Wander se aproximou lentamente da garota de cabelos negros e tocou seu ombro direito apenas com as pontas dos dedos a fim de não assustá-la, mas ao mesmo tempo chamar sua atenção. Aquela voz tão suave era maravilhosa e única... A mais incrivelmente melódica que o rapaz ouvira em toda a sua vida. Seus lábios rosados; de perto, pareciam querer brilhar sob a gentil luz do luar. A moça abriu os olhos e fitou o caçador de canto pouco antes de virar seu rosto para o mesmo. Com sua boca semi aberta e uma expressão neutra, ela parecia vasculhar as profundezas da alma de Wander. Naqueles poucos instantes, o rapaz reparava em cada detalhe do rosto da garota. Os dois pareciam se deleitar com a aparência um do outro enquanto pensavam sobre quem poderia ser a pessoa diante de seus olhos, e por um momento, foi como se o tempo houvesse parado junto com a canção... Até que a donzela se assustou e caiu para o lado, usando as pernas para se impulsionar para trás. Aquela expressão de profunda serenidade mesmo após ter sido interrompida tão de repente por um estranho, havia sido tomada pelo olhar amedrontado de uma jovem com muito a temer. A reação havia demorado demais a acontecer; os dois passaram longos segundos olhando um para o outro, e por isso o caçador ficou confuso após a moça se afastar tão repentinamente.

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— Perdão... Tenha calma. Não vou te machucar... — Afirmou o ruivo enquanto caminhava na direção dela um pouco curvado para frente. A sensação de antes; aquela de estar diante da moça mais bela do mundo, havia sumido. O repentino olhar desesperado; como se a cada instante buscasse uma saída sem sucesso, era incômodo para Wander. Não bastou mais do que poucos instantes para que ele se sentisse um tipo de monstro.

Ainda que o caçador não demonstrasse ameaça alguma, ela se encontrava assustada como se o mesmo fosse um predador. Arrastava-se para trás usando os pés e as palmas das mãos sem dizer qualquer palavra. A partir do momento em que sua canção fora interrompida, sua voz se extinguira completamente. Pelo olhar, seria possível dizer que ela queria gritar por socorro... Wander não estava armado, e muito menos tinha uma aparência ameaçadora. Por alguma razão além do óbvio; no caso, estar fora de Eelry sem permissão, aquela garota temia encontrar outra pessoa naquele lugar.

Quanto mais ela se afastava do ruivo, mais próxima das bordas da colina chegava, até o ponto de estar inclinada para trás e com os cotovelos sobre a grama. — C-Cuidado! — O jovem caçador disse enquanto se aproximava rapidamente da garota de branco, fazendo com que a mesma colocasse um dos braços na frente do corpo e dobrasse suas pernas para perto da barriga.

Num instante os dois estavam ao lado da grande árvore, e no outro, rolavam colina abaixo enquanto suas vestes se sujavam de terra e grama. Wander instintivamente segurou o pulso da jovem, que graças a um susto que para a maioria seria visto como previsível, acabou se deixando levar pela gravidade ainda mais do que antes. Ele a abraçou, e os dois começaram a girar numa fração de segundo, rumando até a floresta que rodeava a colina. Tudo aconteceu rápido... Como estava de olhos fechados, Wander não conseguia saber onde haviam batido, mas sentiu a cabeça e as costas acertarem algo duro e de superfície irregular. A dor acima da nuca era aguda, e fazia querer encolher-se até não existir mais. Seus ombros estavam enrijecidos, e num momento, a coluna parecia estar sendo cortada por dentro, voltando ao normal em seguida. Talvez houvesse sido um erro tê-la assustado daquela maneira... Considerando que a garota provavelmente estava na mesma situação que o caçador, seria natural que ela entrasse em desespero ao ver outra pessoa. Se sair de Eelry à noite era proibido para homens, para uma jovem moça tratava-se de um tabu. Isso imediatamente criou um profundo arrependimento no rapaz; ainda maior depois da queda.

— Ah... Mas que... Maldição... Agh, minha cabeça...! — Wander resmungou em voz baixa enquanto tocava na região acima da nuca. Ardia... Certamente havia se ferido depois daquele impacto. Mais meio metro de distância percorrido, e teria quebrado o nariz ou coisa pior, já que neste caso bateria com o rosto.

