Setores de Sangue

Capítulo 2: Entre Correntes


Robert fitou, incrédulo, o corpo imóvel da mulher deitada no chão, com um ferimento grave em sua testa e uma poça de sangue expandindo-se ao lado. Não conseguia se mover, ou mesmo raciocinar corretamente.

Quando se deu conta, o guarda retirou o pé de suas costas e o ergueu com força para guiá-lo até o interior do trem, onde sua filha o aguardava, inexpressiva.

A situação encontrava-se diferente naquele momento. Cada uma das portas do trem fora bruscamente fechada pelos homens uniformizados que posicionaram-se ali minutos atrás, enquanto metade dos habitantes do Setor 7 ainda encontrava-se do lado de fora, gritando desesperadamente junto a outros guardas, que pareciam desconhecer a ordem de deixar para trás todas aquelas pessoas e seguir em frente.

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– Sinto informar que o Setor 1 não possua espaço suficiente para todos vocês. - Disse um homem, através de um alto falante que encontrava-se na superfície do conjunto de vagões.

O trem começava a acelerar, enquanto pessoas corriam em sua direção, batendo em suas paredes de metal e em suas inúmeras janelas, buscando rompê-las com intermédio de entrar, mas ele acelerava cada vez mais, o som do motor misturando-se a outro estrondo produzido na estação. O ambiente afundou completamente na nuvem de poeira que se propagou, até que a figura gigantesca de um homem robusto se revelou diante dela. Ele passou a aproximar-se, pisoteando os indivíduos que encontravam-se em seu caminho, em direção ao veículo. Aquele parecia ser seu alvo.

Robert observou a cena de maneira indiferente, era como se seu cérebro estivesse captando as imagens, mas não chegara a uma conclusão definitiva do que estava acontecendo. A criatura socou o ar algumas vezes, na tentativa de atingir pelo menos um dos vagões, mas eles abandonaram a estação antes que ela, tombando para o lado logo que chegou ao lado de fora, o alcançasse.

– Não se preocupem. Estamos a salvo agora. - Avisou a mesma voz de outrora, de um pequeno alto falante sobre o assento de todos os passageiros.

Robert pressionou a cabeça contra a janela, ainda não encontrava-se são. Limpou as lágrimas de seu rosto e encarou o horizonte. Edifícios erguiam-se enquanto figuras pálidas e desajeitadas, semelhantes a seres humanos, esforçavam-se para caminhar entre eles, algumas desmembradas e com a pele putrefata. Era algo surreal.

– Papai?

Robert voltou sua atenção para a poltrona ao lado, Mayla acomodara-se ali. Nunca havia percebido o quanto ela se parecia com a mãe. Os mesmo cabelos dourados, as mesmas feições delicadas e a mesma expressão tristonha.

– Está tudo bem. - sussurrou ele, percebendo os olhos inchados e vermelhos da filha, em seguida a envolvendo em seus braços. - Vamos ficar bem, enquanto estivermos juntos.

Myrian dissera aquilo.

》》》

– Tem certeza que é uma boa ideia, Cordon? - Perguntou Zack, franzindo a testa.

– É a única maneira, se não quiser ser encontrado tão facilmente. - Respondeu o homem parado à sua frente. Trajava o uniforme azul dos guardas de segurança civil e possuía dois revólveres presos ao cinto. - É mais seguro lá fora do que aqui dentro.

– Outras coisas vão me encontrar. Vou ter chance de ser morto.

– Em todos os lugares você vai ter chance de ser morto. Não resta muita escolha pra você agora. - Cordon retirou um de seus revólveres do cinto e entregou à Zack. - Tome. Por precaução. É paralítica.

– Só funciona em humanos? - Zack revirava a arma em suas mãos, examinando cada detalhe. Ela possuía um tom de verde metálico, provavelmente para identificar sua especialidade, e um cano longo, porém fino.

– Em animais também, mas você deve estar sempre atento à munição.

– E quando ela acabar?

– Aí você fica por conta própria.

Zack e Cordon encontravam-se no interior de um minúsculo prédio de concreto, a parede áspera apresentava imperfeições e o teto, pequenos buracos. Construções como aquela eram características das zonas periféricas do Setor 1, lugar ignorado pelo governo devido ao alto índice de pobreza. Era habitado por desempregados e mendigos que não possuíam nada além das roupas do corpo, havendo casos em que nem isso.

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Devido a precariedade, era extremamente comum foragidos que invadissem aquela área serem denunciados de imediato, por pura ganância dos moradores pela recompensa que receberiam em troca da informação. Mas, com Zack fora diferente, seu rosto não ocupava os telões espalhados por todos os lugares até que ele estivesse na segurança de uma sala abandonada no sexto andar do prédio.

– Já estou demorando demais - Cordon posicionou a mão sobre o revólver que restara em seu cinto. - Se eu ficar mais um pouco, podem desconfiar.

– Tudo bem.

O guarda caminhou lentamente até a porta, de encontro ao corredor mal iluminado.

