coçando de ansiedade e achei isso engraçado, ele parecia uma criança a caminho do primeiro dia de aula.

— Posso saber para onde você está me levando, Anna?

— Lembra que naquele dia que te encontrei perto da minha casa você disse que havia ido parar lá por engano, tentando na verdade chegar a outro lugar? E que tinha pegado a condução errada e por isso estava perdido por ali? — perguntei e ele arqueou as sobrancelhas.

— Sim, e o que isso tem a ver?

— Você estava tentando chegar até aquela velha ponte, aquela que fica no alto da cidade, não é? Aquela que você disse ter ouvido falar que tem uma visão incrível da cidade, principalmente nas noites de lua cheia. E que estava procurando o lugar porque queria buscar inspiração para os seus desenhos, estou certa?

— Sim, está. Mas por que você está se lembrando disso? Era só uma bobagem — ele perguntou meio envergonhado com as minhas afirmativas. Eu sorri.

— Davi, olhe para cima...

O garoto me obedeceu e imediatamente vi o seu rosto se iluminar. Sobre nossas cabeças brilhava uma lua cheia magnífica e imediatamente ele entendeu o que eu estava tentando dizer. Davi então olhou para onde estávamos pisando e só então se deu conta de que havíamos chegamos até a ponte que ele tanto procurara.

— Nossa, é incrível mesmo! — ele exclamou indo até o meio dela.

— Para mim parece uma ponte normal. — observei. — Achei que ficaria impressionada, mas não fiquei.

— Ué, você nunca veio aqui, Anna? — ele questionou ao detectar o meu espanto. — Se não, como soube nos trazer até aqui?

— Eu já vim aqui sim, acho que umas quatro ou cinco vezes com o Conchito para mandar consertar os sapatos que ele usa nos shows com um velho sapateiro que mora nessa área. Mas sempre viemos durante o dia e eu nunca havia subido até aqui, pois esse lugar me parece tão feio e mal cuidado que nunca julguei valer a pena — respondi olhando para o parapeito que estava todo roído e para a quantidade de lixo jogado nas extremidades. Além disso, a ponte apenas ligava um morro ao outro, não havendo nenhum atrativo ali que pudesse realmente chamar a minha atenção.

— É uma pena que esteja tudo abandonado dessa forma, pois estou muito admirado com a vista. Acho que por isso esse lugar está assim, porque as pessoas não prestam mais atenção nesses detalhes — Davi disse e admirei a sua sensibilidade.

— Sabe, Davi, eu nunca parei para analisar as coisas dessa forma. Acho que não sou sentimental o bastante para ver beleza nesse tipo de coisa, para dar a devida atenção que isso merece.

— Por quê?

— Porque eu já passei por muita coisa na vida, coisas que me tiraram essa percepção. Eu acabo sempre procurando coisas concretas e explicações concretas. Acho que essa porta se fechou faz tempo em mim.

— Então está mais do que na hora de você abrir novamente esse bagulho — ele me parafraseou e achei divertido. — Olhe para isso e não pense em nada, apenas sinta.

Me aproximei um pouco mais e fiquei ao lado dele, sentindo o vento bagunçar os meus cabelos, tocando friamente minha pele e me trazendo pequenos arrepios. Então, nós apenas ficamos ali, parados por quase uma hora olhando a cidade, o céu, a lua e tudo o que havia para ser olhado.

Foi como se eu tivesse aberto os olhos pela primeira vez.

— O que você acha agora, Anna?

— Você tem toda a razão, é realmente... incrível — concordei ao me deparar com a vista mais perfeita que eu já tinha visto na vida. A cidade embaixo de nós, toda iluminada, sendo engolida por um céu negro e com uma lua cheia nos saudando por entre as nuvens. Realmente parecia uma daquelas pinturas renascentistas cheias de detalhes. Foi um choque para mim ver algo tão banal por outra perspectiva. — Davi, o que fez você querer vir até aqui? Eu jamais ouvi qualquer pessoa falar sobre esse lugar ser legal.