Quando o rapaz abriu os olhos, pôde ver mesmo no escuro que ainda estava abraçado à garota de vestido branco, esta que subitamente havia perdido a consciência. Seu rosto tão de perto era ainda mais lindo... Mas embora os olhos do caçador estivessem o agraciando, uma preocupação o atingiu como uma flecha envenenada no peito. Aquela situação havia sido sua culpa, e este era um fato inegável. Será que ela havia se ferido? Será que também batera a cabeça? E se fosse algo grave...? É verdade que o desespero e a culpa são fraquezas do homem... Mas haveria como condená-lo por sentir algo assim? Ás vezes somos bons demais em pensar no que pode acontecer de pior... Mas isso não reflete nosso melhor lado?

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— Ah... Não, não...! — O jovem caçador começou a se levantar, agachando assim que possível. Suas pernas estavam bem, mas a região acima da cintura parecia ter enrijecido com seus ombros. Ao poder enfim verificar o corpo inteiro da garota, constatou que ela não havia se ferido abaixo do pescoço. — Oh... O que foi que eu fiz...? — Perguntou-se ele enquanto virava a cabeça da moça e tocava em seu couro cabeludo com a mão direita, checando se não havia qualquer ferimento grave. Após alguns segundos, Wander constatou que a jovem apenas apagara com a queda.

Aliviado, o caçador caiu para trás e encostou-se na árvore em que havia batido. Se não fosse por seu corpo, ela provavelmente teria sofrido todo o impacto. Quando o rapaz olhou para sua mão esquerda, viu uma quantidade considerável de sangue nas pontas de seus dedos. Aquele era de sua cabeça, com certeza. Não havia tocado diretamente na cabeça da jovem usando aquela mão. Isso era preocupante, mas por alguma razão deixava o ruivo aliviado. Significava que apenas ele tinha se machucado quando rolaram colina abaixo.

Algum tempo se passou. Minutos que para a garota serviam como uma silenciosa cura para seu susto, mas que para Wander eram como um tormento que parecia inacabável. Após pegar a jovem em seus braços, o caçador colocou-a delicadamente um pouco mais distante da escuridão; onde a luz do luar poderia iluminar sua pele clara. Ali ele seria capaz de enxergá-la com mais facilidade, e não haveria o risco dela ser atacada por algum animal enquanto estava desmaiada. Certamente Wander teria ao menos a chance de protegê-la, e esta era a sua principal intenção após ser o responsável por aquele breve estado de sono. Após isso; sempre com os ouvidos e olhos atentos aos arredores, o ruivo arrancou um pequeno pedaço de sua roupa e usou para limpar o sangue atrás da cabeça. No começo a dor era altamente incômoda, mas com o tempo ia desaparecendo junto da tensão do acidente. Em sua mente, Wander culpava a si mesmo... Mas como sabia que lamentar não o tiraria daquela situação, o jovem decidiu sentar-se e refletir sobre seu erro para que não ocorresse novamente, prestando bastante atenção na floresta e em qualquer sinal de vida diante de seus olhos. Agora só restava aguardar que a garota de branco acordasse para poder se desculpar...

Quando menos esperava, Wander viu a moça abrir os olhos lentamente. Seu coração bateu mais forte; como se tivesse sido espremido, assim como um pano molhado é após uma longa lavagem. A jovem usou o braço direito para se apoiar e curvou-se para frente, colocando a outra mão na cabeça. Não só parecia confusa, mas também dolorida. O rapaz havia ajudado bastante durante a queda... Seu corpo recebeu quase todo o impacto, mas infelizmente ela ainda havia rolado toda aquela distância; e para piorar, com peso extra em cima. Após um breve momento refletindo sobre onde estava e o quê havia acontecido, a garota virou seu rosto lentamente para a esquerda e depois para a direita, enfim encontrando o estranho que havia visto mais cedo. Embora parecesse surpreso por seu despertar, ele a encarava com uma seriedade indescritível em seu rosto.

— Você deve estar confusa... Desculpe se te assustei. Não foi a minha intenção... — Wander disse com uma calma quase absoluta. Se estivesse em pé, suas pernas estariam tremendo. Uma vontade quase incontrolável de morder os lábios o atingiu subitamente quando a garota acordou, mas ainda assim, o ruivo mantinha o controle. Se estivesse sereno, talvez ela também acabasse ficando.

