Somente à noite

Cenoura balançante


Anna

Quando os mais velhos falam sobre como é crescer eles sempre focam na parte que gostam de chamar de “aprendizado”, e por isso quando olham para alguém jovem como eu eles discursam efusivamente sobre o quanto eu ainda tenho que experienciar, descobrir, entender, experimentar, provar, praticar, sentir, apreciar, realizar e mais um monte de outros verbos – em todas as conjugações, tempos e modos – que irão me preparar para a tal da vida. Acontece que a maioria daquilo que a gente precisa saber ou se aprende somente na prática, o que deve ser um desastre, ou então, se a gente quiser ter o mínimo de teoria, tem que ter coragem e não possuir um pingo de vergonha na cara para enfrentar uma “aula” super informativa, porém não menos constrangedora e embaraçosa.

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E, embora haja muitos assuntos que o nosso cérebro precise absorver durante todo o tempo em que passamos por esse plano astral, há um em particular que com certeza todo mundo pensa... e...

Bom, sim. Eu estou falando... daquilo.

Não que eu não soubesse como as coisas funcionam, biologicamente falando, mas entre saber e SABER há bastante diferença. E como eu comecei a achar que não ia demorar muito até os meus hormônios adolescentes subirem para o meu cérebro e fazê-lo entrar em curto, respirei fundo e perguntei logo, sem enrolação.

— Então, Conchito, como foi a sua primeira vez?

Meu amigo primeiro ficou chocado, por isso parou a serra de unhas no ar e piscou umas dez vezes antes de perceber o que eu queria na verdade saber. E, ao contrário do que eu esperava, ele não fez nenhum escândalo ou qualquer alvoroço, pois simplesmente endireitou a coluna, sentou de maneira mais firme e deu três batidinhas ao seu lado, no colchão, indicando que eu deveria me aproximar. Nessa hora eu até respirei um pouco aliviada, pois já tinha me esquecido do quanto Conchito assumia um ar sério sempre que ele via que o assunto era importante e eu precisar realmente de alguém para conversar.

— Por que eu e não a sua vó? — Ele perguntou quando eu já estava ao seu lado e fiz uma careta.

— Você já se imaginou falando sobre “isso” com a sua avó, por mais descolada que ela seja? — Devolvi a pergunta e ele riu baixinho.

— Mas vocês sempre falaram sobre “isso”, Anna. — Ele repetiu, me imitando. — Qual o problema agora?

— Então, Conchito... Não é que a gente não tenha falado sobre “isso” antes, mas é que... parecia um assunto hipotético na época, sabe? Mas agora que está um pouco mais perto da realidade não é a mesma coisa... falar com ela sobre, entende? — Completei e vi que ele tentava rir por debaixo da máscara de pai/amigo/confidente.

— Mais perto da realidade? O que você quer dizer com isso? — Ele se fez de inocente.

Eu então acabei contando para Conchito sobre o meu amasso com Davi no portão, na noite anterior, e em como foi difícil não arrastar ele escada acima até o meu quarto. Contei muitas outras coisas também, mas em nossa conversa a gente focou principalmente na questão sentimental, ou seja, em como eu estava me sentindo emocional e fisicamente, e meu amigo foi super compreensivo e fofo. Foi uma conversa muito legal e agradável, e estranhamente não tão vergonhosa como eu imaginei.

Depois que acabamos fui para o quarto fazer o dever de casa, e assim que o relógio mostrou que era quase hora deles saírem para a boate eu desci para me despedir de vovó. Porém, notei uma reuniãozinha na mesa da cozinha e quando vi que eles pareciam muito desconfiados eu já imaginei o que aconteceria.

Mas é óbvio que a minha família jamais iria deixar uma conversa sobre sexo ser natural, normal e privativa.

— Seu. Filho. De. Uma. Égua! — Eu fuzilei Conchito com os olhos e ele fingiu que não era com ele. — Eu não pedi para você manter o nosso papo em sigilo? Puta que o pariu, hein? Um dia, eu juro, por tudo o que é mais sagrado, eu ainda perco o juízo e corto a porra da sua língua com uma faca quente!

— Em primeiro lugar, olha essa boca! Rumm, vou já lavar ela com sabão. — Vovó me ralhou e isso só aumentou a minha frustração. — E segundo, a culpa não foi dele. — Ela, belíssima, calmíssima e arrumadíssima, como sempre, defendeu o amigo e sorriu. — É que deu para ouvir tudo sem querer. Tudinho mesmo!

