Capítulo 4

Fechámos a loja. Esperámos o alarme dar os três apitos característicos para nos deixar ir para casa descansadas. A minha gerente olhou para trás.

—Posso ajudá-lo?

Alarmada, olhei para trás.

—Não, está tudo bem.

Sorri. Lá estava ele, com um sorriso calmo e com aquele brilho de novo nos seus olhos que faziam o meu dia iluminar-se.

—Está tudo bem – assegurei à minha gerente. – É um amigo.

Ela sorriu para mim.

—Está bem, então. Até amanhã, Clara.

—Até amanhã – disse e vi-a ir-se embora antes de me aproximar dele. – O que estás aqui a fazer? O segurança nem devia de te ter deixado ficar a esta hora.

—Ele é meu amigo – encolheu os ombros e tirou da sua mala um saco de papel do Starbucks. – Com fome?

—Oh, céus, sim – peguei no saco e tirei a cookie de lá. – É melhor irmos antes que ele pense que já saímos do centro comercial.

Começámos a andar, e eu fiz questão que fosse num passo apressado para poder apanhar o último metro para poder apanhar o último comboio da noite.

Passei pelo segurança e acenei. Era sempre o mesmo, todas as quartas.

—Até amanhã, João – disse ele e o segurança acenou porque estava a falar ao walkie-talkie.

—Amanhã também trabalhas a estas horas? – indagou ele, um pouco revoltado com a situação.

—Já te expliquei a situação, não é como se tivesse escolha.

—Há sempre uma escolha – retorquiu.

Revirei os olhos, descendo as escadas para o metro.

—Onde vais? – perguntou, no topo das escadas.

—Para o metro.

Negou com a cabeça.

—Nem pensar. Anda.

—O quê? Ouve…

—Eu trouxe o carro – disse ele e demorei um momento para perceber o motivo para ele ter trazido o carro.

Dei uma dentada na cookie, olhando para ele, emocionada e altamente agradecida. Voltei a subir as escadas e ele pegou na minha mão livre, dirigindo-me para o parque de estacionamento que ficava ao lado do centro comercial.

—Achavas o quê? Que eu ia deixar-te ir sozinha para casa? Nem pensar.

—Obrigada – disse, quando ele abriu a porta do pendura para eu entrar. – E eu não quero dizer apenas sobre a porta. Ou a cookie.

Olhei para cima, para os seus olhos. Estava sério e atento ao que dizia.

—Eu…

—Vá, não nos vamos demorar – disse ele, afastando-se de mim e foi aí que percebi que involuntariamente o meu corpo tinha-se aproximado do dele demasiado. – O tempo está frio.

Baixei a cabeça, envergonhada com o meu comportamento e postura. Eu parecia uma velhinha rabugenta que num momento está feliz e no outro está a reclamar da vida. Mas ele era uma âncora, sempre estável, sempre ali, não importava a maré.

Ligou o carro e pediu para eu colocar a morada da casa no GPS dele. Assim o fiz enquanto terminava de comer a cookie. Estávamos ambos em silêncio, com o rádio a tocar uma música suave num volume baixo.

Foi uma hora altamente traumatizante e talvez a mais longa de sempre. A tensão crescia entre nós a um ritmo avassalador e eu sabia que ele também sentia isso, pelos seus movimentos bruscos quando precisava de mudar as mudanças ou o movimento do braço, rápido e feroz entre o volante e a maçaneta das mudanças. Olhei para ele, tentando perceber se algo estava de errado, mas havia uma fúria nos seus olhos sempre que outro carro se cruzava connosco ou uma luz entrava no carro e iluminava o seu rosto por segundos.

Parámos na porta da minha casa. Ele deixou o carro ligado para manter o aquecimento ligado e a rádio ligada.

—Obrigada pela boleia – murmurei, com lágrimas de frustração a crescer a cada segundo. Isto tinha sido humilhante.

—Não – pegou no meu pulso, antes de eu ter coragem de abrir a porta do carro. Lá estava outra vez aquele brilho nos seus olhos que eu tanto amava. Eu amava? Sim, esse era o verbo certo, apesar de, muito provavelmente, ele ainda não ter percebido. – Eu só não gosto quando não alargas os horizontes e vês que podes dizer não. A tua irmã não te está a tratar corretamente e isso não é justo, tanto para ti como para ela, porque estão ambas a viver num limbo que é uma mentira.

—Não… - tentei tirar o meu pulso do seu toque, sentindo-me já suficientemente humilhada por aquele silêncio de partir a faca e agora por ele me estar a dizer as verdades na cara, como um estalo. – Larga-me.

—Não – afirmou ele. – E isto sou eu a dizer não.

Olhei para ele, furiosa. Como é que ele se atrevia a não me deixar ir? A minha visão começou a ficar turva. Estava a chorar de raiva e tristeza.

—Larga-me! – exclamei. – Deixa-me ir.

Puxou o meu pulso com firmeza mas gentilmente para junto dele e abraçou-me. Congelada pelo momento, não soube o que fazer de imediato, então deixei que ele me abraçasse.

—E agora? Ainda me queres dizer não?

Neguei com a cabeça. As lágrimas começaram a desaparecer dos meus olhos, lentamente. Retribuí o abraço, relutante e desajeitadamente, uma vez que estávamos num carro.

Sem notar o tempo passar, quase adormeci nos seus braços. Ele pareceu notar e desfez o abraço.

—Agora é que te deixo ir – disse ele, tentando sorrir.

—E se eu não quiser? – a minha voz estava rouca, talvez pelo nó que ainda estava na minha garganta devido ás lágrimas que não tinham saído mas que deviam.

Isso iluminou-lhe o rosto, como se fosse uma lâmpada que tivesse acabado de ter uma ideia.

—Então fica – disse ele. – Podemos passar a noite toda no carro, eu não me importo.

Ri. Ele estava realmente disposto a isso.

Desligámos o carro e colocámos os bancos de trás para baixo. Ele tinha uma manta, destinada aos seus irmãos, disse-me, e colocámo-nos debaixo dela, debaixo das estrelas mas com o teto do carro a tapar-nos parte da vista.

***

—E depois começámos a falar, mas se me perguntares do que falámos, lembro-me de muitas poucas coisas. A única coisa de que eu me lembro é de como aquele sorriso deu-me uma esperança nova.

Ela acenou, parecendo compreender o que eu queria dizer com a esperança. No fundo esperava que ela percebesse que, durante aquele tempo, ela causou uma ferida profunda e só ele é que foi capaz de a ir reparando à medida que ela feria mais um pouco. E ele ia remendando.

©AnaTheresaC