— A Maria morava por aqui antes de ir trabalhar lá em casa. Ela me contou que esse lugar era muito bonito quando ela era jovem e me mostrou algumas fotos. Foi por causa dela que eu quis vir até aqui, eu queria dar um desenho de presente para ela — ele respondeu e eu achei a coisa mais fofa do mundo. Senti uma vontade louca de apertar as bochechas dele, no entanto imaginei como seria tosca essa cena. Balancei a cabeça afastando esse pensamento esquisito.

— Então você vai desenhar tudo isso? — perguntei me concentrando no horizonte.

— Pode apostar que sim. Eu adoro desenhar coisas bonitas — ele respondeu e me questionei se isso me incluía.

Passamos mais meia hora ali, sem dizer absolutamente nada, e só então me dei conta de olhar para o relógio.

— Nossa, está tarde. Acho melhor irmos andando — eu convidei ao perceber a hora. — Como você pode ver, o lugar é isolado. Podemos ser assaltados se continuarmos aqui.

Davi estava tão absorto com o ambiente que pareceu relutante em sair de lá. Descemos em silêncio até o ponto de ônibus e voltamos até a praça onde havíamos nos encontrado ainda sem dizer nada um ao outro, cada um de nós preso em seu próprio mundo de pensamentos. Somente quando sentamos novamente no banco da praça o silêncio foi quebrado.

— Obrigado por ter me acompanhado até lá, Anna. Pode parecer apenas uma besteira, mas foi algo realmente importante para mim.

— Não, não é besteira — eu devolvi. — Isso me fez pensar um pouco em mim mesma, em como eu me observo e vejo o mundo ao meu redor. Talvez seja isso que esteja faltando na minha vida, eu começar a ver a beleza das pequenas coisas, começar a ver o horizonte como algo a mais do que apenas o lugar onde o sol se põe. Obrigada digo eu, pois você me fez olhar uma ponte velha e feia com outros olhos — sorri para Davi e ele ficou um pouco vermelho.

— Nunca imaginei que pudesse fazer alguém pensar dessa forma — ele confessou.

— Eu também... Droga, Davi, você é uma péssima companhia. Por sua causa estou filosofando no meio da noite em um banco de praça — reclamei.

— Me desculpe — ele disse alegre.

— Não, tudo bem. Eu gosto de filosofia. Mas agora eu preciso realmente ir, o último ônibus para o meu bairro passa daqui a pouco e, além disso, estou morrendo de fome.

— Você não quer comer alguma coisa? — Davi perguntou quando levantamos. — Se você perder o ônibus eu te pago um táxi.

— Não é necessário, não se preocupe — recusei gentilmente. — Acho que preciso desse longo caminho para colocar a cabeça em ordem. Então, boa noite, Davi. Até outro dia.

— Boa noite, Anna. E obrigado mais uma vez. Até a próxima.

— Até a próxima — confirmei e virei as costas. Contei cerca de dez passos até ouvi-lo me chamar novamente.

— Anna!

— O quê?

— Não se esqueça de abrir aquela porta, ok? — ele proferiu meio envergonhado e eu cruzei os braços.

— Só se você prometer que vai começar a molhar a sua grama — respondi e segurei o riso. — Nossa, isso é muito idiota. E cafona.

— É, você tem toda razão. Mas quem disse que a vida não é idiota e cafona? — ele completou e gostei de saber que ele também pensava dessa forma. Então, apenas retribuí suas palavras com um leve sorriso e segui meu caminho sem olhar para trás.

Ao chegar em casa, deitei em minha cama e comecei a analisar tudo o que havia acontecido. Eu havia imaginado que estava ajudando a Davi, no entanto ele quem tinha me ajudado ao me fazer enxergar coisas que eu jamais havia enxergado antes. Era legal estar com ele, eu não ficava com medo de ser julgada e não precisava medir as palavras para fingir ser algo que não sou.

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Com Davi eu podia ser eu mesma, mesmo ele sendo um estranho em minha vida.

E isso era uma completa novidade para mim.