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— E desde quando a senhora é dada a mexericos como uma vovozinha? — Provoquei. — Francamente, hein, Sarah Fernandes, nunca imaginei isso da senhora. Que vergonha!

— Olha, a porta estava aberta, vocês falam muito alto e eu não estava dormindo àquela hora como vocês achavam, mas sim pintando as unhas. E não tenho nenhuma responsabilidade pelo fato de as paredes dessa casa serem finíssimas. — Riu. — Por isso deu de saber tudo o que falavam. Involuntariamente, claro, mas isso é algo muito importante. — Ela agora parecia querer chorar e me senti patética.

— E se vocês já ouviram tudo o que tinham para ouvir qual o motivo da reunião, queridos parentes e amigos aqui presentes que eu amo tanto que os sufocaria com todo o meu amor e um travesseiro?

— Aula prática! — Foi Conchito quem gritou, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e eu quase infartei quando Sarah me jogou um pacote de camisinhas e Jeferson puxou, sabe-se lá de onde, uma cenoura e ficou balançando ela animadamente na minha cara.

— Gente, pelo amor de São Longuinho! O que vocês pensam que estão fazendo! — Reclamei, mas fizeram eu me sentar e palestraram durante meia hora sobre tudo o que achavam que eu deveria saber, e eu me perguntei se todo mundo passava por isso ou era só eu. Então tive que ficar lá ouvindo tudo o que tagarelavam, sem filtro, e só me liberaram depois que eu consegui vestir a pobre cenoura corretamente com o preservativo.

Na próxima vida eu quero voltar uma planta, Senhor!

— Viu, é fácil! Ai, nunca pensei que esse momento um dia chegaria. — Conchito parecia emocionado e eu mostrei o dedo do meio para ele.

— Vocês poderiam fazer a gentileza de sair logo de casa para que eu possa ir ali rapidinho me afogar em um balde, faz favor? Sinceramente eu não quero ver a cara dos três pelos próximos duzentos anos se for possível! E depois dessa também quero avisar logo que trocarei de sobrenome e me mudarei para o lugar mais distante que existir na face desta terra para que vocês nunca me achem, seus doidos varridos!

— Ah, para de drama. Pelo menos se você aparecer aqui de barriga nunca vai poder dizer que não sabia de nada. — Jeferson parecia uma hiena rindo da minha cara, e eu só não puxei o cabelo dele porque estava protegido por uma daquelas redinhas apertadas que ele colocava antes de botar a peruca. — Informação é tudo, mana! Você é privilegiada!

— Ele tem razão, Anna. Na minha época a gente não sabia de nada e ninguém falava sobre nada. Um horror. Se eu soubesse só dez por cento do que vocês sabem hoje eu... — Vovó parou, tentando não pensar no passado. — Além do mais eu não tenho idade para bisnetos não, sou muito nova para isso. Credo! — Vovó disse enquanto retocava o batom vermelho para se recompor e eu não sabia se eu ria por conta da situação, se agradecia pelo empenho deles, ou se continuava fula da vida pela invasão de privacidade.

— Tá bom, ok, se é para deixar vocês tranquilos eu aceito o que estão fazendo, por mais que eu precise ir ao psiquiatra depois. — Tentei fazer a séria, mas acabei quase rindo, e com isso perdi qualquer credibilidade com eles. — Então borá ensaiar! Se é isso que vocês querem, passem essa cenoura para cá! — Acabei com o resto de dignidade que eu tinha e todo mundo gargalhou, inclusive eu.

E no final, por pior que tenha sido, até que nem foi tão ruim assim.

*

Eu pensei que após a fatídica aula de educação sexual que fui obrigada a ter em casa eu não conseguiria olhar para Davi nunca mais na minha vida por conta daquela vergonha horrível que só a gente sabe e sente no nosso interior. No entanto, devido à cenoura balançante, no momento em que coloquei os olhos sobre Davi, na escola, me veio uma vontade tão grande de rir que pus força demais para segurar e acabei colocando para fora todo o suco que estava na minha boca por um dos buracos do meu nariz.

Foi uma cena linda.

— Você está bem? — Meu namorado perguntou, e quanto mais eu olhava para ele mais suco saia. Demorou uns minutos até que conseguir me conter, pegar um lenço de papel e finalmente limpar a minha cara, e enquanto isso ele ficou passando a mão suavemente de cima para baixo nas minhas costas, o que não ajudou muito com a situação.

— Sim, estou. — Respondi meio engasgada, meio tossindo. — Fui dar um gole e respirar ao mesmo tempo e deu ruim. — Menti e ele acreditou. — Mas e você, tudo bem?