– Amanhã voltarei para ajudá-lo a atravessar o portão. - Avisou Cordon.

– Por que não hoje?

– Porque amanhã é sábado. E nós baixamos a guarda no sábado. Enquanto isso, mantenha-se escondido.

Zack ascentiu com a cabeça.

》》》

Robert observava o movimento da terra diante dele com os olhos cansados enquanto Mayla cochilava com a cabeça sobre suas coxas e as pernas encolhidas sobre a poltrona. Era hora de relaxar e ignorar as lembranças que o afetavam.

– Fico feliz que consiga dormir apesar de tudo isso. - Ele contornou o braço macio de Mayla com os dedos, carinhosamente, até deparar-se com a marca vermelha e inchada em seu pulso.

Eram arranhões, os arranhões feitos por Myrian antes de levar um tiro. Myrian. A dor de pensar na mulher só conseguia ser amenizada pela preocupação com a filha, que parecia estar correndo o mesmo risco que a mãe. Arranhões comuns não apresentariam resultados tão alarmantes, ela estava, sem dúvida, infectada. Robert teria que agir.

Em todos os setores haviam detectores de E., as colunas prateadas que denunciaram Myrian, para que apenas humanos saudáveis entrassem e saíssem do trem. Portanto, quando finalmente chegassem ao Setor 1, Mayla seria obrigada a atravessar o espaço entre as máquinas e morreria caso fosse identificada. Aquilo não poderia acontecer, de forma alguma.

– Mayla... - Robert sussurrou, balançando o corpo da garota em seu colo até que ela abrisse os olhos. - Acorde.

– O que foi? - Perguntou Mayla, com a voz fanha, levantando-se lentamente.

– Precisamos sair daqui. - Robert olhou para os lados, certificando-se de que os passageiros permaneciam dormindo. - Agora.

O homem levantou-se da poltrona, tomou a mão de Mayla e seguiu pela corredor estreito em direção ao fim do vagão, onde encontrou uma pequena porta à direita com letras vermelhas e graúdas anunciando uma saída de emergência.

– Papai? - Os olhos da garota arregalaram-se. - O que está acontecendo?

– Confie em mim.

Robert deu um passo para a frente e investiu seu peso contra o comprimento da porta. Nada aconteceu. Deveria haver outra maneira de abrí-la sem precisar entrar na cabine principal.

– Vai ficar tudo bem. - Ele esticou-se para alcançar o pequeno painel cinza, preso à parede acima de suas cabeças, e abaixou pequenas alavancas simultaneamente.

Mayla emitiu um grito abafado quando as rajadas de vento jogaram seus cabelos trás, a porta estava se abrindo, exibindo o exterior escuro e sombrio.

– Vamos - Robert estendeu a mão para ela, que não demonstrou qualquer reação. - Segure a minha mão, Mayla.

Ela hesitou, mas, por fim, respondeu:

– N-não.

– Ei - Robert ajoelhou-se, para assemelhar-se à altura da garota, e colocou as mãos em seus ombros. - Eu sei que parece loucura, mas eu garanto que é para o seu próprio bem.

Mayla tremia, não conseguia falar e as lágrimas ameaçavam escapar de seus olhos. Nunca pensou que teria tanto medo do próprio pai.

De repente, a porta fez o movimento contrário, retornando à sua posição de origem e cessando as rajadas de vento.

Robert ergueu-se do chão, assustado, e apressou-se para se esticar e alcançar novamente o painel cinza.

– Está desativado. - Informou uma voz atrás dele.

Robert virou o corpo rapidamente e avistou um guarda, posicionado logo em frente à porta de saída do vagão.

– Eu não entendo - o guarda caminhava lentamente na direção de Robert. Apresentava um sorriso no rosto, como se estivesse satisfeito com a situação. - O motivo de uma fuga repentina, já que... salvamos vocês.

– Não tem motivo - Robert cuspiu as palavras.

– A menos - o guarda semicerrou os olhos. - Que tenham algo a esconder...

Robert deslocou-se para a frente de Mayla, que alojou as mãos na costa do pai, e respondeu:

– Não temos nada a esconder.

– É mesmo? - o guarda soltou um risinho debochado. - De qualquer forma, vocês terão que me acompanhar.

Robert encarou o homem uniformizado por um instante. Para a segurança de Mayla, era melhor que não chamassem muita atenção, pelo menos não mais do que já haviam chamado.

– Tudo bem - conscentiu ele.

O guarda retirou o revólver do cinto, apontou com o queixo para a porta enferrujada no fim do corredor atrás dele, e pós-se a caminhar.

– Sigam-me.

Robert virou-se para a filha e puxou a manga de sua camisa até que o ferimento no braço da garota, que seguiu o movimento com os olhos, estivesse completamente coberto. Se alguém o visse, ela seria morta, da mesma maneira que Myrian, e ele não poderia arriscar perder o que restara de sua família.

– Vamos, Mayla - murmurou ele, sorrindo.