A garota de branco segurou um dos ombros e manteve os braços diante do busto. O caçador notou a timidez e o medo dela quando suas pernas se reclinaram para trás. A jovem estava um pouco trêmula; assim como ele... Mas por uma razão bem diferente. Os dois ficaram olhando um para o outro por alguns segundos. Wander mantinha seu olhar sério e calmo... Enquanto por dentro queimava numa culpa imensa. A jovem parecia querer se levantar e correr; sair dali o mais rápido possível... Mas seu receio era bem mais forte.

— Q-Quem... Quem é você...? — De repente indagou ela, ainda retraída. Sua voz era suave como uma brisa da manhã...

— Sou um caçador de Eelry... — O rapaz respondeu, se levantando com um pouco de dificuldade em seguida. Ainda sentia algumas dores pelo corpo, embora tivesse melhorado bastante depois de descansar sentado ao pé da colina. Como seria de se esperar, a garota de branco se arrastou levemente para trás; assustada pelo movimento repentino do ruivo. — N-Não precisa ter medo... Não vou te machucar. — O caçador tentou dizer a ela de modo convincente. — Também estou aqui sem que os outros saibam. — Completou ele, ainda um pouco distante da donzela.

A garota de branco fitou Wander de cima a baixo. Como se estivesse analisando cada acessório e peça de roupa que o rapaz vestia, ela encarava seus adornos e as marcas de seu manto com bastante atenção. Seu olhar receoso mudou para uma expressão de tristeza assim que os olhos da jovem foram de encontro com o pano sujo de sangue numa das mãos do ruivo. — Você se machucou... — Disse ela num tom quase inaudível.

— Uhm...? — Wander olhou momentaneamente para o pano em sua mão esquerda e abriu um sorriso. — Isso? Ah, isso não foi nada! Como foi um impacto mediano não sangrou muito. Poderia ter sido bem pior se eu estivesse sozinho. O peso de nós dois juntos deve ter reduzido bastante a...

Antes que pudesse ter a oportunidade de terminar sua frase, o jovem caçador notou que a garota estava com uma das mãos na frente do rosto; com os olhos brilhando graças às lágrimas que ameaçavam cair. — I-Isso foi... Culpa minha... Se eu não tivesse caído, você...

O ruivo subitamente mudou a expressão em seu rosto. Acabou sendo pego de surpresa com a reação dela. — Não foi culpa sua... — Afirmou ele enquanto caminhava até a garota, se abaixando assim que chegara perto o bastante. Agora ela já não estava mais com medo de sua presença, mas sim aflita por conta do que aconteceu. Afinal... Aquele estranho a havia protegido sem hesitar. — Acidentes acontecem, certo? — Disse Wander, sorrindo levemente. Vê-la segurar o choro daquele jeito o trazia uma sensação péssima por alguma razão desconhecida... Tentar acalmá-la fora uma decisão meramente impulsiva. — O erro foi meu em chegar daquele jeito... Me desculpe. — Completou ele, abaixando a cabeça.

A garota tirou a mão da frente da boca e por alguns segundos permaneceu em silêncio. Tinha um olhar triste... Mas este logo fora tomado por um semblante de profunda gratidão. Seus dedos delicadamente viajaram até o rosto do rapaz, que levantou a cabeça surpreso. Apesar de estar com os olhos levemente molhados, ela continuava belíssima... Tendo-a tão perto de si; mas agora acordada, Wander sentiu um frio na barriga que nunca antes havia presenciado.

— Obrigada... Por me proteger. — Agradeceu a garota, não mais trêmula e amedrontada. Suas sobrancelhas arqueadas para cima demonstravam um alto nível de emoção... Como se ela nunca antes tivesse sido protegida por outra pessoa como Wander havia feito mais cedo. Como se pela primeira vez alguém tivesse se importado com sua segurança...

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Os dois coraram. Ao perceber que sua respiração estava ficando ofegante, o rapaz virou a cabeça para o lado ao mesmo tempo em que a jovem donzela tirou a mão de seu rosto, também desviando o olhar. Wander nunca esteve tão perto de uma garota como naquela noite, e simplesmente não soube reagir de maneira adequada... A moça claramente havia ficado constrangida depois de tocá-lo de modo tão repentino. Mantinha a cabeça baixa como se estivesse tentando esquecer o que fez. Querendo ou não, os dois ainda eram como crianças quando o assunto se tratava de romance... E aquele breve momento fora o mais próximo de romantismo nas vidas de ambos.