— Indo. — Davi respondeu, mas não parecia mais tão triste quanto antes. — Ainda estou me acostumando com essa nova vida. Sabia que meu pai vai me levar ao estádio para ver um jogo à noite, na semana que vem? A gente já comprou camisas e tudo.

— E desde quando você gosta de futebol?

— Pois é, para você ver. Me descobri um grande torcedor esses dias, acredita?

— Credo! Que coisa hétera! — Fiz graça e ele riu, para depois me dar um abraço daqueles bem apertados. Coloquei então a minha cabeça bem encaixada no pescoço dele e fiquei lá, sentido aquele cheiro que eu tanto gostava.

— O que foi? — Davi perguntou quando percebeu que eu tinha ficado quieta demais. — Algum problema?

— Aquilo que você me disse é mesmo verdade? — Perguntei. Embora já soubesse a resposta, que ele me amava, eu só queria ter a certeza mais uma vez.

— Cada palavra, Anna. Sem tirar nem pôr.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Hummm, tá bom, então.

— Hummm, tá bom, então? — Ele repetiu a minha frase, rindo.

— É. Hummm, tá bom, então.

— Achei vocês! — Andressa apareceu do nada, feito uma fada do bosque, e logo começou a tagarelar. Apesar de quebrar o clima eu achei a chegada dela muito bem vinda, pois meu coração estava meio dolorido de que um jeito que eu não sabia explicar.

— Melhor irmos logo, o professor de geografia está com um péssimo humor hoje, dá até medo só de olhar! — André veio no encalço da minha amiga e eu mal tive tempo de dar tchau a eles e dar um beijo em Davi antes dos três saírem correndo para as suas salas. Como esse meu primeiro tempo estava livre eu decidi ir para a biblioteca, o meu refúgio, para não somente esperar dar a hora de entrar como também para pensar um pouco sobre todas as mudanças que a minha vida tinha passando no último ano. Se alguém me contasse como seria eu jamais acreditaria.

Assim como se alguém me contasse o que iria acontecer em seguida eu também não teria como acreditar.

Quando cheguei, havia alguém sentado no chão da biblioteca, com a cabeça baixa, os braços em torno do corpo e parecendo chorar bastante. Fiquei apreensiva e já ia dar meia volta quando percebi que era uma garota toda vestida de rosa.

Só podia ser a Patrícia.

Eu sabia que não era da minha conta, mas infelizmente a minha criação boa e maravilhosa cheia de pessoas amorosas fez de mim uma bobona, e eu não ia sossegar até saber se a menina estava bem, mesmo ela sendo a criatura em questão. Me aproximei devagar e demorou um tempinho até ela perceber que eu estava lá.

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— Você está bem, Patrícia?

— Não é da sua conta. Me deixa em paz.

— Eu não pedi para você me contar nada, eu perguntei se você estava bem. Então, você tá bem? Tá machucada? Com dor? Precisa de alguma coisa?

Ela deu uma risadinha irônica.

— Desde quando alguém como você se preocupa com alguém como eu, Anna? — Patrícia disse meu nome com arrogância.

— Depende do que você quer dizer com isso. — Eu logo perdi a paciência e sentei ao lado dela, que ficou espantada. — Eu estou aqui para ajudar, juro. Depois a gente quebra o pau lá fora, mas primeiro temos que resolver isso aqui. — Eu fiz um movimento circular com as mãos, dando ênfase ao estado lamentável dela, e ela fez uma careta. Fizemos uma pausa... — Então, o que significa o que você disse, sobre alguém como eu se preocupar com alguém como você?

— É que eu sempre achei que você não era do tipo que se importaria com a garota no chão. — Ela disse, meio triste, meio dramática. — Ninguém gosta de mim. — Confessou em seguida, olhando para o nada, e mais lágrimas caíram.

— Ah, por favor, garota. Que história é essa? Você já se olhou no espelho? Você é tipo o ser mais bonito dessa escola, toda vez que você passa o povo baba, e tem sempre alguém ao seu redor. E você sabe disso que eu sei. Por que então está dizendo isso agora?

— Você acha mesmo que sou bonita? — A vaidade dela falou mais alto e eu ri. Ela percebeu e riu um pouco também. — OK, ok. É só que... eu briguei com a minha prima hoje, e ela me disse que eu era fútil, vazia e que iria morrer sozinha.

— E você é? E você vai? — Questionei a opinião dela sobre as opiniões alheias.