— N-Não foi nada... Apenas agi por impulso, só isso. — Respondeu o ruivo, coçando o pescoço como se algum inseto o tivesse picado. Preferia ser modesto e não falar mais sobre aquilo... Agir como um herói não era de seu feitio, e esta fora uma das razões de ter fugido de fininho da festa. Wander não gostava de atrair atenções, e orgulho excessivo não estava em sua lista de traços de personalidade. Os dois ficaram quietos por um momento até que o rapaz se levantou e começou a limpar as roupas. Tentava agir de maneira mais despreocupada, embora aquele momento único não fosse sair de sua memória tão cedo. — Então... O quê você estava fazendo lá em cima? Digo... Sei que estava cantando... Mas você também é de Eelry, certo? Por que fugir do vilarejo durante a noite?

A garota virou seu rosto novamente para o caçador de manto cinza e limpou o rosto, se levantando devagar em seguida. — O ar aqui é mais fresco, não acha? — Indagou ela como resposta. Sorria de maneira singela... Numa sinceridade indescritível. — Ainda mais de noite... Quando o vento bate um pouco mais forte... — Completou a moça.

O ruivo abriu os olhos um pouco mais que o normal... Após refletir por um instante, sorriu de volta. De certo modo, conseguia entender o que ela quis dizer. — É verdade. — Sem muito hesitar, ele se aproximou mais da jovem e colocou as mãos na cintura. — Bom, que tal nos apresentarmos direito? — Questionou Wander. O raciocínio da garota parecia ser um pouco lento... Após alguns segundos, ela assentiu com a cabeça. — Meu nome é Wander. — Apresentou-se novamente o caçador, tocando no próprio peito rapidamente com as pontas dos dedos de uma das mãos.

— Mono. — Disse a garota de branco, fazendo o mesmo gesto que o ruivo. Seus movimentos não fluíam como os de uma Tsa’hik comum... Talvez ela não fosse alguém muito sociável, pensou Wander. Quando o rapaz se curvou para frente, a garota rapidamente tentou imitá-lo, preocupada em estar sendo enfadonha e desleixada durante a apresentação. Não parecia conhecer muito bem os bons modos da tribo... Ou ao menos não estava acostumada a usá-los.

Os dois lentamente ergueram suas cabeças, e Wander decidiu puxar conversa. — Conheço quase todo mundo de Eelry... Mas nunca te vi antes.

— Não posso sair de casa. — A garota respondeu sem muito hesitar. Naquele momento estava tão serena que era estranho lembrar-se de seu rosto minutos atrás... — Por isso venho pra cá durante as noites... Não é uma colina linda? Com aquela árvore no topo... Tentando alcançar os céus... — Mono dizia sorridente, estendendo o braço direito na direção da árvore mais adiante. Daquele ângulo parecia estar numa altitude muito maior...

— Desde quando você vem aqui...? — Indagou o ruivo.

— Não sei... Já vim tantas vezes que nem me lembro mais. E você? — Despreocupadamente questionava ela, agora aparentando estar contente por conversar com outra pessoa.

— Uhm... Também não me lembro bem. Acho que encontrei esse lugar há pouco mais de um ano... Venho quase todas as tardes.

— Uau! — A garota exclamou de repente, se aproximando de Wander num piscar de olhos. Sua personalidade era um completo mistério: Antes como se fosse uma garoa gelada e silenciosa, e depois se transformando no belo canto agitado de um pássaro jovem. Mono segurou as duas mãos do rapaz e abriu um sorriso ainda maior, demonstrando uma animação além do que seria esperado. — Isso é maravilhoso! É como se o destino tivesse nos unido para que nessa noite nos conhecêssemos! Não é incrível?!

Subitamente um silêncio tomou conta. Conforme o vento balançava as copas das árvores, um estranho arrepio viajava pelo corpo do rapaz da nuca até suas pernas. Wander instintivamente olhou para cima ao avistar o voo de uma águia sobre a colina, ouvindo seu momentâneo canto em seguida. Isso fora o suficiente para tirá-lo de seu breve transe, embora ainda pudesse considerar-se profundamente afetado por ele. Wander não acreditava em destino... Sempre imaginou que; acima de tudo, ele era o responsável por seu próprio futuro. Ainda assim, as palavras de Mono; mesmo que sem fundamento algum, o atingiram como o jovem nunca antes fora por outra pessoa.

— A-Acho que sim... — Gaguejou o ruivo durante a reposta, mostrando um sorriso torto por acidente. — Mas por que o destino nos reuniria...?

Wander imaginava que a moça seria incapaz de responder aquela pergunta, mas se surpreendeu ao vê-la se afastar enquanto girava ao redor de si mesma diversas vezes com os braços abertos. A resposta estava na ponta da língua, e aquele sorriso era a prova disso. — Nós estamos aqui! Vivos debaixo da luz do luar enquanto conversamos sobre nada realmente importante! — Afirmou ela, parando quando estava virada para seu novo amigo. A jovem se curvou para frente e colocou as mãos atrás do corpo. — Você não acha que isso já seja uma boa razão?

Não era sempre que Wander conseguia ter uma boa conversa com alguém... Na maioria das vezes, as pessoas pareciam achá-lo entediante ou desinteressante. Mas não ela... Ao menos não até então. — Talvez... — O caçador respondeu após esboçar um sorriso. De repente, Wander começou a caminhar colina acima com passos pesados e lentos. — Bom, a vista é muito melhor lá de cima... — Após alguns instantes, o mesmo olhou para trás enquanto estendia o braço direito na direção da garota. — Você vem?

De certo modo, Wander conseguia captar os sentimentos daquela jovem... A animação de poder falar tão abertamente com outra pessoa; o nervosismo de estar conhecendo alguém completamente novo... Até mesmo a sensação de poder; de algum modo, confiar sua própria vida a outro ser humano. No fundo dos olhos dela, era isso o que o caçador conseguia enxergar, e embora em toda a sua vida a maioria das pessoas apenas o tivessem subestimado e tratado como alguém inferior, não havia qualquer resquício destes traços em Mono. Como se seu coração fosse completamente puro...

Mono entregou sua mão a Wander, e quando os dois chegaram ao topo da colina, era possível enxergar aquela mesma vista maravilhosa de antes. As folhas escuras das árvores sendo empurradas pelo vento; as nuvens cinzentas sobressaindo o céu negro lotado de estrelas; e é claro: Eelry sob a luz do luar. A comemoração envolta da fogueira continuava, embora houvesse se acalmado bastante em comparação a antes. Wander tinha certeza que ninguém estava realmente sentindo sua falta, já que sempre fora assim... Não haveria qualquer razão para isso mudar tão de repente. Ainda que fosse algo no mínimo deprimente, uma parte do fato trazia certo conforto ao rapaz.

— Eles devem estar se divertindo muito... — Mono disse num tom de voz suave enquanto se apoiava no tronco da árvore. Sorria como se estivesse olhando para uma pequena e delicada jóia.

Wander fitou a garota sem entender a razão de tamanha comoção. — Você queria estar lá...? — Indagou ao cruzar os braços.

A donzela de branco negou com a cabeça. — Acho que não. Gosto de observar a felicidade dos outros. Mas não sei se é exatamente onde eu queria estar... — Ela respondeu ao virar seu rosto para a floresta. O vento parecia corresponder seus sentimentos ao mesmo tempo em que tentava levar seu cabelo e o tom de seu vestido.

Sem conseguir evitar de ficar olhando para seu belo rosto, o ruivo só conseguia pensar em como sentia algo parecido toda vez que acordava. Após sentar-se ao lado da mangueira, abriu um leve sorriso. — Sabe, ás vezes tudo o que eu queria era estar cavalgando em algum pasto ou planície. — Afirmou de repente. Mono virou-se, surpresa. — Caçar me trás uma sensação de liberdade... Mas não é como estar realmente livre.

— Você não gosta do que faz? — Questionou a garota.

Wander fez menção de rir, mas apenas sorriu novamente. — Não é bem isso... Só não é algo que eu faria se tivesse escolha — Falou.

— Todos temos escolha. — Mono respondeu enquanto se sentava ao lado do rapaz.

Wander olhou para o lado um pouco impressionado com aquelas palavras. Não esperava que ela fosse dizer algo com tanta segurança em suas palavras... — Sim... Mas existem consequências. — Após olhar para baixo, o caçador encarou as próprias mãos. — Se eu simplesmente fosse embora de Eelry, estaria envergonhando outra pessoa...