— Não entendi, Anna. — Dessa vez meu nome soou natural.

— Como você se vê? Você realmente acha que é fútil e vazia e que vai morrer sozinha?

— O que você acha? — Ela perguntou de volta.

— Olha, sendo sincera, eu não gosto de você e não vou com a sua cara. Sim, tem momentos em que eu adoraria empurrar você escada abaixo, mas isso não é da sua conta. Tipo, o que eu penso de você não tem que te afetar. Eu não estou na sua pele, não pago as suas contas... O que importa é só a maneira como você se vê. A gente nem sempre se dá bem com todo mundo e agrada todo mundo. Mas é assim que é a vida.

— Nossa... — Ela respirou fundo, meio confusa. — Você é sincera mesmo. E tá vendo como eu tenho razão? Você também me odeia.

— Não, garota, não te odeio. Essa palavra é muito forte. E mesmo que eu te “odiasse” você não deveria se abalar com isso, porque você tem que se amar e tacar o foda-se para o resto. Você disse que ninguém gosta de você, mas eu não acredito, tenho certeza que tem alguns doidos por aí que te acham uma pessoa legal. E sobre morrer sozinha, garota, a gente nem envelheceu ainda, isso é uma coisa muito besta para se pensar. A vida não é tão curta como falam.

Ela ficou um tempo calada, apenas respirando para se acalmar. Então enxugou as lágrimas e me olhou nos olhos.

— Eu também não gosto de você. — Ela fungou.

— Eu sei. — Gargalhei. — E sabe qual a melhor parte? É que eu não me importo nem um pouco com isso, porque daqui a pouco vou ver meu namorado, abraçar os meus amigos e conversar com a minha família. Tá vendo? Você devia fazer o mesmo que eu. Foque nas coisas importantes e esqueça o resto. Simples assim.

— Você não bate bem da bola, não é? Tão estranha... — Ela ofendeu, mas eu realmente não liguei.

— Olha, quer um conselho? O seu problema não é você em si, mas o fato de você ser uma escrota de vez em quando. Se você deixar isso de lado e tratar os outros bem, o resto não importa, porque quem te amar vai ter que te amar do jeito que você é. Além disso, para de correr atrás do André e olha para o Fábio, ele é amarrado em você e enquanto isso você fica por aí enchendo o saco da Andressa sei lá por quê. Também pare de viver tentando agradar só quem te interessa, usando essa aura falsa, menina. Faça tudo por você, mas não seja tão perfeita, pois ninguém é. Se entregue aos amigos, seja legal com eles. Descubra quem você é verdadeiramente. E se ninguém gostar disso, bom, problema deles. Agora levanta, limpa essa cara e vai retocar essa maquiagem que você tá um belo bagaço!

Ela respirou fundo e me obedeceu, vasculhando a sua bolsa atrás de lenços, espelho e outros aparatos. Eu fiquei lá vendo ela se ajeitar, passar gloss, rímel, pentear o cabelo e alisar o vestido. Então, quando ela acabou, disse:

— Por que você fez isso? Por que me ajudou depois de tudo?

— Como você disse, eu não bato bem da bola. — Repeti a frase dela.

— Humm, obrigada então. Eu acho. Você foi bem grosseira, mas até que valeu. Foi inusitado, nunca imaginei que um dia receberia conselhos seus. Mas até que você tem razão. Em algumas partes, somente, né? — Patrícia riu, bem princesa, voltando a ser a jararaca de antes. — Melhor eu ir, tenho coisas a fazer — Ela começou a arrumar a bolsa e então parou e me olhou. — Te vejo por aí, miga? — ela disse, só para me provocar.

— Por favor, não exagera. Se você pisar na bola ainda vai se ver comigo, miga. Agora vaza daqui que esse lugar é meu!

— Ai, que bruta! — Ela foi saindo, meio brava, meio rindo. — Por cinco segundos cogitei ser sua amiga, sabia?

— Vai sonhando! — Respondi e acho que a ouvi falar um palavrão quando já estava longe.

Depois que ela se foi eu fiquei pensando no quanto a vida gosta de nos proporcionar momentos curiosos. Todos os dias acontecia algo novo na minha e eu realmente estava sempre experienciando, descobrindo, entendendo, experimentando, provando, praticando, sentindo, apreciando e realizando alguma coisa. E no final das contas ter sido boa com Patrícia fez eu me sentir bastante orgulhosa de mim mesma, porque talvez esse fosse indício claro que sim, eu estava crescendo.

E isso dava também muito, muito medo.