Mono imediatamente reagiu com uma expressão triste. Aos olhos de Wander, ela parecia ser a pessoa mais empática do mundo... — Você deve ter bastante certeza disso para dizer algo assim...

Suas palavras diante de conversas como aquela sempre vinham como uma ventania forte que logo em seguida mergulhava em calmaria. Tocavam o rapaz de uma maneira quase violenta... Mas depois traziam um surto de serenidade extraordinário. Naquele momento, o jovem percebeu que não tinha total certeza do que estava dizendo... Será que seu pai realmente se envergonharia se Wander não se tornasse um caçador tão bom quanto ele mesmo fora? Ou mesmo se o último representante de seu nome decidisse viver exilado do próprio povo...? Wander não sabia. Não teria como saber a menos que seu próprio pai confirmasse isso... Mas infelizmente algo assim seria impossível. Afinal, os mortos nunca retornam. Nem mesmo para proferir simples palavras...

Wander e Mono permaneceram encostados no tronco da grande árvore durante longos minutos. Simplesmente ficaram ali calados observando a vista antes de começarem a conversar sobre todo o tipo de assunto possível. Desde como foi encontrarem aquele lugar pela primeira vez, até o som que os gansos fazem quando estão assustados. O fato de Mono se interessar profundamente pelas histórias e situações que Wander contava refletia a desagradável monotonia de sua vida... No entanto, não era como se a jovem nada pudesse oferecer. Seus profundos questionamentos sobre o significado de cada pequena coisa; seja na natureza, nas pessoas, ou na própria vida, demonstravam o grande intelecto que ela possuía, algo completamente fascinante para o jovem caçador. Apesar de ser uma pessoa cuja liberdade pouco alcançava, Mono possuía um espírito bastante alegre e solto... Conseguia ver o lado bom de cada coisa; uma lição em todo sofrimento. Wander nunca conheceu alguém assim, e por isso ficava cada vez mais curioso sobre a jovem.

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— U-Um javali maior que um cavalo...?! — Perguntou Mono, completamente perplexa após Wander contar sobre sua caçada memorável daquele dia. Não é sempre que se vê um animal tão grande... Ainda mais um javali como aquele. Mesmo assim, a garota pareceu realmente crer no que havia acabado de escutar. Nem mesmo questionou-se sobre a veracidade daquela história... — Achei que javalis fossem bem menores... Do tamanho de porcos... — Completou ela. Ainda que aquele não fosse javali comum, certamente Mono nunca havia visto um com os próprios olhos...

— Os dessa região são bem maiores que porcos... — Wander respondeu, cruzando os braços ao ficar com uma expressão mais séria. — Mas aquele era diferente. Nunca vi nada parecido... Acredito que tenha vindo do sul. — Após suspirar, ele negou com a cabeça. — Enfim... Não importa. Tenho certeza que só tive sorte... Qualquer um poderia tê-lo matado se estivesse no mesmo lugar que eu. — Afirmou o rapaz.

Claro que Wander sabia muito bem que suas habilidades não eram descartáveis. Embora seu sonho não fosse a glória de se tornar um grande caçador, o ruivo tinha total noção que estava bem mais próximo desse destino do que a maioria dos outros arqueiros do vilarejo. Qualquer Tsa’hik levemente inteligente correria para cima de uma árvore ao ver um animal daquele tamanho... Considerando a baixa estatura do povo de Eelry, era muito comum que os não treinados para a batalha fugissem de qualquer conflito surpresa. Num ambiente hostil, o tamanho afeta completamente a visão que um inimigo tem do outro. Em poucas palavras, se outra pessoa estivesse no lugar de Wander, provavelmente não teria a mesma coragem, e muito menos a capacidade física para realizar os movimentos que o rapaz efetuara. Qualquer erro significaria uma morte rápida e assustadoramente brutal... Existe sequer uma pessoa no mundo realmente preparada para isso?

— Não sei dizer se poderia... — Mono falou num tom mais baixo, pensativa. — Mas acho que foi muito corajoso da sua parte lutar contra ele! Muitas pessoas ficariam orgulhosas de um feito como esse! — Concluiu, sorrindo enquanto colocava a mão direita com o indicador para cima na frente do corpo. Mesmo com toda aquela animação, Wander continuou completamente sério. Olhava para o vilarejo ao longe como se sua mente estivesse muito distante... — Isso não te anima? — Indagou Mono, um pouco preocupada com a expressão do rapaz.

— Não... — O ruivo respondeu, se levantando. Após limpar a sujeira de terra em sua roupa, ajeitou o cabelo enquanto ainda olhava em volta com aquela expressão. — Não tenho interesse em fama. Além disso, coragem é a virtude de um guerreiro... Não a de um caçador.

Mono se levantou também, repetindo os mesmos movimentos de Wander. — Então talvez você seja um guerreiro também. — A donzela disse inocentemente.

O rapaz bufou uma risada enquanto virava-se para ela. — Não, eu acho que não... Não tenho o porte de um, e nem sei manusear uma espada. — Diminuiu a si mesmo.

— Mas um guerreiro não precisa necessariamente usar uma espada. — Mono afirmou, abrindo um sorriso novamente. — Você me salvou quando eu caí... Um guerreiro também salva pessoas.

Ao se recordar do ocorrido, Wander desviou o olhar e ficou sem graça de novo. — Aquilo foi... Meramente instintivo.

De repente; no meio de todo aquele silêncio da noite, o caçador pôde escutar um som baixo e contínuo... Era familiar, visto que ouvia toda vez que estava com muita fome em seu quarto durante a manhã. Um ronco breve decorrente do longo tempo que a garota passou ali antes de o ruivo chegar. Ao notar que Wander também tinha escutado, ela colocou as mãos na barriga e imediatamente corou, virando o rosto para o vazio enquanto mordia o canto do lábio inferior.

— D-Desculpe... — Gaguejou constrangida. — Não como desde a metade do dia...

Wander suspirou pouco antes de olhar para Mono como quem está envolto em impaciência. — Você poderia ter me avisado...

Após aquelas palavras, o caçador virou-se para a árvore e começou a escalá-la rapidamente. A facilidade com a qual se agarrava à grama do musgo era realmente impressionante, e isso se dava por estar de fato acostumado a fazê-lo. Como frequentava aquele lugar constantemente, era comum para Wander subir aquela mangueira para pegar frutos durante a tarde. Após alguns segundos, o ruivo sentou-se num dos galhos mais grossos e agarrou uma manga, jogando-a em seguida para Mono. Por sorte a moça de branco conseguiu segurá-la antes que a mesma fosse ao chão, e ficou encarando o rapaz por um longo momento antes de fitá-la com a intenção de comer.

— Não precisa se preocupar, elas são boas... Esta está madura. — Afirmou Wander, pegando outra para si.

Mono abaixou a cabeça e sorriu, começando a descascar a fruta com as próprias mãos. — Você fez de novo... — Disse ela em voz baixa.

— O quê? — O caçador indagou antes de morder a manga.

A garota então levantou a cabeça e olhou no fundo dos olhos dele. — O que os guerreiros fazem. — Respondeu despreocupada.

A princípio, Wander não soube como reagir ao que Mono afirmara... Sua garganta ansiava em dizer novamente que fora algo ‘’meramente instintivo’’, mas ambos sabiam que não havia sido. No final das contas, Mono estava correta... De certo modo, Wander era um guerreiro, visto que guerreiros ajudam pessoas, e ele acabara de fazê-lo por vontade própria.

Os dois permaneceram sob a copa da mangueira durante horas... Há muito tempo o jovem caçador não se sentia tão vivo. Cavalgar nos campos... Nadar em rios gelados... Tudo isso lhe trazia satisfação e a sensação de estar aproveitando da melhor forma possível seu tempo. Mas naquela noite; com aquela garota que acabara de conhecer, tudo isso parecia extremamente banal. Apesar de não concordarem com tudo, era como se houvesse uma ligação entre os dois. Wander se sentiu completo pela primeira vez em toda a sua vida, e se naquele momento pudesse realizar qualquer desejo, definitivamente pediria para que o tempo parasse.

Após muito conversarem e debaterem sobre assuntos diversos, Mono adormeceu. Instintivamente, então, o jovem caçador desceu da mangueira e sentou-se ao seu lado encostado no tronco da árvore. Embora a companhia de Mono houvesse se apaziguado por hora, só o fato dela estar ali já era o suficiente para trazer uma profunda serenidade ao rapaz, que por alguma razão não conseguia parar de olhar para seu belo rosto. Wander acabou adormecendo após alguns minutos, finalmente sendo abatido pelo cansaço de ter tido um longo dia na floresta.